~ Aurélia Parker ~

Me acordei com um pequeno feixe de luz tocando a pele do meu rosto.Eu não havia fechado direito a cortina da janela no meu quarto na noite anterior.Me virei para o outro lado na tentativa de voltar a dormir, mas foi em vão.O despertador do meu celular começou a tocar bem alto ao meu lado e com muita raiva o peguei, desliguei e praticamente o joguei novamente em cima do criado mudo onde estava.

Me espreguicei um pouco ainda deitada e logo me sentei na cama.Antes que eu pudesse levantar, peguei as minhas próteses que estavam ao lado de minha cama e as posicionei nos lugares dos meus membros que já não existiam mais.Levantei e abri a cortina e em seguida a janela do meu quarto já dando de cara com o lindo dia que estava no lado de fora.

Me dirigi ao meu banheiro e tomei um banho rápido, mas ao mesmo tempo relaxante.Esse dia seria bastante corrido.Após fazer todas as minhas higienes, me vesti com uma roupa que eu já havia separado na noite anterior.Uma calça preta social e uma blusa branca de manga comprida e com um pequeno decote V nas costas.Prendi o meu longo cabelo preto em um rabo de cavalo e fiz uma maquiagem bem simples.Desci as escadas indo em direção a cozinha e dei de cara com o meu pai preparando o nosso café da manhã.

- Bom dia pai. - eu disse o cumprimentando alegremente.

- Bom dia minha filha. - ele respondeu sorridente.

Enquanto ele preparava alguns ovos mexidos, abri a geladeira e peguei a jarra de leite e logo em seguida comecei a preparar a mesa para tomarmos o nosso desjejum.

- Você quer carona para a empresa ? - me perguntou ele enquanto eu o servia uma xícara de café.

- Vai me ajudar bastante. - eu respondi sorrindo.

- De que horas está marcada a sua entrevista ? - ele perguntou logo em seguida.

- Está marcada para as dez. - eu respondi.

- Temos tempo.Ainda são 08:30. - disse ele olhando o relógio em seu pulso. - Você dormiu bem ? - ele perguntou em seguida.

- Dormi sim. - respondi antes de colocar um pedação de mamão em minha boca.

Conversamos um pouco enquanto comíamos.E assim que terminamos, subi as escadas quase correndo para escovar os dentes.Em seguida coloquei um par de salto alto preto, peguei a minha bolsa e desci novamente as escadas.Meu pai já estava no lado de fora me esperando.

Seguimos tranquilamente pela cidade até chegarmos em frente ao grupo Henderson.

- Boa sorte querida. - desejou o meu pai enquanto eu descia do carro.

- Obrigada pai.Tenha um bom dia. - eu disse.

Logo o meu pai deu partida em seu carro novamente e começou a seguir rumo ao banco da cidade, onde ele é o gerente.

Comecei a caminhar calmamente indo em direção a porta de entrada da empresa.Senti os olhares de todos em mim quando entrei no local.Eu já sabia do que se tratava.Alguns olhavam diretamente para a minha perna direita na tentativa de descobrir qual o era o motivo de eu andar como se estivesse saltitando um pouco com a mesma.Sempre era a mesma coisa.

Me aproximei da recepcionista para pedir uma rápida informação e ela também estava tentando desvendar o mistério da minha perna.

- Bom dia.Sou Aurélia Parker e fui convocada para uma entrevista de emprego.Para onde eu devo ir ? - eu perguntei.

- Bom dia senhorita Parker.Você pode pegar um dos elevadores e ir até o vigésimo nono andar. - respondeu ela simpaticamente.

- Obrigada. - agradeci com um sorriso e logo segui para os elevadores.

Assim que parei na frente de um deles, apertei do mesmo e as portas se abriram.Entrei e apertei o botão que indicava o andar para qual eu queria ir.Aguardei pacientemente até chegar no vigésimo nono andar e saí do elevador.Vi a recepcionista do andar e me aproximei para que eu pudesse falar com ela.

- Bom dia. - eu disse.

- Bom dia. - ela respondeu sorridente. - Em que posso ajuda-la ? - perguntou ela em seguida.

- Me chamo Aurélia Parker e vim para a entrevista de emprego. - eu respondi.

- Ah, claro.Você pode se sentar em um de nossos sofás para aguardar. - falou ela.

- Obrigada. - eu agradeci.

Fui em direção aos sofás e me sentei em um deles.Peguei o celular que estava em minha bolsa para ver a hora, e eram exatamente 09:50.

