Acordar e me olhar no espelho. Uma mulher sozinha, desempregada, morando de aluguel e olhando para o passado sem perspectiva de futuro. Retrato vivo de um ser depressivo e com a autoestima lá embaixo. Meu corpo pedindo para ficar na cama, fechar meus olhos e esquecer da vida.
Detalhe: Essa era eu, antes de descobrir que a terra é redonda e ela gira. Pois então, cansei de ser a vítima e como já vivi, quarenta e cinco anos, acho que tenho no máximo, com muito otimismo, mais quarenta e cinco para viver diferente.
Meu nome é Débora, como já disse, tenho quarenta e cinco anos e minha história não é diferente de muitas que vejo por aí:
Me casei com dezenove anos, era uma moça sonhadora, fazia planos para um futuro brilhante. Estava terminando o magistério, quando me apaixonei por um artista em início de carreira. Ele cantava músicas românticas nos barzinhos de uma pacata cidade do interior de Minas Gerais. As meninas da época perdiam o juízo por ele e não foi diferente comigo. Eu me deixei viver essa paixão, engravidei e meus pais obrigaram a me casar. Não era bem-visto uma moça ser mãe solteira naquela época.
Com o casamento, vieram as responsabilidades, o cantor virou atendente de lojas de ferragens e eu, a promissora professora, me tornei costureira por profissão.
O romance não durou muito tempo, nos finais de semana ele fazia suas apresentações nos barzinhos e eu ficava cuidando da pequena Helena. Eu trabalhava a semana toda e ainda cuidava da casa, minha filha ficava com a minha mãe para que eu pudesse ajudar em casa com as despesas. Cristian, se achava o artista, não podia ficar com a menina meia hora para eu poder lavar as roupas da casa. Eu fazia tudo com um sorriso no rosto e cantando músicas do Roberto Carlos e Fábio Júnior. Era para matá-lo de raiva, pois ele dizia que eu conseguia estragar as músicas com a minha voz desafinada.
Eu não me importava, eu era feliz assim mesmo. Eu estava com dezenove anos e ele com vinte e um anos, o sexo era quente e o que segurava a relação. Eu tinha que ser uma mulher empoderada na cama para conseguir manter seu amigo dentro da calça nas noites de serestas pelas cidades vizinhas. Até que ele recebeu um convite para gravar um CD e foi para a capital e não mais voltou. Depois de um tempo recebi uma carta com um cheque e um texto curto dizendo:
__ Sinto muito, mas eu não estou pronto para a responsabilidade de uma família. Amo você e a nossa filha, mas eu tenho um sonho e vou atrás dele.
Nessa época Helena tinha apenas dois anos, eu me vi sozinha, mãe em carreira solo.
O meu tempo foi trabalhar, cuidar da minha família e enterrar meus sonhos.
A princípio eu sofri muito, e ainda ouvia as famosas frases: __ Eu te avisei, esse rapaz não era para você!
__E agora? Você vai ficar falada.
__ Não quero saber de você com conversas com outros homens, você tem que dar exemplo para sua filha e não envergonhar sua família.
Eu, como já estava machucada, abandonada e sozinha, decidi cuidar da minha vida e da minha família.
Minha irmã Daniela formou em farmácia, se casou com um médico e são o orgulho dos meus pais, enquanto eu, cuido deles, da filha da Daniela e de mais um sobrinho filho do meu irmão, que também é pai em carreira solo. No final das contas sou o para raio da família.
Cinco anos se passaram e Cristian começou a aparecer em programas de televisão, capas de revistas e shows por todo país. Ele nunca veio nos visitar e muito menos procurou a filha. Como ela era muito pequena eu não falo a respeito dele para ela. Apenas digo que ele era muito novo e não quis ficar com a gente.
Se me perguntarem o que sinto por ele, digo que não sei. Ainda não tive tempo nem para odiá-lo.
Os anos foram passando eu me divido entre ser mãe, filha, funcionária e doméstica. Com vinte seis anos e aparência de cinquenta eu dou a vida para ficar em casa assistindo filmes e novelas.
Para meu castigo, ligo a televisão e o galã da novela das oito, é nada menos que meu ex marido. Fico furiosa e Helena pergunta assustada, porque eu quebrei o controle da televisão.
__ Nada, querida! Eu deixei cair, foi um acidente. Volte a fazer seu dever. Eu vou me deitar.
Rolo de um lado para o outro na cama e me sinto angustiada, triste e sem expectativa.
