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Irenoi

Capítulo 01

“Devido uma maldição lançada por um deus rebelde, que foi expulso do reino do fogo, as deusas dos três reinos; Água, Fogo e Ar, tornaram-se estéreis. Para que fosse possível dar continuidade as gerações, o guardião dos três reinos lançou uma benção sobre uma família humana, destinando todas as suas gerações futuras a serem prometidas aos deuses. E a cada mil anos, antes de tornar-se rei, um deus vem a terra para encontrar sua prometida..."

— E como ele encontra ela? Eles se casam? — perguntou Renata com seus grandes olhos escuros, sentada na primeira fileira, me olhando como se esperasse que eu tivesse a resposta na ponta da língua.

Fechei o livro em minhas mãos e coloquei sobre a mesa atrás de mim.

— Sim eles se casam e vivem felizes para sempre. — O sinal tocou no mesmo momento e sorri satisfeita.

Estava contando aquela história para crianças de sete anos, por aquele livro ser a única coisa que vi em minha bolsa na hora que entrei na sala de aula. Suzana, a professora da turma, teve um problema com o filho — como em quase toda semana — e pediu que eu ficasse na sala por meia hora até o sinal tocar.

Apesar de ser formada em pedagogia, eu trabalho como auxiliar de professora no infantil II, então tudo o que faço é auxiliar durante as brincadeiras e atividades, limpar cocô e ficar esperta para que eles não se machuquem. Isso quando a professora Inês não dá uma de esperta e me encarrega da agenda e outras coisas que são trabalho dela.

Assim que o último pai buscou o filho peguei minha bolsa sobre a mesa e saí caminhando pelo corredor barulhento, cheio de crianças e pais.

Com toda a minha falta de animação, segui para a sala dos professores onde encontrei Stefany, a professora mais chata que eu já tive o desprazer de conhecer. Ela é professora das crianças maiores.

— Você viu? — perguntou exatamente quando eu revirava os olhos entrando na sala.

— O quê? — Coloquei a bolsa sobre a mesa e fui em direção a cafeteira.

— O novo professor do nono ano.

Enchi uma xícara com café e voltei para a mesa. Me perguntava o quê eu tinha a ver com novo ou velho professor.

— Não. O que tem ele? — Puxei a cadeira e sentei colocando a xícara sobre o tampo de madeira rústica que brilhava de tanto que a faxineira limpava.

— É lindo, um homem alto de boa aparência, sorriso encantador, usa camisa social bem passada, tem alguns cabelos jogados na testa. Sexy demais, até as alunas ficaram cochichando interessadas.

— Que horror! — Fiz uma careta enquanto abria minha bolsa para retirar alguns papéis que Inês pediu que eu entregasse a coordenadora.

— Como assim horror? Você precisa vê-lo!

— Que horror você insinuar que as meninas estavam interessadas no professor!

— Mas não é o que essas "crianças" fazem? — Olhei para ela que fazia aspas no ar. — Não podem ver um homem mais velho...

— Stefany você é professora, devia ter vergonha do que está dizendo — repreendi e ela bufou. — Devia cuidar dessa língua.

Os olhos da mulher estavam fulminantes, como se eu tivesse dito algum absurdo e ela já ia abrir a boca para retrucar, mas outras professoras entraram na sala antes.

Eu já previa qualquer dia denuncia-la a secretária, pois conseguir ser a humana menos qualificada a educar crianças, mas infelizmente por aí existem muitas Stefany's que ninguém denuncia ou coloca elas em seus devidos lugares.

Voltei minha atenção para as folhas que estavam misturadas a toda bagunça em minha mochila, porque sim, eu prefiro usar mochila do quê uma bolsa que não cabe toda a minha bagunça e não combina nada com minha personalidade.

Quando o último sinal tocou as classes das crianças maiores começaram a sair e mais professores chegaram na sala. Por sorte eu já tinha terminado e ia almoçar.

Então, quando levantei, eu o vi. O homem alto exatamente como Stefany descreveu; lindo e sexy. Como se não bastasse o sorriso encantador, tinha também uma covinha do lado direito e observei isso ao vê-lo sorrir cumprimentando as professoras que se derreteram.

Os outros professores do sexo masculino o olhavam com desprezo, com certeza com inveja de sua beleza e carisma. Ele exalava carisma.

Como podia ser tão lindo?

Balancei a cabeça para clarear as idéias e sai da sala. Aquela era a reação de uma típica solteirona como a Stefany, que estava encalhada há anos.

Eu estava solteira por opção. Dizia isso a mim mesma quase todos os dias.

Naquele dia eu ia almoçar com minha mãe, que é enfermeira chefe no (HGM) hospital da cidade de Irenoi. Dona Emilia apesar de dar duro no hospital, quando não está trabalhando monta uma barraca no calçadão principal da cidade e vende seus artesanatos que consta em bonecas de pano e tapetes que ela faz enquanto supostamente descansa.

A casa de meus pais fica não muito longe da escola, mas eu não vivo mais com eles, optei por viver sozinha, lá pelo centro da cidade. Já faz uns dois anos que decidi deixar meus pais com sua privacidade. Eles são um casal muito namorador — se é que me entendem — e costumam viver com esse namorico em todos os cantos, isso quando não saem para passeios e assistem filmes românticos juntos. Eu como filha única e solteirona, não aguentei ficar presenciando isso por muito tempo.

Ser solteira e viver sozinha em uma cidade pequena infelizmente é motivo para fofocas.

Irenoi é cheia de simplicidade, cores vivas, muitas flores e fofocas pelos cantos dos muros. Localizada á beira do rio Iran, a cidade atrai muitos turistas. Na entrada fica o porto — local em que meu pai trabalha — onde grandes navios descarregam comidas, bebidas, entre outras coisas que abastecem não apenas o comércio local, como o de toda a região aos arredores.

Lá do porto, seguindo pelo calçadão que contorna o rio — e ponto fixo das barracas com artesanatos aos fins de semana -— você passa na frente da escola onde trabalho e também de algumas pousadas e bares, terminando a caminhada ao chegar no Lagosta — um dos maiores restaurantes da cidade, que além de ter uma ótima culinária, fica diante de uma vista maravilhosa para o rio e disponibiliza passeios de barco.

