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A DONA DO MORRO

Capítulo 01

Flávia.

Tranquilidade, saúde e família é tudo que eu quero para minha vida de agora em diante. Esses meses todos presa me fez refletir sobre o futuro e eu não quero passar tanto tempo longe de quem eu amo.

Só fazem dois dias que sai da cadeia, a vida ainda está confusa, o corpo ainda está no ritmo da prisão, mas minha mente está certa do que realmente quer, todos vão ter de entender que essa vida não é pra mim e estou saindo fora de tudo isso, e que definitivamente eu não quero mais nada vindo do corre.

Certa da minha decisão, me sento na sala pego o telefone que está sobre a mesinha de centro, digito um texto breve e envio como a mensagem ao quadro final da facção, marco uma "R", tipo uma reunião, que fica para a noite, deixo avisado que o assunto é o pedido do meu afastamento.

Até dar o horário da reunião, organizo alguns currículos, separo minha documentação, preparo minha bolsa e minha roupa. Tenho uma primeira entrevista de emprego, espero que seja a única, é em um hotel e está marcada para às 14:30, preciso muito que dê certo pois é meu pequeno grande passo rumo a uma vida tranquila e honesta.

Chego ao Hotel na hora marcada, estou um pouco nervosa, faz alguns anos que não sei o que é trabalhar para os outros, tenho pavor do regime CLT, porém preciso. Já estou pedindo aos meus anjos que me dêem força e proteção, conheço meu pavio curto sei bem que não tolero desaforo, nem de patrão e nem de cliente, vai ser um desafio e tanto.

Um casal sentado em uma mesa é quem conversa com os candidatos, na minha vez eu me sento junto a eles e então exponho minhas experiências, expectativas, habilidades e tudo mais que me foi perguntado.Mesmo sabendo que sou capacitada para a vaga, aguardo ansiosa o resultado, e ele não poderia ser outro, estou devidamente contratada!

Meu coração se enche de alegria, um rio de esperança lava a minha alma, realmente preciso desse emprego, o pouco de dinheiro que eu tinha a cadeia levou, e como não vou voltar pro corre, estou na lona, por baixo mesmo.

Chego em casa saltitando de felicidade, comemoro com meus pais e meus filhos por minha contratação, enquanto aguardo ansiosamente a "R" que está marcada para às 20h, depois de desvincular do crime estarei livre de verdade.

Quase no horário da "R" tomo um banho e aguardo, na hora exata o telefone vibra, chamada de vídeo em grupo. Sinto meu corpo formigando de nervoso, é agora que eu saio dessa vida e sigo meu caminho em paz, sem medo ou preocupação. Começamos a conversar, logo de primeira exponho meu desejo sem rodeios ou enrolação e aguardo a aprovação do quadro.

Me pedem para justificar e eu alego os tempos difíceis, falo do sofrimento, da dor de ficar longe da família dos amigos e do quão me senti mal em estar sem liberdade.

—Olha aqui mana, seu marido está preso, certo? Onde ele está não tem sintonia, certo?— Ele pergunta e apenas friso que estamos separados já tem um tempo e que nosso vínculo é de amizade, fortaleço ele como amiga — Correto mana, agora me responde uma coisa, como a mana pretende fortalecer o seu ex povo estando afastada? A senhora compreende que a caminhada é até o final? E sem vacilação!

— Nós tamo ligado que o mano mesmo preso e sem sintonia fez o corre e deu assistência pra mana os meses que a senhora ficou privada, agora a mana quer rasgar? O mana a senhora acha certo? Entendemos que não são mais casados porém continuam tendo laços e esse vínculo depende do corre, do seu corre. — outro irmão fala me deixando sem palavras, eu já tinha esquecido o quanto é difícil sair, entrar é tão simples agora sair é bem difícil mesmo.

— Irmãos, assistência para ele é claro que vou dar, vou fazer meu papel mas para isso eu não preciso estar no crime, quantas e quantas mães visitam e dão auxílio sem precisar estar no crime.