Acordo cedo e vou trabalhar, deixo Helena na escola e pego a condução para chegar na confecção. Para meu segundo castigo a máquina de costura quebra e o técnico a está arrumando. A dona da confecção fica irritada por que estou parada e travou a produção. Ela começa a jogar algumas indiretas para mim e eu faço de conta que não é comigo. Eu preciso desse emprego, não é por mim e sim pela minha filha.
Não faço horário de almoço para recuperar o tempo perdido. Como uma fruta sentada na máquina e a patroa acha ruim pois eu parei um pouquinho.
Eu tenho duas amigas, Clarice e Camila, elas são irmãs e estão sempre me ajudando. Elas terminam a produção delas e me ajudam a concluir a minha, aproveitando que a dona chata foi ao banco.
Seu esposo me olha trabalhando sem parar e me elogia na frente de todos. Eu fico constrangida e o agradeço.
Terminamos o dia e estou exausta, passo na casa dos meus pais e pego Helena, e João Pedro meu sobrinho para irem lá para casa. Faço o jantar e os vejo brincarem na rua, está uma noite quente de verão.
Está tocando uma música no rádio do vizinho e o locutor anuncia o show do Cristian em nossa cidade, eu fico ouvindo e sinto meu corpo estremecer.
Penso se ele irá nos procurar e se vai querer ver a filha depois de tantos anos.
Nem consigo dormir pensando na hipótese dele chegar aqui em casa.
Chego cedo na confecção e os burburinhos começam, eles sabem que Cristian é meu marido, pois trabalho aqui há muitos anos e muitos que estão aqui entraram juntos comigo no início da indústria.
Clarice me pergunta se já sei a respeito do show e se eu vou?
__ Claro que não, eu não tenho dinheiro para comprar ingresso e também não tenho mais nada a ver com ele.
__ Mas você deveria procurá-lo, ele é o pai da Helena e ela tem direito ao que ele conquistar com a carreira artística dele.
Camila fala nervosa, ela é apaixonada por Helena e morre de pena ao ver a menina perguntar pelo pai.
__ Eu sei, mas ele não a quis e muito menos a mim. Eu não deixo faltar nada para minha filha e não vou precisar me humilhar para que ela seja reconhecida.
Eu fico nervosa e vejo uma revista em cima da minha máquina de costura, o pôster dentro da revista me faz gelar o corpo inteiro, um nó instaura na minha garganta e tenho vontade de chorar.
A patroa me chama em sua sala e pede que eu não fique de conversas a respeito da minha vida pessoal na empresa, e que eu foque no meu trabalho ou ela terá que me dispensar.
Eu me sinto humilhada e constrangida, volto para máquina e trabalho o tempo todo em silêncio.
As horas custam a passar, todas as vezes que olho em direção ao escritório o senhor Renan está me olhando, ele tem uns sessenta anos, sua esposa deve ter a mesma faixa de idade, eu não sei o que ele vê em mim que não tira os olhos. Clarice e Camila já perceberam a situação e estou ficando sem jeito.
No final do expediente sou chamada novamente ao escritório, penso milhões de vezes antes de entrar, peço para minhas amigas me aguardarem na porta, estou com medo de ser mandada embora.
Entro pelo corredor até a recepção, a secretária me anuncia e sou convidada a entrar.
A porta se fecha atrás de mim e deparo-me com o homem forte e atraente que se aproxima por trás, fazendo meu corpo estremecer.
__ O senhor mandou me chamar?
__ Sim, eu preciso falar com você.
Ele passa suas mãos pelos meus braços e sinto sua mão suada, parece estar nervoso:
__ Eu sei que você já foi casada e que cria sua filha sozinha.
__ Isso é um assunto particular meu, eu nunca trouxe meus problemas para o trabalho e não gostaria de falar a respeito.
__ Eu sei, sente-se.
Ele fala sentando a minha frente.
__ Eu tenho uma proposta a te fazer. Será algo que tem que ficar entre nós dois.
Eu estou tremendo e o nervosismo me faz revirar o estômago.
__ Do que o senhor está falando?
__ Eu quero que você seja minha amante, amiga o que você quiser ser.
__ O senhor está louco, eu não quero nada com o senhor e nem com homem algum.
__ Se você não aceitar eu terei que pedir para minha esposa te colocar no olho da rua.
__ Eu não vou aceitar, e não precisa pedir, eu mesma me demito.
Ele se levanta rapidamente e vem em minha direção, me pegando pelo braço e virando-me, segura firme e tenta me beijar a força. Eu soco meu joelho no meio das suas pernas e ele se contorce. Com meu grito e o seu gemido de dor eu vejo a porta abrindo e para meu espanto a esposa dele entra e grita comigo. Ele fala que eu fui até sua sala para assediá-lo. Eu fico nervosa e não consigo me defender das acusações. Minhas amigas entram na sala e estou chorando por causa dos insultos dos dois vermes.