Fiquei aguardando até o horário da entrevista e quando deu 10:00 em ponto, uma mulher alta, de pele clara, olhos verdes e cabelos ruivos saiu de uma sala e veio em minha direção.Então eu fiquei de pé imediatamente.

- Você deve ser a senhorita Parker.Muito prazer, me chamo Karol. - falou ela estendendo a mão para me cumprimentar.

- Muito prazer. -  eu respondi apertando a mão dela.

- Me siga até o trigésimo andar.O nosso presidente fará a entrevista com você. - ela disse sorrindo.

Assenti com a cabeça e comecei a segui-la.Para a minha surpresa, ela optou ir de escada em vez de elevador.Agradeci muito por ser apenas um andar.

Assim que chegamos no andar de cima, Karol foi falar rapidamente com a secretária que estava em sua mesa próxima a sala do presidente e logo em seguida, me conduziu em direção a porta.

- Com licença presidente, essa é a senhorita Parker que veio para a entrevista. - disse Karol me anunciando.

- Certo.Obrigada Karol.Pode se retirar. - respondeu ele sem tirar os olhos da tela do computador.

- Boa sorte. - disse Karol num sussurro.

Assenti com a cabeça e a vi sair da sala.Só então eu me aproximei da mesa onde o presidente estava.Ele vestia um terno azul marinho com uma camisa branca por dentro e uma gravata com a mesma cor do terno.A sua pele clara fazia contraste com a cor do terno.Seus olhos castanhos estavam fixados na tela do computador e o seu cabelo preto que estava um pouco bagunçado, o deixava com uma aparência um pouco sexy.

- Bom dia senhor Henderson. - eu o cumprimentei.

- Bom dia senhorita Parker.Sente-se por favor. - pediu ele.

E assim o fiz.Só quando eu me sentei, ele virou os seus olhos na minha direção e percorreu cada centímetro do meu corpo com eles.Isso fez o meu corpo estremecer.

- Senhorita Parker, seu currículo diz que você fala alguns idiomas.Poderia me dizer quais são eles ? - ele pediu.

- Inglês, espanhol, francês, japonês, coreano e um pouco de mandarim. - eu respondi.

- Muito bom. - ele elogiou. - Com apenas vinte anos, você já tem faculdade de administração e economia.Você é a melhor candidata até agora para a vaga de minha assistente pessoal.Seu currículo é de dar inveja em muita gente. - disse ele.

- Muito obrigada senhor. - eu o agradeci.

- Como minha assistente pessoal, você deve saber que irá participar de muitos eventos como a minha acompanhante.E por isso, devo ver a forma como você anda. - falou o presidente. - Poderia caminhar um pouco para que eu possa ver ? - perguntou ele.

- Sim senhor. - eu respondi.

Fiquei um pouco nervosa.Eu sabia que a minha forma de andar havia sido afetada por conta do acidente.Mas nunca imaginei que um dia, eu dependeria disso para conseguir um emprego.

Mesmo nervosa, levantei calmamente e dei alguns passos indo em direção a porta e depois voltando para a cadeira onde eu estava sentada a frente da mesa do senhor Henderson.Em momento algum ele tirou os olhos de mim.Ele ficou analisando totalmente o meu corpo.E quando me sentei, ele deu um leve sorriso.

- Sua forma de andar é graciosa, mesmo com esses leves saltos que você dar. - disse ele olhando nos meus olhos.

- Obrigada. - eu agradeci.

- Posso saber o porquê de você andar assim ? - ele me perguntou.

- Eu uso uma prótese na minha perna direita. - eu respondi.

- Desculpe, eu não quis ofender. - disse ele.

- Não, tudo bem.Não me ofendeu. - eu falei com as palmas das mãos erguidas e as balançando em negação.

- Sua mão esquerda também é uma prótese ? - perguntou ele.

- Sim.Na verdade, todo o meu braço esquerdo é. - eu respondi.Como ele havia percebido tão facilmente ?

Após a minha resposta, o senhor Henderson ficou por um breve momento em silêncio.Eu já sabia o que vinha a seguir.Desculpas e mais desculpas dizendo o porquê de não me contratar pelo o simples fato de eu ter deficiências.

Eu já estava cansada disso.Sempre acontecia a mesma coisa quando eu participava de entrevistas de emprego.Todas as pessoas me subestimam desde que perdi a minha perna e o meu braço.Sofri bullying por conta disso.Claro que não me deixei abater por essas coisas.Afinal, o meu futuro só depende de mim mesma e não dos outros.

Mas chega a ser frustrante.Você se mata de estudar para se qualificar, e por causa de duas condições físicas, as pessoas te descartam de tudo.