Se afastando do rio você encontra a avenida central, onde é localizada a maior parte do comércio local, mas nem de longe é meu lugar favorito. Ali perto fica a única praça da cidade, que é próxima também da reserva florestal, onde há uma área direcionada a trilhas no parque que possui um rio bonitinho que deságua no rio Iran. O lugar é repleto de flores, com um clima agradável, por isso costumo ir aos fins de semana, para relaxar um pouco enquanto leio.

A minha casa fica em um dos tantos becos estreitos, cheios de cores, entre a avenida principal e o rio. O casarão nas cores branco e azul, de dois andares, acomoda na parte de baixo a quitanda da tia Lena e subindo a escada pela lateral se chega em minha varanda pequena, cheia de flores e cadeiras azuis de ferro. A sala de casa é pequena, a cor predominante é um tom de verde clarinho que eu amo, mas o colorido está por toda parte. Não troco meu cantinho por nada, gosto da minha privacidade, de encontrar as coisas exatamente como deixei e os únicos sons que escuto vem da rua. Quando lá fora se cala, dentro de casa é total paz.

As pessoas não cansam de perguntar quando vou casar, como se estivesse velha demais e fosse obrigada a casar antes dos trinta. Aos vinte e quatro anos, não me sinto uma pessoa velha e nem sinto necessidade de trazer alguém para o meu mundo. Não quero ninguém bagunçando minha casa, apesar de que às vezes sinto falta de uma bagunça em meus lençóis, mas prefiro tudo exatamente como está, não preciso de um marido, nem filhos. Já tenho muitas crianças para cuidar na escola.

— Semana que vem é aniversário do seu pai, nós vamos fazer uma viajem — dizia minha mãe colocando o prato à minha frente. — Apenas um fim de semana.

— O que devo comprar pra ele? — perguntei enquanto misturava a comida no prato.

— Aquelas varas de pescar automáticas, não sei bem como é aquilo, mas semana passada vimos na TV e ele falou que queria uma. — Confirmei com a cabeça, trazendo a comida até a boca. — Chegou uma médica nova no hospital. A mulher é bonita, deve ser bem mais velha que você, tem cabelos escuros que batem lá na cintura, toda altiva com a voz firme. Até já se meteu em confusão quando deixaram um paciente grave esperando. — Eu apenas ouvia o que minha mãe tagarelava.

Ela gosta de ficar falando mais do que comendo e se eu fosse prestar atenção, às horas passavam e mal conseguiria descansar.

— Você vai ficar com a sala daquela professora hoje a tarde de novo? Ela vai pagar alguma coisa?

— Sim, mas só até sexta — respondi com a boca cheia.

— Não fala com a boca cheia. — Deu um tapinha em meu braço e levantei o olhar para encará-la.

— A senhora fica falando enquanto como! — Ela riu.

Minha mãe é jovem ainda — engravidou muito cedo. Seus grandes olhos castanhos são intimidadores, sempre me fitando atentamente enquanto como. Não herdei muito dela, carrego no rosto os traços de meu pai. Meus olhos pequenos são esverdeados, minha pele branca já é bronzeada do sol diário, enquanto os cabelos são de cor mel, com raiz lisa e o resto encaracolado, batendo pouco abaixo de meus ombros, com uma franja que cortei há anos e nunca mais permiti crescer.

— Não vejo a hora de você fazer o concurso público. — Confirmei com a cabeça. — Ah, quem eu vi hoje cedo foi a Victoria. Falou pra você aparecer lá no café. Sabe o que estavam fofocando? Que o Thomas tem um caso com outra, me pergunto quem é a doida...

— Mãe! — exclamei a interrompendo, em seguida tomei um gole d'água. — Primeiro que o Thomas ama a Victoria, segundo que ele é um homem lindo e sim, deve ter muita mulher que o deseja.

— Homem... — murmurou de forma irônica.

Eu odiava quando ela tocava naquele assunto. O fato de Thomas ser transexual, por mais que o tempo passasse, era motivo para fofocas e até eu já tinha entrado no meio delas devido ao fato de ser amiga de Victoria.

— Daqui a pouco vão dizer que é você a amante.

— Que digam! Não sou mesmo. — Fiquei em pé, levando o prato até a pia e comecei a lavar. — Essa gente devia ir procurar uma lavagem de roupa. Coisa chata! Se é solteira é porque pega todo mundo, se ta casado ta traindo, povo chato do caralho.

— Luiza, olha a boca! — Ri alto ao ouvi-la falar como se eu fosse uma criança.

— Paciência dona Emília, é o que eu não tenho com essa gente. Acredita que da sala da minha casa ouvi meu nome sendo pronunciado na quitanda da tia Lena?

— Falando o quê?

— Casamento, claro! Fui lá perguntar o quê de tão interessante estavam falando.

Mamãe riu.

Ela sabia que eu era do tipo que entrava em uma briga fácil, independente do assunto ser ou não comigo, e mais fácil ainda quando se tratava de fofoca a meu respeito.

Terminei de lavar a louça e coloquei na escorredeira, depois peguei um pano de prato para secar as mãos, voltando para a mesa.

— Você não arranja nem namorado, imagine casar.

— Justamente! E fique claro que não quero cobrança sobre isso, estou muito bem sozinha. — Vi o bico que ela fez, mas ignorei. — Agora vou descansar um pouco, daqui a pouco tenho que voltar.

— Descanse porque eu vou voltar para o hospital — dizia ela me seguindo para a sala. — Você e essas roupas de velha, desse jeito nunca vai encontrar ninguém mesmo.

— A senhora devia ser a primeira a me dizer para não usar roupas curtas. E não são roupas de velha, é um estilo retrô!

Dei uma voltinha exibindo minha calça cintura alta, frouxa, com cinto e um suéter largo por dentro. Confesso que não era a roupa mais bonita, mas foi a mais confortável que encontrei quando acordei atrasada. Também não era sempre que eu apostava num estilo anos 90, 80 ou seja lá qual ano seria.

Tinha que aproveitar também a sorte de Irenoi estar com o clima um pouco mais frio, ao ponto de me permitir usar suéter.

