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****Manuela, 24 anos****...
...Pensei que não voltaria tão cedo a esse lugar. Esse cheiro de flor, esse silêncio que vez ou outra é interrompido pelas condolências a família trazem de volta lembranças que eu não deveria ter....
...O pior é saber que muitos dos que estão aqui nem sabiam quem ele era de verdade. A maioria nem sabia da sua luta contra a doença, e poucos o visitaram no hospital....
...Será que vale a pena ser uma boa pessoa? Porque tudo me leva a crer que os bons morrem cedo, e o Sr. Rossini era um desses. Ele era bem mais que um chefe, apesar da nossa diferença de idade, eu com meus vinte e quatro anos e ele com os seus quase sessenta, tínhamos muitas coisas em comum, principalmente a nossa coragem para lutar pelos nossos ideais....
...E foi exatamente isso que me tornou seu braço direito, ninguém entendia como ele conseguia confiar tanto em alguém com tão pouca idade....
...Eu tinha apenas 19 anos quando nos conhecemos, estava recém-chegada na cidade, tinha acabado de entrar para a faculdade e por indicação de uma pessoa, que agora é minha melhor amiga, consegui um emprego no escritório de uma fábrica de joias de uma marca muito conceituada no mercado, trabalhava lá o dia inteiro e no fim do expediente eu ia direto para a faculdade, chegando em casa exausta no fim do dia....
...Já estava bem adaptada lá, gostava da maioria do pessoal, mas não gostava da forma como a D. Vanusa, minha superior, tratava os funcionários, nunca fui de tolerar injustiças, todos estavam ali porque precisavam, mas isso não dava o direito de ninguém os humilharem....
...Um belo dia, a vi tratando uma funcionária grávida como se fosse um nada, só porque ela precisava ir mais vezes ao banheiro do que os demais. Achei que mesmo com toda sua arrogância, teria mais empatia, já que também é uma mulher....
...Não consegui me segurar, já estava cansada da sua arrogância. Tomei a frente da funcionária e falei tudo o que a arrogante precisava ouvir e ninguém tinha coragem de falar por medo de perder o emprego....
...Enquanto dizia o quanto ela era desumana e desrespeitosa, percebi que a secretária, que estava sentada em sua mesa atrás da D. Vanusa, tentava me avisar algo com o olhar, entendi que deveria ter alguém de grande importância atrás de mim, pelo seu desespero....
...Logo pensei que era o gerente da fábrica e que seria demitida, mas já era tarde e não me arrependia de nada do que disse. Respirei fundo e me virei para saber de uma vez quem era a pessoa tão temida que estava atrás de mim, e não reconheci o senhor bem vestido que me olhava com seriedade....
...—Sr. Rossini, desculpe pelo que presenciou, isso não irá se repetir. — A D. Vanusa disse com a voz trêmula. E eu entendi de quem se tratava, pois esse era o nome da fábrica, então provavelmente ele era o dono, não só da fábrica, mas de toda uma rede de lojas espalhadas pelo pais segundo os comentários de funcionários no horário de almoço....
...Seu olhar estava fixo no meu, até desviar para a minha superior amedrontada e pedir que ela o acompanhasse até a sala da gerência. Ela deixou que ele se distanciasse para me dizer em tom debochado para eu arrumar as minhas coisas, porque estava demitida....
...Claro que não queria perder meu emprego, mas não demonstrei fraqueza, continuei a encarando da mesma forma, sem abaixar o meu nariz. Mas assim que ela passou pela porta, relaxei meus ombros e me repreendi mentalmente, pois sabia que não seria tão fácil conseguir um novo emprego....
...Não tinha tantas coisas para arrumar, sempre fui muito organizada e a umas das poucas coisas naquela mesa que realmente me pertencia, era uma porta retrato com uma fotografia que eu não cansava de admirar, e foi a primeira coisa que guardei em minha bolsa....
...Continuei fazendo o meu serviço por meia hora, foi o tempo em que ficaram reunidos. E quando a porta finalmente se abriu, os olhos de Vanusa, antes arrogantes, agora estavam raivosos. Senti todo o seu ódio sobre mim com apenas um olhar, antes de sair sem dizer nada....
...Ainda sem entender, ouvi a voz do gerente da fábrica chamando pelo meu nome parado na porta da sala de reuniões....
...— Manuela, pode vir até aqui? — Assenti e me levantei totalmente desanimada com a bronca que tomaria antes de ser dispensada....