Saí dos meus pensamentos quando ouvi um suspiro do senhor Henderson.

- Senhorita Parker, vou ser bem sincero com você.O trabalho que está sendo oferecido é muito duro.Se a vaga for sua, isso irá exigir muito do seu porte físico. - falou ele seriamente.

- Estou ciente de tudo isso senhor Henderson. - eu disse.

- E mesmo assim se candidatou ? - ele perguntou.

- Sim. - eu respondi.

- Por que ? - perguntou ele em seguida.

- Porque eu tenho muita confiança em mim mesma.Sei que o meu corpo pode aguentar qualquer coisa.A minha condição física não me impede de fazer nada.Eu não sou diferente de ninguém.Não sou nem mais nem menos especial por isso.Eu posso fazer o mesmo que uma pessoa que tem todos os membros do corpo. - respondi seriamente.

- Gostei da sua confiança.Não perderemos mais tempo. - disse ele enquanto entregava um papel para mim. - Vá até o RH e diga que você será a minha assistente pessoal.Você começa na semana que vem. - ele me informou.

- Muito obrigada senhor Henderson.Não irá se arrepender. - eu disse enquanto me levantava da cadeira.

- Tenho certeza que não. - respondeu ele sorrindo enquanto se levantava de sua cadeira e estendia a mão para me cumprimentar.

- Nossa, como ele é alto. - eu pensei quando o vi de pé.

Apertei a sua mão e logo comecei a caminhar e saí de sua sala.No lado de fora estava Karol me esperando.

- Como foi ? - ela me perguntou.

- Começarei na semana que vem. - eu respondi.

- Meus parabéns. - ela disse sorridente. - Desde o momento que eu vi o seu currículo, eu te indiquei para que ele te fizesse assistente dele.Você está mais do que qualificada para essas funções. - falou ela logo em seguida.

- Eu nem sei como te agradecer. - eu falei.

- Não se preocupe com agradecimentos.Te levarei no RH. - disse ela.

- Não quero atrapalhar o seu trabalho. - eu falei.

- Relaxa.Eu sou a chefe do RH. - respondeu ela sorrindo.

Descemos as escadas voltando para o vigésimo nono andar e fomos para o RH.Lá Karol resolveu todos os trâmites para a minha contratação e já de cara me entregou o meu crachá.

Enquanto ela terminava de revisar algumas coisas do meu contrato antes de imprimi-lo, tentei ver o sobrenome dela que estava em seu crachá e me surpreendi.

- Seu sobrenome é Henderson ? - perguntei surpresa.

- Sim.É por isso que o presidente me ouve.Sou a irmã mais nova dele. - respondeu ela sorrindo.

- Por que você me ajudou ? - eu perguntei.

- Porque eu estou cansada de contratar mulheres que não sabem fazer nada.Que só conseguiam o trabalho por serem bonitas.Acredite, eu queria que uma pessoa capacitada estivesse ao lado do meu irmão, e por isso te indiquei. - ela respondeu.

- Mesmo eu sendo uma deficiente, você me acha capacitada ? - perguntei em seguida.

 - Ser deficiente ou não, não te faz incapaz. - ela respondeu sorrindo.

Retribui o sorriso e logo em seguida ela me passou o meu contrato.Li atentamente cada cláusula e me espantei quando vi valor do meu salário.

- Esse valor está correto senhorita Henderson ? - perguntei a Karol.

- Se tiver vinte e cinco mil mensal, esta sim. - ela respondeu. - E me chame de Karol.É pelas me chamarem assim que eu não falo o meu sobrenome. - pediu ela.

- Desculpe. - eu falei.

Ao terminar de ler tudo atentamente, assinei e entregueu uma das vias para ela.Em seguida me despedi de Karol e saí da empresa com um largo sorriso nos lábios.Essa noite seria noite de comemoração.

Voltei tranquilamente para a minha casa.Peguei o metrô e logo cheguei.Assim que passei pela porta de entrada, tirei os saltos que estava usando e segui para a cozinha.Coloquei luvas nas minhas mãos e lavei toda a louça que havia ficado do café da manhã.Em seguida, limpei toda a cozinha e comecei a cozinha.Preparei todo o almoço e aproveitei para adiantar o jantar.Também fiz um bolo de cenoura com cobertura de chocolate para ser a sobremesa.

Quando olhei para o relógio, vi que ainda eram 14:00 horas da tarde.Sabendo que eu ainda tinha mais algumas horas sozinha em casa, subi as escadas indo em direção ao meu quarto e tirei toda a roupa que eu estava vestindo.Logo depois, preparei o meu banho e antes de entrar na banheira, tirei as minhas próteses da perna e do braço.Só depois disso eu entrei e pude relaxar.