Deitei no sofá e fechei os olhos enquanto esperava a hora de voltar para a escola.

O hospital não ficava tão longe, uma rápida caminhada de dez minutos era suficiente, mas mamãe sempre saía antes de mim.

Faltava quarenta minutos para uma da tarde quando saí de casa, descendo a longa escadaria em direção a avenida do Rio, mas quando me aproximava da escola me deparei com uma aglomeração de pessoas na calçada.

Pretendia passar direto, mas aproveitando que o fraco sol do dia estava escondido atrás das nuvens e eu ainda tinha alguns minutos para bancar a curiosa, acabei parando para ver do quê se tratava.

Ao longe ouvi um barulho de sirene de ambulância, em meio às pessoas havia alguém no chão e uma mulher de longos cabelos escuros usando roupas em tons claros estava ajoelhada fazendo massagem cardíaca incessantemente, até o socorro chegar e ela rapidamente exigir aos gritos que abrissem caminho, pois as pessoas pareciam mais preocupados em vê o rosto do paciente do quê com a rapidez de seu socorro.

Em meio a toda aquela correria dos paramédicos colocando o paciente na maca e o levando para o carro, notei que ao pegar a bolsa do chão a mulher deixou cair a carteira aos pés de um homem que estava próximo e ao invés do indivíduo alertá-la, olhou para o lados, pegou a carteira do chão e ficou quieto. Notei que ela ia entrar na ambulância por isso gritei antes chamando sua atenção, me enfiando entre as pessoas, então ela parou virando para mim avisando aos paramédicos que fossem na frente.

Quando voltei a olhar para o homem, ele já dava as costas, mas antes que se afastasse agarrei em sua blusa e ele virou para mim com os olhos arregalados.

— Sua carteira caiu, mas esse senhor muito prestativo apanhou. — Mantive o olhar fixo ao do homem que vendo todos o encarando sorriu amarelo, estendendo a carteira para mim que puxei de sua mão.

Virei para a dona da carteira que já tinha se aproximado e estava ofegante, mas deu um sorriso recebendo o objeto.

— Muito obrigada, você salvou minha vida. — A mulher deu um sorriso cheio de alívio.

— Nada mais justo, você quem provavelmente salvou a vida daquela pessoa — falei vendo ela abrir a carteira e conferir.

— Muito obrigada mesmo. Pagarei um suco ou café, caso nos encontremos novamente — disse já se afastando.

— Não precisa se preocupar — afirmei dando um breve aceno e segui meu caminho para a escola, assim como todos já haviam seguido para seus destinos.

Com certeza eu a veria novamente, afinal em uma cidade pequena não é nada difícil isso acontecer.

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...A história da Victoria e o Thomas, mencionados lá encima, é um conto que vou disponibilizar no próximo capítulo desse livro mesmo. 🤎...

Capítulo 02 • Especial

...Victoria & Thomas...

Seria só mais uma história de amor entre dois amigos de infância se o amigo em questão não tivesse nascido com uma vagina e a amiga aqui não fosse uma garota cega(pelo menos quando se tratava de amor).

Minha mãe contou que quando o Thomas nasceu ela olhou para o rostinho dele e disse que parecia o joelho do meu avô Simão. Mais tarde, juntas nós o apelidamos secretamente de knee(Joelho em inglês) para ficar mais bonitinho.

Mamãe era como se fosse irmã da mãe dele que morava de frente para a nossa casa e isso contribuiu para que eu e ele nos tornasse amigos.

Temos apenas um ano de diferença e crescemos com muitas coisas em comum além do nome da rua, o amor incondicional por chocolate e o vício naquela música do filme Footlose.

O primeiro nome do Thomas foi Flora. Deus sabe o quanto ele detestava aquele nome desde os oito anos de idade e por esse motivo nós pesquisamos até encontrar um que fosse mais a sua cara. Só que eu não esperava que ele fosse escolher "Thomas".

Como achei super estranho tentei diversas vezes convencê-lo a mudar, mas foi inútil, desde então ele só queria ser chamado daquela forma.

Como posso chamar minha amiga por esse nome? Pensava comigo mesma na época.

Ele tinha traços delicados, lábios finos, cabelos bagunçados, loiros e encaracolados. Seus olhos eram verdes e expressivos, o sorriso chegava a encher os olhos mesmo às seis e meia da manhã quando abriamos a porta de casa na mesma hora — em perfeita conexão telepática — para irmos à escola.

A primeira menstruação de meu amigo foi assunto na rua Flor de Lis durante uma semana inteira devido o alarde que ele fez. A mãe de Thomas era uma mulher divorciada e por isso rolavam fofocas sobre ela fazer programas e todos os tipos de trabalho de procedência duvidosa, mas isso era segundo os moradores da pequena cidade de Irenoi, então eu não poderia afirmar com certeza.

Talvez minha mãe soubesse a verdade sobre os trabalhos de Sara, mas nunca me diria.

Sendo Sara a única a sustentar a casa e tendo além de Thomas, também Hugo e Beatriz — os gêmeos de dezoito anos que viviam mais fora que dentro de casa — acabava não dando atenção aos filhos.

Flora, aos doze anos tudo o que sabia sobre a puberdade era devido as conversas que tinha comigo.

Minha mãe por outro lado sempre esclareceu tudo antes mesmo de acontecer.

Voltando a primeira menstruação de Thomas que gritou tanto e tão alto fazendo até mesmo eu que estava em casa me assustar. Foi o começo de uma parte difícil na vida dele, pois foi a partir daí que o nome "Thomas" começou a fazer sentindo para nós. Ele começou a se questionar sobre o motivo de não ser como os garotos ou sentir-se como as pessoas esperavam. E alí se iniciava a tortura por ter nascido com aquele corpo.

Isso poderia passar despercebido por qualquer garota, afinal todas nós pelo menos uma vez na vida desejamos ter nascido homem para não ter que passar por aqueles dias vermelhos, mas para mim que era tão próxima a ele cheguei a conclusão que de fato ele "queria ser um homem".

Com certeza errei diversas vezes devido a minha forma de pensar, mesmo que fosse por ser jovem e faltar informação.