— Mana a senhora tem entendimento, pô, não vem de vacilação não, a mana quer rasgar a gente vai rasgar mas depois não vem chorar leite derramado não que aqui não tem K.O não. O crime não é o creme. Vai ser afastada mas se falar de corre na cadeia ou na rua já vai ser disciplinada no automático, a mana tá ligada que afastou é pra sair de tudo, sem contato, sem amizade sem nada.

— Sim mano estou ciente!

— Ok mana vou retirar a senhora e já já adicionamos novamente com resumo final.

Me tiram da chamada e eu fico ansiosa aguardando, sair é algo muito burocrático, apesar de querer muito, sinto que será negado. Realmente não tem como eu estar ligada ao Thiago preso e não falar sobre corre, a vida na cadeia gira em torno disso.

Quando se pede afastamento do crime, é uma decisão que precisa ser muito pensada e planejada, não dá para sair ficar uns dias, não conseguir se virar e querer voltar. A regra é clara, entra por que quer e sai se tiver certeza pois facção não é ioiô para ir e voltar quando bem entender.

Quando sai também é proibido se envolver em qualquer tipo de corre, frequentar lugares que pessoas do crime frequentam, ir em bailes, usar drogas, ou qualquer coisa que remeta a esse mundo. É como dizem, o crime não é creme!

Não demora muito a chamada é retomada, meu coração está aflito, atendo e só tem dois irmãos na chamada, os demais não estavam mais presentes. Eles fazem outra apresentação pois um deles não estava na chamada passada.

— Mana, analisamos sua situação e a senhora não vai estar saindo por agora.— Ao ouvir, a minha feição se transforma, claramente estou chateada mas não falo nada apenas aceno com positivo.

— Na verdade mana para a senhora temos outra oportunidade, conhecemos a caminhada da mana e não há manchas no passado, desde sempre fazendo o certo pelo crime e representando nossa família— O outro fala e eu apenas ouço— ao invés do seu afastamento vamos te dar o domínio do Morro Celeste que fica ao Sul.

— Oi? Mano eu agradeço a oportunidade mas definitivamente eu não tenho condições financeiras para tal! É uma honra mas não posso dar um passo que minhas pernas não alcançam.

— Calma mana, a senhora vai entrar com nosso apoio, todo material e armamento nós estaremos abastecendo e dando total apoio até que a senhora consiga caminhar com as próprias pernas.

— E em troca desse apoio?— Pergunto com o pé atrás afinal quando a esmola é grande o santo desconfia, principalmente no crime.

— A única condição é que o abastecimento seja nosso, preço da tabela, sem nada a mais. Sabemos que a senhora conhece toda a região e vai ser bem recebida pela população.

Aceito, mesmo indo literalmente contra tudo que planejei para minha vida. Vamos ver onde isso vai dar pois é um poder muito grande e eu não tenho toda essa experiência. Conheço a teoria de tudo mas na prática somente o básico ou talvez nem isso.

Essa é uma reviravolta que eu não esperava, Morro Celeste é um dos mais almejados na região, muitos irmãos tem cacife suficiente para assumi-lo, e tantos outros vivem lutando para dominá-lo.

Sinceramente ainda não entendi o porquê de estar sendo designada para liderança mas de uma coisa eu tenho certeza, vou fazer o melhor que esse morro já viu.

A chamada foi finalizada e eu ainda estou aqui com o telefone na mão olhando para o céu e me perguntando como vou falar para minha família o tamanho da responsabilidade que eu acabei de abraçar.

Meus pais e meus filhos não vão gostar nada disso, Thiago não vai poder reclamar muito, ele já me conheceu no corre, ele está preso, e não estamos mais juntos… Pensando bem não vou contar pra ele, deixa ele achando que estou trabalhando, é melhor.

Capítulo 02

Sair da cadeia e ir para a casa dos pais não é fácil, a pressão para que eu arrume um emprego quase me deixou doida, quero só ver quando eu dispensar a vaga que eu quis tanto pegar.

Já estou vendo o surto, com essa responsabilidade monstra é que não vai dar certo ficar aqui, mesmo porque preciso subir o morro e ficar mais perto do que esta acontecendo por lá.

Até daria para ficar na casa dos meus coroas masé muita cobrança, pouca privacidade e nada do que eu faça é válido, todo mundo acha que sou uma bomba relógio prestes a estourar e prejudicar todo mundo. Não que estejam de todo errado, mas também não é de todo certo.