...Passei por ele e assim que entrei, ouvi a porta se fechar atrás de mim. O tal senhor Rossini estava sentado na cabeceira da enorme mesa, de cabeça baixa lendo atentamente um papel....
...— Sente-se Manuela. — Jorge, o gerente pediu educadamente. Ele era legal, até sorria para os funcionários quando tinha tempo....
...Ficamos em silêncio até o tal senhor sério terminar de ler o papel que estava em suas mãos e levantar seu olhar na minha direção....
...— Manuela, eu sou Alfredo Rossini, presidente da Rossini’s, e ouvi tudo o que disse a sua superior....
...— Senhor, peço desculpas pelo que presenciou, mas não pelo que disse a ela. — O interrompo e ele fica ainda mais sério....
...— Por favor, não me interrompa....
...Quero dizer que concordo com tudo que disse e que não tolero que nenhum dos meus funcionários seja tratado com desrespeito ou que seja privado dos seus direitos, e já tomei as devidas providências para que isso não volte a acontecer....
...Termine normalmente o seu dia de trabalho aqui na fábrica e compareça amanhã às oito horas nesse endereço. — Anotou o endereço em um bloco de anotações e arrancou a folha, passando sua anotação para o gerente, que me entregou o papel....
...Assim que sai da sala de reuniões, voltei para a minha mesa e antes de continuar o meu trabalho, pesquisei o endereço na internet e vi que o endereço era da empresa Rossini’s. Trabalhei o resto do dia curiosa para saber o motivo da minha ida até lá, mas não consegui pensar em nada bom, tinha certeza que seria demitida, só não entendia o porquê de ser lá e não diretamente na fábrica....
Continua...
...No dia seguinte, acordei bem cedo, vesti minha melhor roupa e tomei coragem para encarar seja lá o que estivesse me esperando....
...Era um prédio imenso e cheio de gente muito bem vestida entrando e saindo. No elevador, senti alguns olhares me julgando, pareciam pensar: — “O que essa pirralha faz aqui?”. Mas não me importei!...
...Após ser anunciada, não demorou muito até que Alfredo Rossini me recebesse em sua sala....
...
Alfredo Rossini...
...— Como vai Manuela? — Me perguntou assim que me sentei na cadeira a frente de sua mesa....
...— Bem, porém curiosa. Por que o senhor pediu para eu vir até aqui?....
...— Então gosta de ir direto ao assunto... Também prefiro assim....
...Manuela, eu vi a forma altiva como se comportou com a sua superior e também, como me disse, sem nenhum receio, que não se arrependia do que fez. Por isso estamos aqui, preciso de alguém como você aqui na empresa....
...— Não vai me demitir? — Eu tinha certeza de que seria demitida assim que ele começou a falar sobre o acontecido do dia anterior....
...— Não. Caso não aceite trabalhar aqui, poderá voltar a fábrica....
...Mas preciso de alguém como você ao meu lado e gostaria que aceitasse. — Naquele momento, várias coisas perversas passaram pela minha cabeça, desconfiei da sua boa intenção. Mas em nenhum momento percebi um olhar maldoso sobre mim. Olhava sempre diretamente em meus olhos, como se tentasse enxergar a minha alma e não a minha aparência....
...— Desculpe, mas não está sendo claro. Qual seria a minha função aqui na empresa? É sobre trabalhar aqui que estamos falando, não é? — Minha pergunta o deixa confuso por alguns instantes, mas logo entende a minha preocupação....
...— Não sou esse tipo de homem, Manuela. Meu interesse é extremamente profissional. — Me desculpei, ficando completamente envergonhada....
...— Estou um pouco cansado de funcionários que dizem sim e sorriem para qualquer coisa que eu diga por medo de perder o emprego, e por esse motivo você me pareceu a pessoa certa para o cargo....
...De início, você me acompanhará a reuniões e visitas à fábrica e as lojas. Mas preciso que se inteire de todos os setores, se aceitar, vou pedir que lhe apresentem a todos e lhe mostrem a empresa....
...Vi na sua ficha na fábrica que está cursando Design, e acredito que trabalhar aqui lhe trará bons conhecimentos para a sua área. E se tudo der certo, como acho que dará, poderá ter um cargo apropriado após se formar.— Ouço tudo com muita atenção e, ao mesmo tempo desacreditada, parecia um sonho....
...— A proposta me parece irrecusável, mas......
...Não sei se estou a altura desse cargo. Só tenho 19 anos e até alguns meses eu morava no interior, em uma fazenda, acredito que não tenho a experiência necessária....