Meus conselhos eram sempre para ele esquecer aquilo, pois seu corpo era lindo e que um belo rapaz o amaria e o faria feliz como qualquer outra pessoa. Era uma fase.

Seu primeiro amor aconteceu aos quatorze anos e me chocou, não pude negar. Foi motivo para nossa primeira briga em anos. Eu queria tirar aquilo da cabeça dele de algum jeito.

Não era possível que minha amiga estava apaixonada por uma menina, assim como li acidentalmente na última folha de sua agenda.

Sim, eu era tola o suficiente para achar que seria possível mudar sua cabeça.

— Você não entende que eu só quero o seu bem? —  gritei tomando a agenda da mão dele, jogando num canto do quarto.

— Não! — gritou de volta. — Porque você não me entende! E nunca vai me entender!

Estava preocupada por vê-lo sofrendo ao sentir-se diferente devido ao corpo — entre outras coisas — e não queria que também sofresse por causa da sexualidade. Queria que ele se apaixonasse por um garoto assim como eu que naquela época estava apaixonada por um menino da minha sala e era correspondida.

Infelizmente na minha cabeça Ele, ainda era Ela e ponto, por mais que entendesse o desejo dele ter nascido com um outro corpo, eu não era capaz de vê-lo de outra forma, nem respeitar suas escolhas e quem realmente era.

A partir daí nós começamos a nos afastar, então percebi que ele andava com um grupo de garotas que todos no colégio chamavam de sapatão.

Quando ele começou a de fato namorar uma garota percebi que realmente estavamos distantes, tudo o que sabia era que ela tinha quatro anos a mais que ele. Mas no fim o namoro durou apenas seis meses e quando eu soube que eles terminaram tentei me reaproximar e acabou que o consolei por ter sido trocado.

Assim nossa amizade seguiu firme e forte. Ele não voltou a namorar. Quanto a mim, tive algumas lições e decepções com garotos, mas nada que me afetasse o suficiente para sofrer.

Éramos tão inseparáveis que não sobrava tempo para mais nada, nem havia necessidade de mais ninguém.

Aos dezoito eu já de fato estava acostumada a chama-lo por Thomas e ele tinha um visual tomboy — com a aparência totalmente de um menino — bem bonitinho por sinal.

Mas aos dezenove quando consegui fazer intercâmbio em outro país, fui pega de surpresa por ele que simplesmente do nada declarou seus sentimentos por mim em meio a loucura de um aeroporto, rodeados por pessoas indo e vindo enquanto eu não sabia como reagir.

— Thom eu... — As palavras fugiam de minha mente, eu estava prestes a entrar em pânico.

— Não precisa dizer nada, eu entendo — falou sem conseguir olhar em meus olhos. — Só não aguentava mais guardar isso e queria que você soubesse.

Minha mãe surgiu na hora e nossa despedida ficou vaga, pois eu não soube o que dizer e nem como dar adeus depois daquilo.

Mesmo trocando mensagens não toquei no assunto do aeroporto e nem ele. Meses depois fiquei sabendo que Sara o colocou para fora de casa por causa de um novo marido com quem ele vivia brigando e foi minha mãe quem o acolheu.

Mamãe era uma mulher a frente do seu tempo e com um grande coração. Ela era do tipo que quando não entendia algo buscava pesquisar sobre o assunto mesmo que fosse em livros na biblioteca da cidade. E só dava um veredito sobre o assunto depois de estar bem informada. Era assim em qualquer área de sua vida. Foi ela quem ao ter acesso a Internet tentou entender sobre a transexualidade de Thomas e juntos eles tomaram a decisão sobre a transição.

Minha vida mudou muito e tomou um rumo que eu não imaginava. Quando dei por mim os anos já tinham passado e eu não voltei ao Brasil uma vez sequer em cinco anos. Tomei a iniciativa apenas quando Ryan —  um amigo desde que cheguei aos Estados Unidos e com quem namorava a quase um ano — me pediu em noivado e estava disposto a ir pessoalmente pedir minha mão aos meus pais.

Animada com a idéia de voltar pra casa, programei a viagem e avisei a todos bem antes.

Thomas ainda morava com meus pais e a única coisa que eu sabia sobre a transição era que sua voz estava bem mais grossa. Conversávamos bem pouco por ligação, talvez uma vez a cada um ou dois meses. Não sei porquê era estranho falar ao telefone e como não tinha redes sociais sempre que eu pedia fotos ou chamada de vídeo ele dizia para ir vê-lo pessoalmente.

Voltar para Irenoi depois de anos foi muito bom. A rua Flor de Lis era a mesma, a antiga casa de Thomas ainda era na cor amarela, só que desbotada, mas as crianças já não brincavam correndo pelas ruas como nós costumávamos fazer, provavelmente estavam em suas casas devido ao vício em internet.

Quando fechei a porta do carro vi minha mãe praticamente correndo para abrir o portão. Ryan entrelaçou os dedos aos meus e nós dois seguimos de encontro a mulher que me pegou em um forte abraço cheio de saudade. Logo também meu pai agarrou-me com força, quase me deixando sem ar e quando me soltou meus olhos caíram sobre ele; Thomas. Estava muito diferente e até mesmo tinha no rosto uns pelinhos loiros que podiam ser considerados barba.

Eu nem conseguia acreditar que era a mesma pessoa de anos atrás.

Nós não tivemos nenhuma reação inicial, apenas nos encaramos enquanto me perdia naquela imensidão verde que eram seus olhos, os únicos que pareciam exatamente os mesmos, lindos e capaz de prender qualquer pessoa alí.

Tive certeza de que a saudade que antes não parecia se fazer presente queria se manifestar em forma de lágrimas, mas Ryan chamou minha atenção, eu precisava apresentá-lo aos meus pais, afinal ele não falava nem entendia nada de português, mesmo assim demos um jeito e seguimos para dentro.

O almoço não foi tão agradável por eu ter que ficar intermediando a conversa que meu pai queria ter com meu noivo e enquanto isso Thomas não tirava os olhos de mim.

Sentia-me estranhamente desconfortável.

Fui salva durante a tarde quando Angela — minha prima — chegou para me ver e como ela sabia inglês aproveitei para escapar deixando-a entre eles na sala, indo conversar com minha mãe na cozinha.