Não tiro a razão deles estarem com o pé atrás, afinal não é a primeira vez que fui presa, contudo nunca prejudiquei ninguém aqui de casa. Na verdade não sei nem porque falam tanto se nem me visitar não foram.

Melhor eu deixar esses pensamentos pra lá não vou remoer esse assunto, eu sei o que estou fazendo e mesmo que não fosse meu planejamento inicial a realidade é que já me acostumei com os fatos estou satisfeita com os caminhos que estou tomando independente dos riscos que estou assumindo.

De acordo com os irmãos, os trabalhos começam em dois dias e eu não tenho tempo a perder, o lema é faturar para viver bem, o corre não pode parar.

Um dia antes reúno pessoal do morro, passo a visão do novo quadro de liderança, os cargos de confiança quase todos ocupados por mulheres, minha gestão é diferenciada é feminina o que deixam os manos contrariados.

Como já imaginava, alguns dos irmãos reclamam dos cargos serem ocupados por mulheres, mas eu deixo claro que meu quadro sou eu quem escolho, e que sem um vacilo ninguém é substituído, portanto o melhor é cada um ir para sua função.

Na reunião que é em uma área de lazer, primeiro repassamos os fundamentos da facção, as normas do morro, os cargos, as formas de distribuição, montamos as barreiras de contenção e organizamos a lista do que falta no paiol do morro . Obrigações feitas todos aproveitaram para curtir o restante do dia, visto que os trabalhos só vão começar amanhã.

—Dinda qual vulgo a senhora vai usar, ou podemos chamar pelo antigo? — Nicole me pergunta e me dou conta de que não tinha pensado nisso, mas respondo de súbito.

—Rafaela! Vulgo Rafaela, filhota — Respondo enquanto bebo outro gole do meu suco, evito consumir bebida alcoólica na rua.

Nicole volta para junto do pessoal e eu fico sentada de longe olhando minhas redes sociais, observando todos e me perguntando com quais dificuldades vou ter que lidar nessa nova caminhada.

— Oi dona Flávia! Ou não é assim que é pra chamar? — Tiro as vistas do telefone e olho na direção da voz, um homem alto e forte está parado me observando e aguardando minha resposta, ao seu lado tem outro, ambos são irmãos no morro já os conheço a alguns anos mas nunca conversamos, sinto que os problemas que vou lidar começaram a chegar.

—Rafaela, e vocês são Thor e Peso da Morte, certo? Em que posso ajudar?— pergunto me levantando e saudando os dois com um aperto de mão.

—Então Rafaela, eu sei que a senhora já veio com instruções de fora, sei que tá seguindo o fundamento mas isso aqui não funciona não, a senhora não é a primeira que tenta, já aviso, todos que vieram caíram e outra eu não rendo pra facção não, minha mercadoria sou eu quem trago não vou pegar com vocês, vou vender onde e como eu quiser — ele fala e eu apenas escuto, antes de prosseguir ele ergue a camiseta deixando um 38 à vista— E tem outra mana se tentar me oprimir eu passo por cima.

— Então na primeira reunião já está me ameaçando?— Por dentro estou gelada mas tento me manter firme por fora.

— É só um aviso! — ele fala e ambos saem sem sequer olhar para trás.

Quem esse cara tá achando que é? Eu posso parecer sonsa ou frágil mas ele está desafiando a pessoa errada. Ele não me conhece, antes mesmo que ele imagine vai ter a resposta que merece, deixa estar que ele vai parar na mão.

Já no fim do dia me despeço do pessoal e vou para casa, preciso me organizar para buscar um carregamento, como é o primeiro é interessante que eu vá para pegar o ritmo certo do trajeto.

Entro em casa e minha mãe já está me esperando com cara de poucos amigos, ela me dá alguns sermões, mesmo ela estando certa eu a abraço e digo que pode ficar tranquila que não estou fazendo nada errado.

Separo uma roupa social, pego uma bolsa elegante, e na madrugada eu saio pé por pé na esperança de que ninguém esteja me vendo sair, antes que eu chegue na metade do caminho meu telefone vibra é mensagem do meu pai.