...— Sou uma pessoa experiente, estou no ramo empresarial desde muito jovem, e posso lhe garantir que você é mais capaz do que imagina....
...Além disso, faremos uma experiência, caso não goste ou eu perceba que estou enganado ao seu respeito, tem a minha palavra que seu emprego na fábrica estará garantido....
...E foi assim que começamos a nossa história juntos, eu disse sim e ele me mostrou um mundo que eu desconhecia....
...Claro que no início não foi fácil, fui mal vista na empresa pelos mais antigos, que não facilitaram muito a minha vida, tive que lidar com comentários maldosos e até pensei em voltar para a fábrica. Mas recebi todo o apoio necessário dos que me amavam e conheciam a minha índole....
...Aos poucos fui conquistando o respeito de todos e a simpatia de alguns, mas eu entendo os que não Simpatizavam com a minha presença. O Sr. Alfredo tratava a todos com muita educação, mas eu era tratada como uma filha, ainda mais após ter a vida devastada pelo pior acontecimento da minha vida....
...Nem eu entendia a cumplicidade que criamos, mas ele era uma das poucas pessoas que acreditavam plenamente no meu potencial....
...Foram quatro anos de convivência diária, três deles eu passei totalmente focada no trabalho, era o que me dava forças para seguir em frente. E quando chegou o momento, ele cumpriu com o prometido, eu gostava tanto do que fazia e já conhecia tanto sobre a empresa que nem me lembrava mais de sua promessa para quando me formasse....
...Dias após a minha formatura, ele me apresentou a minha nova sala e anunciou o meu novo cargo de designer de joias aos meus colegas de profissão....
...Isso foi pouco antes da descoberta de sua doença. Um tumor crescia silenciosamente dentro dele e quando foi descoberto, já não tinha muito o que fazer, mesmo com todos os seus recursos financeiros....
...Ele não era um bom homem só na empresa, era casado a quase trinta anos e ainda era completamente apaixonado pela esposa, D. Carlota, que conheceu em um dos desfiles de sua marca e se apaixonou a primeira vista.
Dessa união nasceram o filho Vicente, que vive fora do país desde os seus dezoito anos e que até hoje eu só vi pelas capas de revistas de fofocas de ricos e famosos, e a filha Pietra, que hoje está com vinte anos e é modelo, assim como sua mãe na época em que conheceu seu pai....
...A esposa é uma pessoa excêntrica, mas tem bom coração, a filha é o rosto da marca e vive viajando a trabalho, antes a mãe a acompanhava, mas deixou de ir para dar atenção ao Sr. Alfredo. Já o filho, esse era a sua maior preocupação....
...Foi estudar fora para se preparar para assumir os negócios da família, mas se perdeu pelo caminho. Até estudou, se formou... Mas não voltou, como era o esperado. Vivia de festas e bebedeiras com os amigos e mulheres de todos os tipos, e ainda arrastava o sobrenome da família pelas revistas e jornais quando se envolvia em alguma confusão. Mas o que mais me chocou nele, foi não ter pego o primeiro voo para o Brasil quando recebeu a notícia da doença do pai. Eu, que nem sou filha, perdi o chão ao saber e não sairia do seu lado se fosse da família....
Continua...
...Meu chefe parecia bem e saudável, mas após o diagnóstico, tudo isso mudou drasticamente. Sua aparência ficou cada vez mais frágil e seu vigor já não era mais o mesmo. Até o dia que cheguei para trabalhar e soube da sua internação....
...Senti um aperto no peito como se adivinhasse o que viria pela frente. Procurei o contato de sua esposa e liguei para saber se ela se importaria se eu o visitasse de vez em quando. Ela disse que até seria bom para ele, já que sempre demonstrou grande apreço por mim....
...O visitava pelo menos três vezes durante a semana, ele sempre queria saber tudo sobre a empresa, e na última vez que consegui vê-lo com vida, me pediu que não deixasse sua empresa desmoronar, que ajudasse seu filho a cuidar de tudo quando ele já não estivesse mais nesse mundo....
...Eu disse que não pensasse nisso e que ficaria tudo bem. Mas naquele momento senti meu coração, que ainda estava frágil, se partir novamente em mil pedaços. Seu corpo frágil e sua voz fraca deixavam bem claro que sua partida estava cada vez próxima....
...Dois dias depois, cheguei para visitá-lo e me deparei com mãe e filha chorando abraçadas, tinham acabado de receber a notícia do seu falecimento....
