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Soul Parsifal

CAPÍTULO 1

"A Maria Fumaça"

Muitas vezes procuramos por mudanças em nossas vidas, mas invariavelmente descobrimos que é mera fabulação. Deixei-me levar pelo entusiasmo, isso é verdade, mas quem nunca se apaixonou?

Minha humilde vida, de uma mulher simples do interior cheia de cicatrizes vai além dos sinais do tempo. Dei-me a condição de recusar, mesmo sabendo que mulheres sempre pagarão um preço alto, por serem simplesmente… Mulheres!

O sonho de conseguir alguma coisa é apenas uma ideia, então muitas vezes nos agarramos a ela de forma muito emocional, e quando percebemos que não saiu como gostaríamos, inclinamos a desencorajar.

Ao menos funciona assim no amor e outras vezes no luto. Comigo foi dessa maneira, mesmo ansiando em libertar-me, nunca pensei desejar o pior mal a uma pessoa, mas descobri que não é assim que a vida funciona. Pequenos desejos podem ser realizados, mesmo se ditos da boca para fora.

Nunca achei-me vaidosa, mas por alguma razão ao acordar essa manhã, peguei-me olhando ao espelho. Meus cabelos negros lisos e soltos estavam tão lindos, que fizeram-me lembrar que ainda podia haver beleza em mim.

Essa, tão maltratada e escondida, fruto de um pensamento antiquado, onde a única forma de ser útil era servir ao marido, seu dono, como um objeto.

Então pergunto-me, onde estás o amor? Ou melhor… O que seria o amor? Certamente eu ouviria a resposta, vinda dos senhores, dizendo que o amor é cuidar de seu senhor marido e servi-lo para que esse trouxesse o alimento para casa, mas seria somente isso? Realmente nascemos para isso?

Não podemos escolher quem e quando amar? O que ser e quando ser? Hoje consigo ver tudo isso.

Falando no amor... Li um poema que resume muito bem tudo isso, irei recitá-lo agora, para confortar corações solitários que assim como eu, estiveram presos e assim possam ser libertos.

"Eu te amo porque te amo.

Não precisas ser amante,

e nem sempre sabes sê-lo.

Eu te amo porque te amo.

Amor é estado de graça

e com amor não se paga.

Amor é dado de graça,

é semeado no vento,

na cachoeira, no eclipse.

Amor foge a dicionários

e a regulamentos vários.

Eu te amo porque não amo

bastante ou de mais a mim.

Porque amor não se troca,

não se conjuga nem se ama.

Porque amor é amor a nada,

feliz e forte em si mesmo.

Amor é primo da morte,

e da morte vencedor,

por mais que o matem (e matam)

a cada instante de amor."

Amor é uma troca, és o irrefletido. No início não percebe-se isso, ficamos tão abastados com tal sentimento, que vos cega, depois dói, mas sempre cura-se.

Irei lhes contar minha breve história de amor quase verdadeiro, podes achar-me demasiada basbaque, mas quem nunca se deleitou de ilusões com o amor? Ainda mais uma que senti e não durou um verão e depois se esvaiu-se num estalo, tudo começou um ano atrás.

Meu dia como sempre começou comumente, levantei-me indo até o quintal pegar alguns ovos, no escuro da madrugada. O cheiro costumeiro do pé de goiaba do quintal do vizinho, era um perfume o qual trazia-me recordações de quando eu era pueril, saltando o muro do velho senhor Romildo e fugindo ao ouvir seus gritos de "saíam do meu quintal, suas pestes", enquanto corria em nossa direção segurando os suspensórios.

Não pude conter-me e soltei um breve sorriso com tal reminiscência. O cheiro de café parecia ter acelerado meu senhor esposo Francisco, que apressado engoliu um pedaço de pão, despediu-se de mim e saiu em passos apressados, pois o caminhão que levaria para a lavoura, já iria passar e não era tolerado atrasos.

Francisco vinha de uma família humilde, não tinha muito estudo, então era bem rude. Fato esse, que de alguma forma o fez conquistar o respeito de meu pai, que acabou dando-lhe a bênção de casar-me com ele.

Durante muito tempo, foste um fardo pesado para Francisco, o fato de meu pai ter dado nossa casa como prenda do nosso casório.

Sempre ouviu que foi um casamento por interesse, de tão costumeiro, exigiu que morássemos na cidade mesmo não estando em condições de fazê-lo, mas estranhamente foi aceito por meu pai e finalmente tornou-se chefe de sua própria família, fugindo da sombra do sogro.

Após a morte de seus pais, Francisco ficou diferente. Começou a beber, desistiu dos estudos e um jeito bruto tomou conta de suas ações. Começou a ver-me como uma propriedade, um objeto o qual, ele como dono, fazia o que quisesse.

Isso foi o início do fim, foi onde a felicidade começou a dar espaço para a tristeza, mas não havia muito que eu pudesse fazer, apenas ser uma esposa dedicada.

CAPÍTULO 2

Após pentear os cabelos, prendi-os e fui alimentar os porcos. O sol já iluminava o lado de fora, anunciando que já era hora das crianças acordarem.