(Papai) 03:48

Seu destino está diretamente ligado às escolhas que você faz hoje, eu gostaria muito que você não fosse para o caminho errado, mas eu não posso te prender aqui, pensa como você quer estar daqui alguns anos, nós te amamos e te queremos bem. Seus filhos precisam da mãe e eu da minha filha.

(Papai) 03:49

Um vez quando você tinha 02 aninhos eu te coloquei no balanço e você caiu, então eu te ajudei a levantar e disse que você poderia tentar quantas vezes fossem possíveis que você é capaz, eu queria poder evitar todas as suas quedas como não posso só lembra que eu vou estar com você em todas as vezes que precisar de mim.

Li as mensagens porém não respondi, segui com o peso dessas palavras no meu coração. Meu pai é meu exemplo de bondade e honestidade, o homem da minha vida, meu herói, decepcioná-lo me deixa destruída, infelizmente esse é um passo sem volta.

Chego no local marcado para receber o carregamento, O morro do VP, quem vai entregar é o sub do dono, conhecido por Tom, para mim ele é que nem caviar, nunca o vi mas já ouvi falar bastante.

Chegamos em dois carros, a entrega é em uma estrada com várias saídas, confiro a carga com os vapores e quando já está tudo no carro que vai levar o Tom desce do carro.

Ele me olha de cima em baixo e me dá um sorriso safado, não dou brecha, olho firme e séria entregando o dinheiro para ele que faz menção de guardar sem conferir.

Venho de experiências ruins, definitivamente seria muito amadorismo pagar e não exigir conferência, da para sentir a energia irritada de Tom quando fiz questão de que ele contasse tudo ali, a lógica é uma só, não nos conhecemos, eu confiro a mercadoria e ele o dinheiro.

Depois de tudo certo entro no carro e seguimos para o morro, tenho pressa de deixar tudo lá para voltar para casa ainda cedo. O trajeto de volta é tenso, muita polícia por todo lado, felizmente estou bem discreta e ainda não sou figurinha na mão desses vermes.

Descarrego a mercadoria no galpão, volto em casa e tomo café com meus pais, dou um beijo nos meus filhos e subo o morro ainda tem muito trabalho. Coloquei alguns vapores em pontos estratégicos nos arredores de casa, ainda preciso comunicar minha família que eu vou subir de mudança ainda essa semana.

Entro no barracão e vou direto para minha sala, assim que entro Val, minha sub, vem atrás me lembrando de tudo que preciso fazer no dia. Mas o meu foco principal é organizar os números do morro, preciso saber o que tem e como está para que eu saiba a demanda.

— Certo! Vamos fazer tudo isso, mas primeiro quero saber exatamente quantos irmãos temos, quantos companheiros, quantas lojinhas ativas, quantos presos e quantas famílias estão mais necessitadas de assistência social.

— Até o fim do dia lhe entrego os relatórios.

Val sai e meu telefone toca, é o irmão Papa, o mesmo que me colocou à frente do morro. Atendo com um frio na barriga.

— Salve maninho!!

— Salve mana, foi tudo certo com o carregamento? Já estamos trabalhando? Como foi a reunião com os irmãos? Era para ligar ontem mas teve Dezoito aqui.

— Tudo certíssimo, já estamos cadastrando e reativando as lojas, a reunião foi relativamente tranquila, alguns irmãos contestaram meu quadro, mas nem Jesus agradou todo mundo, não vai ser eu né— eu falo e caímos na gargalhada— Só que o problema não é esse.

— Já solta a voz do que está pegando que a gente resolve de imediato.

— Logo após a reunião, liberei o churrasco e a bebida, estava sentada dando um tempo pra vir embora quando vieram dois irmãos até minha mesa, irmão Thor e Peso da Morte, eles me ameaçaram com um 38 e disse que não rende pra facção que outros já tentaram ficar aqui mas que caíram…

— Oh mana parada é a seguinte, essas ideias não procedem não, "pagar de ameaça não vira", amanhã a gente já vai dar um basta nisso. Já vamos chegar nos disciplinas, é para eles piá esses malditos e mostrar como funciona, já devia ter feito isso lá na hora..