Quanto ao Thomas depois do almoço pediu licença e saiu sem dizer para onde ia ou falar comigo uma vez sequer.

— Você ainda tem o mesmo rosto de cinco anos atrás — dizia minha mamãe passando os dedos suavemente em minha pele.

— Tudo graças a genética. — Sorri retirando a mão dela de meu rosto e segurei entre as minhas mantendo-as sobre a mesa.

— Por que você e Thomas não se falaram? — perguntou ela que era muito observadora.

— Não somos os mesmos, acho que não é como se fossemos sentar e falar sobre a vida como sempre, mas podemos conversar um pouco depois.

— Por que não? São como irmãos praticamente desde que ele nasceu. Agora fala como se alguns poucos anos os tornassem estranhos. — Baixei a cabeça, pensativa. — Ele esta passando por uma fase difícil. Na verdade a vida dele é difícil, desde o convívio com a mãe até às questões que você já sabe muito bem — continuou. — Para completar, as pessoas na cidade são preconceituosas é complicado para ele arranjar emprego. Seu pai as vezes paga a diária para ajudá-lo na loja, mas não é grande coisa.

— Ele não está bem? — perguntei não escondendo a preocupação em meu tom de voz.

— Vai lá, fale com ele — incentivou. — A essa hora deve está ajudando a Sônia na padaria.

Eu tinha esperanças de que assim como aconteceu quando tínhamos quinze anos, poderíamos nos reaproximar novamente. Não seria tão difícil, afinal nos falavamos uma vez ou outra pelo menos, mesmo que fossem poucas palavras sempre perguntavamos como estava a vida um do outro.

Ainda existia interesse e preocupação.

Atravessei a porta da padaria de dona Sônia que como sempre me recebeu com um sorriso de boas vindas. Ela tinha alguns notáveis fios brancos me fazendo perceber o quanto o tempo passou desde a época em que eu e Thomas entrávamos lá depois da aula para comprar sonho. Meu amigo não demorou a surgir usando um avental e carregando uma sacola de pães que entregou a uma freguesa que o esperava.

— Meu filho, você já me ajudou o suficiente por hoje — disse dona Sônia colocando dois sonhos dentro de uma sacola. — Vá e coma com a Victoria. — A mulher sorriu de forma terna para ele e depois para mim.

Senti-me feliz por estar alí, no lugar onde estive tantas vezes durante a vida, diante de uma senhora que fez os sonhos que eu e meu amigo comíamos quando ele ainda era tão incompreendido por mim. E era lindo ver que a mulher o tratava tão bem, pois eu sabia que não eram todos na cidade que costumavam ser assim.

Thomas agradeceu e após tirar o avental fez a volta no balcão, só então seus olhos encontraram os meus e sem dizer nada nós dois saimos em direção a praça, permanecendo em silêncio até sentarmos em um banco.

Ele abriu a sacola e entregou-me um sonho.

— Qual é o seu sonho? — perguntou.

Aquela era a mesma pergunta que faziamos quando crianças e comiamos um sonho para casa sonho, digamos assim. Peguei o doce em minhas mãos e ao colocá-lo diante dos olhos franzi o cenho.

— Hmm, não tenho nenhum — respondi virando o rosto para encará-lo.

— Como não? Você sempre teve muitos. — Encolhi os ombros. — Já realizou tudo nos Estados Unidos? Até mesmo aquele de ser uma dançarina de boate? — Dei uma risada jogando a cabeça para trás ao ouvi-lo lembrar daquilo.

— Não lembra disso, eu tinha onze anos! — Dei um tapinha no ombro dele que sorriu. Um sorriso lindo, mostrando todos os dentes perfeitos, o mesmo sorriso animador de sempre.

— A garota de onze anos mais pervertida daquela época.

Semicerrei os olhos fuzilando ele que encolheu afastando-se no banco, mas depois com uma risada gostosa voltou a se aproximar.

— E você, qual o seu sonho? — Levei o sonho a boca e dei uma mordida esperando que ele dissesse alguma coisa, mas ficou em silêncio baixando a cabeça, então moveu negativamente.

— Não é algo que o precioso sonho da dona Sônia possa ajudar a realizar. — O observei suspirar cabisbaixo do jeito que eu mais odiava vê-lo no passado e naquele momento não foi diferente.

— Ei, não fique assim. Vamos, faça um pedido silencioso de todo o seu coração e dê a primeira mordida, assim ele irá se realizar — repeti as palavras que costumávamos dizer.

Thomas me encarou, seu olhar indecifrável me deixou confusa o suficiente para desviar o meu rapidamente e ele fez exatamente o que eu disse. Fechou os olhos e fez o pedido antes de morder.

Passamos poucos minutos conversando. Eu contei um pouco sobre o meu trabalho em uma editora e ele sobre como foi o início da transição. Não conversamos sobre relacionamentos, apenas sobre nossas vidas de forma que não incluíssemos ninguém além de nós mesmos, mas eu sabia que Ryan devia estar desconfortável em minha casa então decidi não demorar muito.

Os três dias que passei no Brasil foram suficientes para que eu desejasse ficar de vez, mesmo assim fui embora depois de me despedir de minha família e de Thomas com quem pude conversar apenas algumas vezes devido ao fato de não querer deixar Ryan sozinho. Antes de voltar eu o incentivei a não desistir da busca por emprego e mesmo que fosse difícil ele jamais devia baixar a cabeça para ninguém naquela cidade. Pelo pouco que falamos percebi que ele gostava de ajudar na padaria e tinha aprendido a fazer muita coisa por isso incentivei que investisse nesse ramo.

Naquela semana eu não consegui trabalhar direito, sempre pensando no quanto desejava estar em Irenoi com minha família e meu amigo.

Foram dois dias até eu pegar o telefone e ligar para ele que atendeu com a voz rouca, só então percebi que no Brasil era um pouco mais tarde.

— Você nunca atrapalha — disse ele ao me desculpar pela hora. — Algum problema?

— Não, eu apenas... — Fiquei muda, nada saiu, afinal eu não tinha nenhum motivo aparente para ligar naquela hora.