Carlota Rossini, a viúva
Pietra Rossini, 20 anos, a filha
...Sai daquele hospital desnorteada, nem consegui voltar para a empresa. Fui para casa e tentei colocar toda aquela dor para fora em forma de choro, chorei desesperadamente até pegar no sono....
...Mais uma vez estava me sentindo sozinha no mundo e comecei a pensar se o problema não estava em mim, talvez não devesse me aproximar tanto das pessoas... Elas sempre partem e me deixam só....
...Acordei após horas, sem saber se era dia ou noite. Peguei meu celular na bolsa, que ainda estava jogada perto da porta e vi inúmeras mensagens. Algumas eram de colegas de trabalho, outras da Tati, minha melhor e única amiga, e uma informava oficialmente o falecimento do Sr. Rossini....
...E é por ele que estou aqui hoje, nesse lugar que quase me impede de respirar e faz meu coração parecer uma bomba relógio. Infelizmente, despedidas fazem parte da minha vida....
...Tentei me aproximar do caixão, tremia dos pés a cabeça, lágrimas silenciosas escorriam por baixo dos meus óculos escuros, quando alguém apressado esbarrou em mim e nem ao menos me olhou para se desculpar....
...O apressado usava óculos escuros e um terno preto feito sob medida, mas consegui reconhecê-lo, mesmo sem nunca tê-lo visto pessoalmente. E agora eu entendia a sua pressa, não queria perder o enterro do pai, já que já tinha perdido todo o resto....
...Em uma das visitas que fiz ao Sr. Alfredo, ele me confessou que tudo que queria era um abraço do filho antes de partir. Minha vontade era de ir buscá-lo pessoalmente e arrastá-lo pelas orelhas até o hospital, só para proporcionar essa alegria a um pai saudoso que amava seu filho incondicionalmente....
...Pensei por diversas vezes nos motivos que ele poderia ter para não voltar imediatamente e ficar ao lado do pai pelo resto de vida que tinha. Mas não consegui pensar em nada plausível, eu só queria ter a chance que ele teve de se despedir com calma e não aproveitou....
...Voltei para o meu lugar, próximo aos outros funcionários e observei a uma certa distância o choro sentido do filho debruçado no caixão do pai. Por mais que tenha sido um filho desnaturado nos últimos anos, tenho certeza de que está sofrendo....
...Murilo, gestor de compras da empresa, estava ao nosso lado, mas ao ver o estado do amigo, se aproximou para ampará-lo com um abraço. Lembrei de quando o Sr. Rossini contou que os dois eram amigos de infância e só se separaram quando o Vicente decidiu estudar fora....
...O Murilo se formou por aqui mesmo e começou a trabalhar na empresa do pai do amigo pouco depois de mim. Antes não tínhamos muito contato, mas depois que fui promovida, passamos a nos falar um pouco mais, o meu setor depende do dele....
...Assim que tudo terminou, voltei para casa pensando em tudo que vivi nos últimos anos e em como seria voltar a empresa sabendo que ele nunca mais voltaria....
...Chegando em casa, tomei um banho, preparei uma xícara de chá e me sentei na escrivaninha pensando que conseguiria por tudo que estava sentindo para fora enquanto desenhava modelos para a nova coleção, porque era assim que eu costumava lidar com a minha dor, trabalhando. Mas tudo que consegui, foram apenas alguns rabiscos que de nada serviram....
...— Como você está?...
...Vim direto do trabalho, você não respondeu minhas mensagens. — Sou bombardeada pela minha amiga ao sair arrastada da escrivaninha para abrir a porta....
...— Não quer entrar primeiro?— Falo saindo da frente da porta. Ela revira os olhos e passa por mim....
...— Passei o dia preocupada com você, queria ter te acompanhado, mas como sabe, estou bem próximo da minha promoção, não posso dar motivos para que desistam....
...Como se sente?— Se jogando no sofá enquanto fala....
...— Eu vou ficar bem Tati, mas obrigada pela preocupação. — Só pelo jeito como me olha, sei que não acreditou em minhas palavras....
...—Manu, sei que o assunto é delicado para você, mas sabe que te amo, e é por isso que vou falar. — Me deito no sofá com a cabeça apoiada em suas pernas e espero opara ouvir o que tem a dizer....
...— Sem rodeios, Tati, não estou raciocinando muito bem hoje.— Recebo um cafuné e fecho os meus olhos relaxando....
...— Eu estava pensando......
...Não seria o momento de tirar uns dias de férias e visitar seus pais?— Abro meus olhos e encaro o teto, ficando pensativa por alguns minutos....
...— Ainda não estou pronta!...
Continua...
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