Eu estava bastante contente por finalmente ter conseguido um emprego.

Após passar uma hora dentro da banheira, decidi que era a hora de sair.Tirei o tampão da banheira e esperei que toda a água fosse embora pelo ralo.Quando a banheira estava completamente vazia, peguei uma toalha que eu havia deixado próxima a banheira e sequei o meu corpo antes colocar as minhas próteses nos seus devidos lugares.E só então eu pude sair da banheira e começar a me vestir.

Me chamo Aurélia Parker, tenho vinte anos e moro com o meu pai na cidade Star.Você deve está se perguntando o que aconteceu comigo para que eu me tornasse uma deficiente física.Bom, você descobrirá mais a frente.Mas desde que tudo aconteceu, as pessoas começaram a me olhar torto e a tentar dificultar a minha vida.Eu não sei o motivo delas fazerem isso.Mas sempre que me subestimam ou me humilham, tomo suas palavras como uma forma de combustível que serve para que eu as mostre que eu posso fazer tudo o que todas as pessoas com um corpo completo fazem.Claro que não é fácil.Mas eu não pretendo dar o gostinho de me verem fracassar.

Como qualquer outra pessoa, sonho eu ter uma vida incrível, dar o melhor para a minha família e me apaixonar.E tenho certeza de que eu conseguirei alcançar todos os meus objetivos.

Resolvi vestir um short curto e soltinho e uma blusa de alças para ficar bastante a vontade.Fiz alguns alongamentos para que eu não sentisse dores no corpo causada pelas próteses e depois desci novamente até a cozinha para pegar um pouco de água.

Após beber a água, peguei uma maçã que estava na fruteira em cima da mesa, fui para a sala de estar e me joguei no sofá.Liguei a televisão na tentativa de assistir algo para me distrair.E quando não achei nada, acabei ficando sonolenta e caí no sono.

Mas infelizmente, eu tive um pesadelo.Um pesadelo com o dia do meu acidente.

~ Cinco anos atrás ~

Estávamos eu e meus pais dentro de nosso carro, seguindo estrada em direção ao interior de nossa cidade.Era época de feriadão e meu pai havia conseguido mais dois dias extras de folga antes do feriado.Decidimos que queríamos nos distanciar um pouco da cidade e aproveitar o ar do campo.Então fizemos uma reserva em uma pousada e iriamos curtir os nossos próximos cinco dias, apenas só nós três.

Mas durante o caminho, um trágico acidente aconteceu.Chovia bastante e por isso, a pista estava bastante molhada.Por conta disso, o meu pai acabou perdendo o controle do carro e o nosso veiculo acabou capotando várias vezes.

Quando despertei, tive dificuldade em abrir os meus olhos por conta da claridade do ambiente.

- Doutor, ela acordou. - ouvi alguém gritar ao meu lado.

Quando finalmente consegui abrir totalmente os meus olhos, percebi que estava deitada em uma cama e respirando com a ajuda de aparelhos.

- Aurélia, me chamo Daniel e sou médico.Você está no Hospital Central. - ouvi um homem dizer perto de mim.

- O que aconteceu ? - eu perguntei.

- Você e seus pais sofreram um acidente de carro. - respondeu ele. - Mas agora eu preciso que você me diga como se sente. - pediu o tal médico.

- Sinto algumas dores na minha perna direita e no meu ombro esquerdo. - eu respondi. - Como estão os meus pais ? - perguntei em seguida.

Antes que o médico pudesse responder a minha pergunta, alguém entrou no quarto onde eu estava batendo a porta violentamente.

- Eu quero ver a minha filha. - ouvi o meu pai gritar.Mesmo estando tonta, eu reconheceria a sua voz em qualquer lugar.

- Senhor Parker, eu tenho que examina-la primeiro.Por favor, se retire. - pediu o médico.

- Eu não posso perde-la também.Por favor, deixe-me ficar perto dela. - ouvi o meu pai suplicar.

- Como assim o senhor não pode me perder também papai ? - perguntei enquanto tentava me sentar na cama.Mas o médico me impediu colocando uma de suas mãos sobre mim.

- Nós conversaremos após eu examina-la.Por favor senhor Parker, se retire. - pediu mais uma vez o médico.

Virei o meu rosto na direção do meu pai o vendo completamente cabisbaixo enquanto acatava o pedido do médico.Algo havia acontecido para que ele ficasse daquela forma.