E dizer apenas que senti saudade, pela primeira vez pareceu estranho por isso senti-me ainda mais nervosa.

— Sentiu saudades?

Sorri ao ouvi-lo pronunciar exatamente o que eu estava pensando.

E não foi um sorriso qualquer, foi um sorriso bobo e envergonhado. Não me sentia falando com meu velho amigo e não era devido as mudanças em sua aparência e na voz, afinal sua essência era a mesma.

Foi naquele breve momento entre um sorriso, o silêncio a seguir e o som de sua respiração, que percebi algo. Provavelmente sempre esteve ali e eu quem sempre fui péssima quando se tratava de sentimentos, mas naquele momento tive certeza de que o amava e não era apenas como irmão, era um amor muito além de todos aqueles motivos bobos que insistiamos em permitir nos afastar.

Percebi que todos aqueles anos que me mantive afastada foi devido ao medo por sua confissão. Eu tive medo de ser pega me questionando sobre minha própria sexualidade. Evitando entender tanto sobre gênero, quanto sobre os meus sentimentos.

Mas a partir dali eu não quis mais correr o risco de perder a única pessoa que me fez feliz de verdade, mesmo que como amigo. Era com ele que eu dava minhas melhores risadas, com quem eu poderia passar 10, 30 ou 100 anos sem falar ou até mesmo discutir, sempre seria o mesmo, sempre fariamos as pases, teríamos aquelas conversas bobas e os bons conselhos.

Em todos os meus relacionamentos eu acabava sendo fria e distante, isso era motivo para brigas e términos. Com Ryan estava durando não por nos amarmos loucamente, mas porque a personalidade dele se encaixava perfeitamente com a minha e aquilo de quando um não quer dois não brigam era a melhor definição para nós. Mas um relacionamento sem brigas não significa ser perfeito, nem que ambas as partes estão completamente felizes. Era comodismo apenas.

Voltei para o Brasil naquele mesmo mês, após dar um fim ao meu noivado.

Eu não tinha avisado sobre minha volta e ao chegar na rua Flor De Lis senti meu estômago revirar, minhas mãos ficaram geladas e o coração acelerado.

Quando o táxi parou respirei fundo e saí, mas ao invés de entrar no portão de minha casa ouvi a voz de Thomas vindo da direção de sua antiga residência e logo o avistei saindo de lá usando uma camisa branca suja de tinta amarela. A casa atrás dele tinha uma cor viva, iluminada assim como seu sorriso ao me ver.

Meu peito parecia a ponto de explodir e a vontade de abraça-lo era imensa.

Eu sabia que não havia sido uma boa amiga nos últimos anos. Me sentia péssima por saber que por um medo bobo não estive ao lado dele em um dos momentos mais importantes de sua vida; a transição. Devido a distância não tinha idéia de tudo o que ele havia passado, como se sentiu dia após dia em que viu as mudanças no próprio corpo, como foi lidar com os olhares e comentários, além dos desentendimentos com a família.

Era compreensível que ele já não sentisse o mesmo de antes e que eu levasse um grande fora, mesmo assim não pensei em nada disso quando larguei as malas na calçada e corri ao encontro do homem mais lindo que meus olhos já viram.

Nossos corpos se chocaram com tanta força que ele deu alguns passos atrás enquanto passava os braços ao redor de minha cintura.

— Que surpresa boa — falou sorrindo sem me largar.

E eu também não o largaria, não conseguiria antes de dizer o que estava entalado em minha garganta.

— Thom... —  Funguei, estava com os olhos cheios de lágrimas e me segurando para não chorar. A saudade que senti dele naquele último mês pareceu ainda maior que a de anos. — Eu amo você.

Ele nada disse.

Ficamos em silêncio enquanto eu mantinha o rosto escondido em seu pescoço até ele quebrar o silêncio.

— Eu também amo você. Sempre amei, você é minha melhor...

— Não! — Afastei o rosto para encará-lo. — Não como amiga. Eu amo você como mulher! Amo o homem, a pessoa que você é. — Ele pareceu sem voz e logo atrás percebi que minha mãe nos olhava, mas a ignorei voltando a fitar aqueles lindos olhos verdes que estavam cheios de lágrimas. — Diz alguma coisa! — Praticamente implorei tamanho  nervosismo e ele sorriu.

— Meu sonho se realizou. Meu pedido era você, sempre foi você e ainda é. — Suas mãos seguraram meu rosto e fechei os olhos a espera de sentir seus lábios que não demoram a unir-se aos meus.

Seu beijo lento, doce e cheio de sentimento me causou a melhor das sensações.

Durante a adolescência eu dei no máximo um selinho nele, mas não chegava nem perto daquele beijo que foi capaz de me levar ao céu. E eu nunca imaginei que, o que me levaria até lá estivesse sempre tão perto de mim.

Como a mãe dele tinha ido embora e os irmãos já tinham suas próprias vidas bem longe dali, Thomas ficou com a casa. Eu não demorei muito tempo para levar minhas coisas para lá, desde então estavamos casados. Meus pais — principalmente minha mãe — foram completamente a favor de nossa relação.

Em seis meses juntos nós abrimos o Flores, Livros e Um Café, já que sempre amei as flores e os livros e ele fazia ótimos pães e salgados, assim podíamos vender tudo em um só lugar.

Com Thomas coloquei minha vida nos trilhos. Seguimos fazendo coisas simples, mas que amávamos, mesmo que grande parte da pequena Irenoi fofocasse a nosso respeito. Vivemos nossas vidas da forma que queríamos, juntos sendo amigos, irmãos e eternos namorados.

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...Próximo capítulo volta a “programação normal” de Irenoi....

Capítulo 03

"Enquanto uma chora, outra ri; é a lei do mundo, meu rico senhor; é a perfeição universal. Tudo chorando seria monótono, tudo rindo cansativo; mas uma boa distribuição de lágrimas e polcas, soluços e sarabandas..."

— Acaba por trazer à alma do mundo a variedade necessária, e faz-se o equilíbrio da vida — completou a voz masculina finalizando o trecho que eu lia.

Estava encostada a uma estante na biblioteca da cidade durante uma tarde de sábado que decidi vasculhar as prateleiras, parando vez ou outra para ler trechos aleatórios dos livros de Machado de Assis.