— Dmr mano já vou acionar os mano aqui e montar o GP do resumo.

Desligo a chamada e já acionei o pessoal do quadro disciplinar, coloco todos no grupo. Mano Papa passa a visão do que é para fazer e todos saem na captura dos dois safados.

Ainda tenho muito que aprender mas eu vou aprender e vou dominar isso aqui como homem nenhum nunca fez. Na história eu sou a primeira Dona e eu vou honrar esse título.

Capítulo 03

O dia a dia como de dona do morro é uma loucura, é B.O em cima de problema e o pau tora. É lojista querendo prazo, famílias precisando de assistência, irmãos se desentendendo… Da noite para o dia tudo se transformou na maior correria.

Val me passa todos os relatórios que pedi, e a atualização das mercadorias que estão sendo vendidas, confiro as barreiras, os disciplinas, o serviço social.

Separo tudo de forma que eu entenda pois tenho de passar toda transparência para o quadro, eu acho isso uma canseira mas enquanto estiver em observação tudo precisa ser avaliado por eles para ver minha caminhada.

Pego o telefone para mandar tudo no grupo mas vejo mensagens de um número desconhecido, leio e fico estática por alguns segundos até recobrar os sentidos e conseguir reagir. Pqp mal cheguei já estou sendo ameaçada é para acabar com os pequi do Goiás mesmo.

(Número desconhecido) 17:39

Slv MN.

Seguinte, aquele dia eu só dei um toque pra você, mas agora o papo é reto, se continuar me procurando vai ter volta. O barato é Loko, você tá chegando agora eu já tenho 25 anos aqui dentro, se brincar quando você nasceu eu já estava no crime, fica ciente que eu não baixo pra você nem pra ninguém. E pode procurar pois aí dentro desse morro que não vai encontrar ninguém pra por na missão… aí não tem nenhum pra bater de frente comigo não. Se vier, vai voltar.

Opto por não responder, mando mensagem na disciplina responsável e marco uma "R" para daqui uma hora. Ligo para o Papa e assim que ele atende passo a visão de tudo e já mando os print da conversa. A chamada é encerrada logo após finalizar os assuntos da pauta, coloco o telefone sobre a mesa e me permito pensar sobre tudo que está acontecendo em tão curto espaço de tempo.

Bate até um arrependimento por não ter mantido meu posicionamento de que não queria mais me envolver no crime.

Preciso capturar esse vacilão o mais rápido possível, primeiro pela minha integridade e depois para mostrar que eu sou capaz de gerir um morro e também para manter a ordem dentro do meu espaço, onde já se viu deixar qualquer atravessar meu corre, mas não mesmo.

As vezes queria ter o dom de me dividir em duas para dar conta das duas vidas que tenho levado, como não posso pego as minhas chaves desço o morro e pego o d

carro para buscar meus filhos na escola, passamos na sorveteria e ficamos nos divertimos juntos.

Deixo as crianças em casa com minha mãe, mas antes de sair tomo um cafezinho para desestressar, o bicho literalmente vai pegar daqui a pouco.

Com a mente um turbilhão, dirijo até uma zona de mata não muito longe, levo Heloísa comigo temos que conversar com uma usuária que anda dando problema no morro. Descemos do carro e Jk vem nos receber, vejo os irmãos do quadro todos armados, caminho até onde estão concentrados enquanto observo tudo rapidamente, ainda não me habituei a esse cenário.

— Então mano, qual a situação aqui?—Perguntei vendo um casal amarrado pé e mão, deitados no chão.

— Parada é a seguinte, esse povo tem mais de três avisos sobre roubar na comunidade mas eles não estão pegando a visão só nãa verbal, na gestão passada a regra é moer no cacete, mas agora quem decide é a senhora.

Olho para o casal e meu coração se parte ao ver em que ponto o ser humano chega em decorrência do vício, é triste essa realidade. Por mais que pareça hipocrisia da minha parte, já que vivo do tráfico, eu sinto a dor das famílias que sofrem com esse mal.