Saio da empresa com o nome sujo e ainda sem direito algum. Fui acusada injustamente e dificilmente vou conseguir emprego em outro lugar aqui na cidade.
Minhas economias só dão para no máximo dois meses. Preciso trabalhar para sustentar minha filha.
Vou a casa dos meus pais e conto-lhes o que aconteceu e que não sei como vou fazer.
Meu pai está preocupado em como ele vai fazer para pagar a farmácia, pois era eu quem pagava. Diogo, meu irmão, chega com João Pedro, ele tem quatro anos e a mãe não quis cuidar, entregou para o pai quando nasceu. Diogo cuida dele sozinho e com minha ajuda e da minha mãe, que é um anjo de pessoa.
__ O senhor não precisa que Débora pague seus remédios, o senhor tem uma filha farmacêutica e um genro que é médico.
Diogo fala alterado e tentando me defender.
__ Daniela está começando a farmácia agora, Jessé já a ajudou muito e não é justo eles terem que custear meus remédios, ele já não cobra a consulta e o acompanhamento que eu preciso para o coração.
Eu respiro fundo porque o orgulho dele é só quando se trata da filha querida, quanto a mim, que me viro.
Diogo tenta me acalmar e pede para que eu descanse uns três dias e que ele vai tentar olhar um serviço para mim na loja que ele trabalha como vendedor.
Cidade pequena tudo é mais difícil, as notícias correm como pólvora e sempre em tom de maldade.
A situação piora quando Helena chega em casa e está nervosa, ela pergunta por quê eu estava brigando com seu avô e porque não vou conseguir pagar os remédios dele. Ela não entende as coisas direito e a acha que eu vou deixar seu avô morrer por falta de remédio. No mínimo foi ele quem falou isso para ela.
__ Não minha filha, eu perdi meu emprego, por causa de pessoas más, eu vou conseguir outro e vou pagar os remédios do seu avô.
Ela me abraça, ele é a figura paterna que ela conhece e infelizmente ele a manipula e a coloca contra mim. Não sei como fazer para que isso não aconteça, eu dependo dela ficar com eles para eu poder trabalhar.
Faço meu currículo e começo a colocar nos estabelecimentos comerciais da cidade. Em alguns lugares as pessoas me olham torto, pois tenho uma filha com um cantor e artista famoso e estou de porta em porta pedindo emprego.
Parece que todos já sabem porque fui mandada embora da confecção, ninguém me dá emprego na cidade. Já estou ficando aflita, preciso levantar o dinheiro dos próximos alugueis. Algumas coisas básicas já estão começando a faltar dentro de casa. O dinheiro só dá para mais um mês no máximo.
No fundo eu tenho a esperança de que o Cristian me procure, ao menos para ver a filha e me ajudar com um pouco de dinheiro para as despesas.
Eu não queria estar com os nervos aflorados por causa do show do Cristian aqui na cidade, mas é que já faz tantos anos que não o vejo que sinto fraquejar. Eu nunca mais tive ninguém, ele foi meu único homem e eu o amava tanto. O amor a gente não escolhe e apenas vive. Sei que ele não quis saber de nós, achou que com uma quantia em dinheiro daria para criar nossa filha, se esquecendo que afeto e atenção não tem preço.
Eu me levanto cedo, arrumo a casa, limpo nosso quarto que ainda está do jeito que ele deixou. Suas roupas estão na gaveta e no fundo sempre tive a esperança que ele fosse voltar.
No rádio só toca músicas dele. Helena já sabe as letras de cor, só não sabe que é seu pai quem canta.
Ele vindo aqui eu quero apresentar a ela o seu pai que ela tanto deseja conhecer. Dou um banho caprichado nela e visto-lhe uma roupa nova. Seus olhos são idênticos aos dele, seu sorriso me faz lembrar a todo momento o quanto ele é lindo.
Arrumo meu cabelo, minhas unhas e sento-me na porta da rua com Helena, esperando alguém aparecer para me dizer que ele vem, ou até mesmo ele, pode aparecer e eu quero esperar.