Busquei com o olhar o dono da voz, mas percebi que ele estava na fileira de trás, encostado a estante de costas para mim, parecendo folhear um livro.

— Quincas Borba, capítulo XLV — completou fechando o livro em mãos.

Ele virou-se em minha direção, se inclinando um pouco para me ver por entre os livros, colocando a capa do livro ao lado do rosto mostrou que lia exatamente o mesmo que eu.

Era o professor novo e mais comentado da escola. Descobri durante a semana que chamava-se Petrus. Não Pedro ou Pietro, segundo a merendeira. Ele já havia tentado puxar assunto comigo na sala dos professores outro dia, mas não dei muita atenção porque não queria as outras professoras falando bobagens, afinal vi que a última com quem ele parou pra conversar ficou tendo que aguentar fofocas porque segundo as más linguas ela estava dando encima do homem.

Toda aquela fofoca e julgamento em uma escola. Era a esse ponto que as professoras chegavam e eu não queria problemas, não por medo de meu nome cair na boca do povo, mas sim para evitar que eu desse uns tapas na cara de alguém alí, afinal o ambiente era impróprio.

— Gosta de Machado de Assis? — perguntou ele caminhando pela fileira e eu confirmei colocando o livro novamente na prateleira. — Qual seu favorito? Se é que tem um...

— Memórias Póstumas de Brás Cubas — respondi enquanto olhava distraída os livros e ele chamou minha atenção ao chegar na mesma fileira que eu, em sua mão havia exatamente o livro que mencionei.

"Ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver dedico como saudosa lembrança estas memórias póstumas."

Leu o trecho, logo em seguida fechou o livro e o colocou novamente no lugar.

— Conheço alguém que leu esse livro duas vezes, mas somente porque não entendeu na primeira vez, então leu uma segunda vez anos mais tarde. — Parei de observar os livros e o olhei a espera que continuasse, mas ele ficou calado.

— Então, conseguiu entender? — questionei curiosa.

— Não. — Ele riu divertido.

— É uma pena — comentei saindo daquela fileira e a moça da recepção me avistou, então sorriu avisando que não encontrou nos registros o livro que havia ido procurar.

Não voltei a falar com o professor Petrus, saí da biblioteca às três e meia da tarde em minha bicicleta de cor rosa bebê, com cestinha. A coisa mais linda que eu já tinha ganho, afinal foi meu pai quem pintou e montou ela inteira do jeito que eu queria. Pude escolher até a cestinha toda cheia de detalhes que ele foi comprar em outra cidade. Meu pai gosta de inventar e inovar, não é atoa que as nossas casas são cheias de móveis reaproveitados que ele faz milagres e deixa tudo como se fosse novo, só que bem mais bonito.

Aproveitei a tarde livre para passar no café de Victoria, que naquela hora com certeza tinha menos movimento já que o pico era às três em ponto, quando o pão da tarde fica pronto e o pessoal chega aos montes.

Logo na entrada parei pra ver os vasos de flores do lado de fora, havia umas de cor lilás que chamou minha atenção então anotei mentalmente que deveria lembrar de comprá-lo pra fazer companhia aos outros que eu tinha na varanda.

— Olha só quem apareceu — falou Victoria vindo em minha direção carregando uma bandeja. — Faz quase uma semana que encontrei tua mãe. Está se escondendo, Luiza?

— Que imaginação é essa? — Me acomodei em uma mesa e ela sentou na cadeira à minha frente. — Acha que sou desocupada? Tenho que trabalhar para pagar a água que rego minhas plantas.

Nós duas rimos, mas fomos interrompidas por Thomas que aproximou-se da mesa e do nada colocou um prato com um pão redondo, bem atraente.

— Prova — disse ele em tom mandão, cruzando os braços.

Eu arqueei as sobrancelhas olhando desde o padeiro até a mulher dele que tinha um sorriso contido esperando que eu provasse, então peguei o pão e dei uma mordida. A massa era uma delícia, do tipo que dá vontade de dar uma mordida trás da outra, tão bom e prazeroso que eu só consegui resmungar algo que dava para entender estar aprovado e Thomas sorriu abertamente, assim como Victoria.

— O nome dele é Victoria. Vou preparar alguns para você levar — disse ele, em seguida saiu voltando para a cozinha.

— Sério que ele fez um pão com o seu nome? — perguntei só para ver ela sorrindo toda boba, confirmando.

— Eu até ajudei com a receita — disse orgulhosa.

— Bom, eu quero muitos victoria para a viajem. — Rimos. — Ah, me diz se você tem esse livro. — Com a mão livre abri minha bolsa sobre a perna e retirei o pedaço de papel de lá, logo depois entreguei a ela.

O Flores, Livros e um Café tem as três coisas em um só lugar e eu nem sei porquê ainda ia naquela biblioteca da cidade, que já estava ultrapassada e o acervo que deixa a desejar quando se trata de livros atuais.

Victoria levantou e depois de ir na área onde fica a estante com alguns livros expostos voltou carregando exatamente o que eu queria e também uma xícara de café que colocou encima da mesa.

— Já falei que amo esse lugar? —  disse pegando o livro das mãos dela e aproveitando também para dar um gole no café. Minha amiga confirmou vendo algumas pessoas entrando então foi atendê-los. — Trás mais Victoria's, é uma delícia! — gritei aquilo e logo em seguida nós duas rimos feito idiotas.

Era tão bom ver o quanto aquele lugar ia bem. Victoria e Thomas não foram meus amigos durante a escola, ela sempre estava grudada nele e os dois viviam sempre em seu mundinho particular. Acho que só eles mesmo não percebiam que se gostavam.

Naquela época eu era mais do tipo que lia horrores e observava as pessoas de longe, mas acabei sabendo a história deles toda, afinal Irenoi é esse tipo de lugar que você escuta várias versões. E de tanto ouvir acabei me aproximando dela quando abriu o café, mas não por curiosidade e sim admiração porque apesar de tudo ela e Thomas nunca baixaram a cabeça.

Acabei comendo três pães Victoria e tomando dois cafés enquanto lia o começo do livro aproveitando que a mesa era afastada e bem iluminada, próximo ao janelão onde ficavam os vasos.