Deixo de lado meu "eu afetivo" e foco no problema diante de mim, essa será minha rotina de agora em diante e não posso simplesmente passar a mão na cabeça de todo mundo simplesmente por compaixão, a orientação foi dada, as normas estão aí pra todo mundo.

— Parada é a seguinte, escreveu não leu o pau comeu! Vacilão segura a onda e arca com as consequências… no caso deles vou dar um desconto por ser em decorrência do vício, desce 20 mangueiradas em cada um e oferece a oportunidade de se internarem, toda despesa da clínica por nossa conta.

—Mas e se eles não quiserem? A maioria não quer se tratar? —JK pergunta, já pegando as mangueiras.

— A oportunidade tá aí abraça quem quer e se não quiser é pau no gato se vacilar de novo.

—A senhora quem decide!

— Aliás esse é o procedimento padrão em futuros casos semelhantes, manda no grupo só pra passar a ciência mesmo. Inclusive, se alguém quiser tratamento em qualquer tempo é só encaminhar para a Val que ela providencia.

— Pode deixar!

Me despeço dos irmãos e antes que eu Heloisa entre no carro começo a ouvir os gritos, sinceramente não tenho cabeça para essas situações, se eu tiver de fazer eu faço mas enquanto tiver como me esquivar certamente eu vou.

Volto para a cidade completamente sem espírito para mais nada, deixo Heloisa no nosso QG e vou para casa. Minha cara tá estampada a minha exaustão, assim que entro sou recebida por meus filhos que me abraçam e me beijam, só assim para que as dores do mundo somem dando espaço a sorrisos e paz.

Meu telefone toca, é Thiago, nossa relação já foi boa hoje em dia está muito desgastada mas não vou abandoná-lo naquele inferno, ele nunca me deu motivos para soltar sua mão. Como casal já entendemos que não há mais futuro, como amigos se mantivermos o respeito será para sempre.

Faz um ano e meio que Thiago está preso, sempre que eu ia visitá-lo surgia um problema diferente, como foi difícil. No primeiro trimestre ele foi transferido duas vezes para presídios diferentes e um mais longe que o outro, um sufoco só. Nesse último bonde, nosso maior problema foi a documentação, tínhamos que ser oficialmente casados, aí foi uma correria só. Quando enfim consegui fazer a carteirinha de visitante eu rodei, tudo graças uma cagueta que vivia colada em mim.

Passei cinco meses presa, e graças a um HC estou respondendo em liberdade, pouco antes de eu sair já havíamos decidido ficar só na amizade, sei o quanto é difícil e doloroso puxar tanto tempo e o quanto os sentimentos ficam aflorados, os dias de visita são sufocantes, ver os demais com seus familiares e a gente não receber nenhum abraço. A vida foi cruel com a gente, apesar da química e da afinidade nós fomos afastados antes de firmarmos os vínculos, contudo ficou a amizade.

Mesmo separados, Thiago sempre me liga e pergunta sobre a vida e os dias eu gosto de falar com ele, sempre temos um diálogo pacífico principalmente depois da separação.

—Alô, oi…, como você está?— Pergunto, atendendo a chamada.

—Ois, estou bem apesar do lugar, estaria melhor se estivesse aí com você, mas se Deus quiser essas portas vão se abrir e breve estarei na rua.— Ele fala com um fio de alegria na voz.

— Amém, amém! Está com a melhor voz hoje, vai me contar?

— Falei com o advogado e ele disse que nos próximos meses já saio e aí é só felicidades minha amiga. Vamos viver nossa vida longe de tudo isso e longe desse crime sujo.

— Que notícia boa! Mal vejo a hora de te ver livre dessas grades — Falo com o coração na mão, não tenho coragem de falar que estou mais dentro do corre do que nunca.

Conversamos um bom tempo, finalizamos com uma oração e nos despedimos. Minha consciência está pesada mas eu vou continuar escondendo essa realidade estou sem cabeça para conselhos que não vou seguir.

Melhor que eu faço é abstrair, fingir demência e deixar a vida acontecer, não vou me estressar por antecedência, o que eu poderia fazer eu não fiz que era bater o pé e dizer não, por mais que eu diga que não dava para negar eu sei muito bem que aceitei por ego e sede de poder.

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