Tomamos café juntos e depois ajudei Maria, minha pequena, a pentear seus longos cabelos castanhos escuros, colocando um pequeno laço vermelho em seguida.

Resolvi passear com meus filhos Antônio e Maria, para me distrair um pouco. Estava um dia quente, então propício para caminhar, diferente do friúme das manhãs anteriores.

Trajando meu tailleur de tons cinzas, parecia ajudar a esquentar muito mais meu corpo e a refletirem o sol diretamente em mim, fato esse rechaçado por Antônio que chamava-me de exagerada.

— Mãe estás a exagerar, estás um ótimo dia para brincar.

Maria estava mais agitada, não havia puxado a personalidade do pai. Ela era faladeira e expunha opiniões a todo momento. Enquanto Antônio limitava-se a pequenos gestos corporais, sendo a cópia de seu pai.

Havia uma animação ímpar na cidade, alguns homens tinham chegado à cidade para a reforma da unificação das redes dos trilhos, nossa cidade deixaria de ser apenas uma baldeação para trens de carga.

Finalmente teríamos uma Maria Fumaça passando por nossa cidade, facilitando muito o sonho de conhecer a capital. Fiquei imediatamente empolgada com essa ideia, seria algo esplêndido.

Enquanto meus filhos brincavam com seus amigos, acomodei-me em um banco que estava próximo deles, assim poderia vigiá-los e ao mesmo tempo curtir o belo dia.

Estava distraída olhando para Maria que brincava de amarelinha com outras crianças e não percebi que alguém havia sentado ao meu lado.

— Dia quente hoje, não acha?

— Ah... É sim. — Respondi com acanho.

— Que descuido de minha parte. Desculpe-me pela falta de educação, Meu nome é Dário. E o seu, senhorita? — Perguntou tirando o chapéu em forma de educação.

— Senhora… Sou casada. Desculpe-me, mas não te conheço, és novo aqui na cidade?

— Desculpe Senhora, e sim. Vim a trabalho como muitos outros.

— Espero que consigas algo.

— Na verdade eu já consegui. Sou um dos que estão trabalhando na reforma da estação aqui de Taubaté.

— Nossa, que espavento! — Tentei ser simpática, mas sem dar muita conversa.

— Nem tanto... Mas pelo menos é um bom trabalho.

— És de qual cidade? — Eu tentava não demonstrar arroubo.

— De São Paulo, capital.

— Desculpe a bisbilhotice da minha parte, mas por que alguém da capital procurarias trabalho no interior?

— Tenho de irdes onde estás em demasia, e no momento a estrada de ferro és a melhor alternativa.

— Tenho de corroborar com você.

— E pretendes voltar para a capital quando acabares o trabalho?

— Não sei... Nunca sabemos para onde o vento poderá soprar. — Respondeu soltando um sorriso encantador. — Conheces a pousada da Dona Joana? És onde estou com alguns amigos, Se quiseres, poderia mostrar-me a cidade, pois ainda não a conheço muito.

Na hora fiquei nervosa com o convite, não era certo aceitar, como mulher casada deveria colocar-se em tal lugar, mas algo dentro de mim gritava para que aceitasse, porém antes que pudesse responder, fomos interrompidos.

— Mamãe! O Antônio machucou-se jogando bola.

— Oi filha... O quê? Onde estás ele?

— Lá, caído no chão. — Ela apontava para o lado oposto de onde estávamos.

— Estás tudo bem Mãe, só ralei o joelho. — Antônio gritavas com cara de dor, vindo manquitola em minha direção.

— Então és casada mesmo? — O homem perguntou um pouco surpreso.

— Sim. Casei-me há 8 anos, já tenho dois filhos como podes ver...

— Que pena! Julgo que cheguei tarde... — Falou Dário, ruborizando meu rosto.

— Preciso ir... Foi um prazer conhecê-lo, senhor Dário! — Falei levantando-me apressada, indo na direção do meu filho que ainda mancava bastante.

— O prazer foi meu, senhora.

Depois de nos afastar alguns passos, pudia ver no olhar da pequena o anseio de curiosidade que transborda de toda criança.

— Mamãe, quem eras esse homem? — Perguntou Maria sem disfarçar a curiosidade.

— Um amigo, filha. Você promete uma coisa para a Mamãe? — Virei-a de frente a mim. — Não contes para o papai, ele poderá ficar bravo com a mamãe, estás bem?

— Por que o papai ficarias bravo com a senhora? — Havia uma inocência angelical no rosto da menina.

— Porque o papai às vezes é rude, e tu não vai quereres que ele fique enfurecido comigo, estás entendida amor?

— Sim mamãe. — Ela sorria gentilmente.

— Então dê-me um abraço bem forte.

Enquanto acudia Antônio e via seu ferimento, não conseguia parar de pensar em Dário. No auge de seu vigor físico, ele aparentava não ter mais que 25 anos. Moreno e bem alto, vestia uma calça de tecido e uma camiseta simples, um pouco surrada provavelmente pelo trabalho braçal que fazia.