Depois de satisfeita peguei além dos outros pães que Thomas me deu, também alguns de queijo para levar pra minha mãe, sem esquecer o vaso que acomodei na cestinha da bicicleta com cuidado, então me despedi dos dois e segui meu caminho no intuito de passar na casa dos meus pais.

Logo na entrada ouvi a falação já conhecida de minha mãe, sinal que havia visita. Fui logo na cozinha onde encontrei ela conversando com minha tia Olívia que tomava café e bastou ver os pães foi a primeira a abrir a sacola para pegar um.

— Podem falar o que quiser, mas aquele Thomas faz uns pães gostosos, né? — dizia minha tia em meio a mastigação. — Ouvi falar que a filha da Aurora vive rondando a padaria paquerando ele.

Eu, que pegava uma garrafa na geladeira, revirei os olhos ouvindo aquela conversa. Mamãe não ficava atrás, entrava na onda e ia longe falando da vida alheia.

Bastava uma pessoa para inventar e logo todas as senhoras de Irenoi sabiam de forma ainda mais exagerada porque fofoca é assim, quanto mais boca fala mais ela cresce e muda, até se tornar algo assustador.

— Mãe, já vou indo depois venho aqui. Tchau tia Olívia! — Me despedi ouvindo ela pedir para ficar e mamãe dizendo para eu ir na missa de sétimo dia de alguém que ela conhecia, mas eu não fazia idéia de quem era, então gritei um "se der eu vou" e saí portão a fora.

Chegando em casa cumprimentei tia Lena que estava na entrada da quitanda, olhando quem ia e quem vinha, então subi com minha bicicleta com certa dificuldade os degraus da escada até finalmente acomoda-la junto a grade com cuidado para não bater nos vasos.

Retirei o vaso que estava na cestinha e coloquei encima da mesa de ferro, mas olhando bem não combinava alí por isso decidi que o colocaria na janela já que havia grade de proteção, ele ficaria seguro.

Assim que entrei em casa liguei a TV, sem nem prestar atenção no canal que estava, afinal era só um vício mesmo. Abri parte da janela para colocar o vaso, logo depois caminhei para o quarto retirando minhas roupas pelo caminho, ficando somente de calcinha.

Era bom demais viver sozinha, sem sombra de dúvidas. Eu podia comer na hora que quisesse, andar nua pela casa, deixar a TV ligada pelo tempo que quisesse, passar horas no banho e ser eu mesma.

Poder externar a pessoa estranha que sou é a melhor das sensações.

O que eu não esperava era que a filha da vizinha do lado estivesse tão inspirada a ouvir música alta com letras pra lá de estranhas atrapalhando meu momento de reflexão. Não era sempre que ela fazia isso, somente quando todos saiam de casa e ela parecia querer que o mundo ouvisse sua playlist.

Não demorou para uma das moradores da pensão do outro lado da rua abrir a janela e gritar algum desaforo e logo a menina gritou de volta lá da casa dela.

Eu mutei a tv para ouvir melhor a briga que não demorou a se tornar insultos da parte da menina. Corri no quarto, vesti uma blusa grande e saí na sacada para ver a moça lá na janela do segundo andar da pensão e a menina na janela da casa de baixo —  no meu lado da rua — mandando a outra ir tomar em vários lugares nada decentes.

Nada mal para uma tarde de sábado, hein? Acabei rindo muito observando aquilo, encostada na grade da varanda.

Por sorte — ou azar — a mãe da menina chegou carregada de compras e aí já viu né? Meu excesso de riso acabou, afinal elas duas entraram para o quebra pau continuar de forma particular.

Prestes a voltar para dentro desviei o olhar, parando lá do outro lado da rua, numa janela da pensão onde avistei aquela mulher do outro dia segurando uma xícara e usando uma camisa grande de botões. Ela parecia me olhar e sorriu, logo depois entrou fechando a porta.

— Que baixaria hein, Luiza? — gritou lá do pé da escada a tia Lena. — Essa menina não tem vergonha na cara.

— Ela é jovem, tia Lena.

Ri enquanto ela bufava voltando para dentro da quitanda e eu voltei a entrar em casa.

Na manhã de domingo acordei sentindo o cheiro do café de minha mãe e quando virei na cama avistei no corredor ela passando com minha roupa suja, resmungando alguma coisa. Enfiei a cara no travesseiro não acreditando que novamente ela pegou a cópia da minha chave na bolsa e entrou em minha casa enquanto eu dormia.

— De novo mãe? — resmunguei parando na porta da lavanderia coçando a cabeça e bocejando.

— Claro, você não lava roupa! Se eu não vier aqui fica tudo uma imundície.

— Eu mereço.

Depois de escovar os dentes, vestir um short e prender meus cabelos, peguei uma caneca que enchi de café depois peguei a cestinha onde havia botado os pães que trouxe no dia anterior e segui até a varanda. Ainda era oito da manhã, o melhor horário para tomar café olhando meus vasos, desfrutando do silêncio da rua em um domingo.

— O pão do Thomas é tão bom que ainda tá fofinho. — Ouvi minha mãe gritar lá dentro enquanto eu já sentava do lado de fora.

Tomei café na santa paz e quando já levantava para entrar avistei lá embaixo aquela mesma mulher do outro dia, saindo da pensão.

— Bom dia! — disse ao me ver próximo a grade, observando, então respondi de forma educada. — Posso te pagar uma bebida hoje.

— Ah, não precisa. — Sorri sem graça e ela pareceu pensar em algo antes de falar.

— Tudo bem. Então me faz companhia em uma bebida hoje? — Seu sorriso foi bem convincente então eu sorri de volta confirmando. — Que tipo de suco, refrigerante ou cerveja você gosta?

Me inclinei apoiando melhor na grade enquanto pensava sobre aquela pergunta. Uma cerveja cairia bem, mas era domingo então no dia seguinte eu tinha aula.

— Trás budweiser — falei por fim e ela mais uma vez sorriu, confirmando.

— Às oito bato aí, pode ser? — Observei seu sinal com o polegar em minha direção e fiz o mesmo confirmando a ela que seguiu subindo a rua.

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