As horas passam, no rádio do vizinho fala que ele já está no hotel da cidade e que o ônibus com os músicos chegaram na frente. A cada notícia eu sinto meu coração acelerado e uma ansiedade angustiante. Camila e Clarice vão no show, eu não tive dinheiro para o ingresso.
Helena já está cansada de ficar do lado de fora comigo, já é tarde e ela está com fome. Eu entro e lhe preparo um lanche. Ela dorme cansada no sofá, por exaustão em esperar a quem ela nem imagina que seja.
Alguém bate na porta e eu fico sem ar, arrumo meu cabelo e minhas estão tremendo. Eu nem sei qual será minha reação ao abrir a porta, mas tenho tantas esperanças e sonhos que eu o perdoo por ter nos abandonado por tanto tempo.
Caminho devagar, soltando o ar dos pulmões e suspiro pela última vez. Abro a porta e sinto um nó na garganta e um desespero enorme.
__ Esperando alguém, irmã?
Diogo fala segurando João em seus braços, já dormindo pelo tardar da noite.
__ Não, eu não esperava ninguém. Mas o que você faz aqui?
__ Eu vim pedir para você ficar com João para mim, eu marquei um encontro no show do Cristian e não tenho com quem deixá-lo.
__ Tudo bem! Coloca ele na cama da Helena, ela dormiu no sofá.
__ Você tem certeza de que não está esperando ninguém?
__ Tenho, eu já ia dormir. É que a cidade está muito movimentada e eu estava lá fora vendo o movimento com a Helena.
Ele sai e eu ainda seguro o choro. O show é a duas quadras da minha casa e eu tenho para mim que ele deve vir depois do show.
Ouço as músicas ao longe pelo vagar do silêncio da noite, não consigo dormir e nem ao menos descansar meu corpo. Lembro-me das noites em que nos amamos loucamente e como a sua boca me satisfazia os desejos. Suas mãos pesadas apertavam meu corpo e seus gemidos de prazer se confundia aos meus. Éramos amantes apaixonados em uma libido de loucura e prazer. Seu gosto ainda está na minha boca e meu corpo ainda arrepia com as sensações de prazer e luxúria.
Olho pela janela na escuridão vejo o clarão do palco aceso, as músicas cessaram e apenas passos e vozes de pessoas conversando na rua. Os carros passam saindo do show que terminou. Eu fico mais atenta e eufórica. Ele vai chegar, como fazia antes. Depois dos shows ele vinha todo caliente e viril, me possuía de todas as maneiras até desabar ao meu lado.
São cinco horas da manhã, não tem mais movimentos na rua, agora é só o silêncio. Ainda estou de pé na janela. Tomo uma água e dou uma desculpa: __ Ele não veio, porque está cansado, o show terminou tarde e ele é uma pessoa famosa, não ia poder aparecer numa casa na periferia de madrugada. Antes de ir embora ele vai mandar vir nos buscar para encontrá-lo no hotel.
O silêncio é quebrado pelo caminhão do lixo que passa de madrugada. O padeiro deixou o pão na porta e o leite, são as vantagens de morar no interior.
Preparo o café e ainda não dormi. Diogo chega para buscar o João, ele conta os detalhes do show que foi um sucesso. Eu finjo não querer saber para não ficar pior os meus sentimentos. Eu peço que ele deixe Helena na casa da avó e que mais tarde eu busco.
Ele sai e eu caminho pela casa sem rumo, ligo o rádio e ouço uma entrevista na rádio e ele está ao vivo. O repórter pergunta várias coisas a respeito da sua vida profissional e ele responde com entusiasmo. Até que lhe é perguntado a respeito da sua vida amorosa e ele responde que está num relacionamento sério há dois anos e que em breve vai se casar.
O meu mundo desaba por inteiro, na ira e no calor da decepção eu rasgo toda a minha roupa e arranho meu corpo numa dor que sai da alma.
Ele continua falando e quando para, sua música toca ao fundo, uma letra de pedido de perdão. Só não será o meu perdão:
__ Eu nunca mais vou te perdoar, Cristian. Nunca mais.
Durante horas eu flagelei e me destruí. Senti tanta raiva de mim, da minha inocência por achar que ele voltaria. Agora acabou. Enterro de vez essa história e não quero mais sofrer por ninguém. Eu não vou permitir que ninguém me humilhe novamente e muito menos que me use.
Não sei por onde começar, nem como, mas um dia eu vou te esquecer e vou viver outra vez.
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