Após fazer alguns mimos em meu filho, ajudei-o a levantar e assim voltamos para casa. No caminho passamos na mercearia do Senhir Calil e pegamos pães e leite. O dinheiro estava um pouco curto e por isso não havia espaço para comprar muitas coisas.

CAPÍTULO 3

Quando chegamos em casa, fiquei surpreendida com a presença de Francisco. Logo percebi que ele havia bebido e estava bêbado, novamente… Confusa, perguntei-lhe o motivo de estar ali essa hora do dia.

— Aconteceste algo? Não eras para estares na lavoura?

— Cale-se! — Respondeu com a voz embaralhada.

Fui recepcionada com um tapa no rosto, ignorando a pergunta feita, disse que a comida feita por mim estava ruim e que não era de minha alçada o que ele devia ou não fazer. Então continuou...

— Tantos anos casados e não aprendeste ainda a cozinhar? Sua imprestável. — Sua voz embaralhada com seu hálito de álcool fazia-me ter nojo.

Mandei as crianças para o quarto, de certa forma estavam acostumadas com aquilo, pois não questionavam mais, apenas iam. Chorei e fui para nosso quarto lamentando o fato de estar casada com esse alcoólatra.

Definitivamente não era um casamento feliz. Foi um casamento de certa forma arranjado, conhecia-o por brincar na fazenda de meus pais, acabamos fazendo amizade e depois criou-se um sentimento entre nós.

Gostava dele e quando ele começou a falar sobre casamento, consenti, mas eu tinha 16 anos e ele 22, não sabia ao certo no que estava prestes a entrar.

Tinha a imatura ideia de que a vida com alguém seria como as novelas transmitidas pelo rádio. Eu sonhava com uma história de amor, mas, minha realidade era muito diferente.

Pior que a agressão física em si, eram as humilhações psicológicas. Tive vontade de desistir da vida, de tudo... Mas achava forças para continuar unicamente por meus filhos.

Confesso que a ilusão de achar que ele mudaria, moldava de certa forma meus sentimentos, pois nos dias seguintes às agressões, Francisco era diferente, era carinhoso e muito atencioso, e eu perguntava-me o motivo de não ser sempre daquele jeito, isso muitas vezes confundia-me e fazia-me sentir-se pior, fazia-me pensar que talvez tivesse culpa, era mui nova e não uma esposa experiente.

Então os dias se passavam, os dias foram virando semanas que depois viraram meses. Quando percebi haviam se passado 8 anos. No meio de tudo isso, as duas gravidezes, que tornar-se-iam a única coisa boa gerada nessa união.

De certa forma eu entendia a pressão em cima de Francisco. Ele sozinho sustentava a casa, poucos na cidade podiam dar-se esse luxo, mas tínhamos uma linda casa, porém humilde. Como fui criada a vida toda na roça da cidade, foi um vislumbre quando me casei, podendo ter minha casa próximo ao centro urbano.

Era um sentimento de representar a vitória de uma mulher da família, não que fosse demérito passar a vida toda na roça, minha mãe havia passado e era devera feliz, mas eu carregava o rótulo da família como a única a ser bem sucedida, como se ter uma casa simples na cidade fosse sinônimo de bem sucedido…

Mas eu mantinha o orgulho, principalmente da minha mãe, e isso dava-me ânimo para sobrevivermos.

Meu pai não se importava muito com isso, tinha sua vida simples, suas posses, suas galinhas e seu porco genovésio, esse que por assombro de todos, fazia parte da família apesar das inúmeras vezes que minha mãe insistiu em matá-lo para fazer um grande boquejo.

Na verdade, para eles aquilo era sinônimo de felicidade, preferiram esconder-se no campo, mesmo podendo ter uma vida na cidade.

Naquela noite peguei no sono enquanto essas lembranças acalentaram meu coração, mas ao colocar a mão no rosto onde havia sido esbofeteada, fez-me chorar e cogitar o impensável, desquitar de Francisco, mesmo sabendo que como mulher, não tinha essa escolha.

Nesses tempos modernos onde as pessoas tinham evoluído e a escravidão parecia ser um problema distante, nós mulheres tínhamos apenas o direito de ficar em casa e cuidar das crianças e do esposo.

Não é que eu achasse isso ruim, mas achava pouco, diria até que bem raso. Talvez eu seja diferente das outras mulheres ou quiça esteja a frente do meu tempo. Talvez os livros que eu tanto li quando criança, graças a vizinha, me encheu de novas perspectivas e vontades.

Todos temos sonhos, mas infelizmente ficamos presas às nossas limitações e realidades. Por mais que eu quisesse ser diferente, de repente me via presa na mesma prisão que qualquer mulher estava. Essa prisão tinha nome e mudava apenas o sobrenome de acordo com cada mulher.

Minha prisão se chamava Casamento e o sobrenome, Francisco!

Entre anseios e sofrimentos, ia seguindo minha vida com pequenas partes de esperança no amanhã. Mesmo que esse "amanhã" parecesse muitas vezes distante, ao menos algumas vezes nos traz pequenos presentes em forma de pessoas educadas.

Seria Dário um desses presentes ou seria uma maldição?

No momento a única coisa que conseguia pensar de verdade era no meu rosto dolorido e no meu coração despedaçado.

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