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TODAS AS NOTAS QUE TE COMPÕE

CAPÍTULO 1

A PORTA AO LADO

   

Sexta-feira, 1 de maio de 2015

    Estou tomando coragem para bater na porta deles a exatas duas horas. Nós somos vizinhos a mais ou menos uma semana e bem, parece que faz um mês! É inacreditável como o tempo parece estar se comportando diante desta situação.

Respiro fundo mais uma vez e sento no meu sofá velho. Parece que meus vizinhos sonham em ser estrelas do rock ou algo do tipo, o que tem tirado a minha paz todas as noites desde que se mudaram, mas não é que eu desgoste da música deles, pelo contrário, nos dois últimos dias eu me apaixonei. A questão é que tocam a mesma música todas as noites e o pior, não tem letra, além de ser bastante deprimente. Bonita, mas deprimente. 

No terceiro dia eu já tinha enjoado, principalmente porque bagunçou totalmente os meus horários. Tenho tentado escrever um artigo cientifico para não perder o foco, mas a folha continua em branco e como o único fator adverso na minha rotina são eles, o motivo pelo qual não consigo escrever não deve ser outro. Além disso, a minha capacidade intelectual não deve ser questionada.

 Se eu for sincera, talvez o fato mais relevante a ser dito é: eu tenho vizinhos e não sei como devo me sentir a respeito.

Levanto mais uma vez, decidida. Já fiz a mesma coisa tantas vezes que perco a contagem e, em cada vez que levanto, arrumo uma desculpa para não ir. Primeiro me forcei a sentar porque não eram dez horas da noite, horário limite em que a lei permite dissonância de sons. Quando o ponteiro marcou dez horas em ponto, eu me levantei e em seguida, bati o pé irritada. Qual é o meu problema? Desde então, fiz o mesmo processo repetidas vezes, o que provavelmente é um alivio. Repetição é bom.

Olho para o relógio na parede, são onze e meia da noite, por que meus vizinhos não são como 99% dos solteiros do mundo e não saem em uma sexta à noite? Quero dizer, também estou solteira e faço parte do 1%, a diferença é que eu não incomodo ninguém em uma sexta-feira à noite!

O relógio marca onze e trinta e um. Olho para o espelho e vejo minha imagem refletida nele. Com certeza, não é a imagem que eu quero ver para tomar coragem e bater na porta deles. Meus cabelos castanhos estão arrepiados, então passo a mão em desespero para tentar ajeitá-los; meus olhos estão espantados; meus lábios estão secos, por isso, passo a língua rapidamente para molhá-los e dou um tapinha em cada bochecha para trazer um pouco de cor ao meu rosto.

— Alone, eu sei que você consegue! — digo para minha imagem refletida no espelho. Os conselhos dos livros de autoajuda não estão ajudando, preciso jogá-los fora.

É, eu sei. Meu nome é tão bonito quanto incomum, é o que as pessoas dizem. Em qualquer lugar que eu vou, sempre perguntam para confirmar, mas ele combina tanto comigo que é surreal.

No atual momento, tenho um total de zero amigos e, quanto a minha família, bem, eles moram a milhas de distância daqui. Moro em Normist, uma pequena cidade no interior da Carolina do Norte, leva só duas horas em dias bons para atravessá-la. Vim parar aqui depois de receber uma proposta de emprego. Eu não tinha muitas opções — não que valessem a pena —, então precisei aceitar. 

Decididamente, é agora! Eu posso, quero e vou fazer. Bato a porta com mais energia do que deveria, deixando minha pequena casa para trás. Não me importo que esteja com um roupão por cima do pijama, muito menos que esteja com os pés descalços tocando o chão úmido e escorregadio, nem para a minha aparência descuidada. Estou empolgada como não estava em meses.

— Chega um momento que você precisa ir lá e fazer — murmuro para mim. É certo que os livros de autoajuda precisam ir para o lixo.

Sinto que só por ter atravessado a porta já é uma vitória. Podem achar tolice, mas nos últimos tempos tenho vivido dessa forma, enfrentando-me dia após dia. 

Talvez tenha sido um erro ter saído quando o tempo estava tão frio com apenas um short e um roupão, também se mostrou um erro sair descalça para atravessar a grama, nos primeiros dez passos eu escorreguei e quase caí. O universo parece estar jogando contra mim, no entanto, eu tenho plena consciência que é porque não estou me colocando em condições favoráveis. As leis da física. Droga! Outro escorregão.

Subo os degraus da casa do vizinho pronta para bater na porta, até que uma onda de ansiedade me atingi. Não foi nada muito forte, apenas o suficiente para fazer eu hesitar. Seria tolice ter ido até ali? O universo mesmo já tinha mandado mensagens claras declarando o óbvio! Viro-me, dando as costas para a porta, pronta para voltar para casa, de onde evidentemente eu não deveria ter saído.

A porta se abre com um rangido e eu pulo assustada. Uma voz rouca, pergunta: 

— Você deseja alguma coisa? — pergunta ele. 

Eu desejo muitas coisas, talvez mais do que seja permitido, mas preciso ter foco, preciso ser direta. É a minha chance. Se eu conseguir falar. 

Viro-me devagar até ficar de frente a ele. O vizinho é a cena mais perturbadora com que me deparo, desde sempre. Você sabe, ele é tão bonito que chega a ser desconcertante, deve ser o modelo ideal para o sexo masculino. Só que beleza, não é tudo, repito para mim mesma, sou prova disso. É provável que ele seja um narcisista idiota. Decido, ele é!

— Eu — começo, mas não termino. O fato de eu achar que, possivelmente, ele seja um idiota não ajuda em nada a minha causa. Tento de novo com mais vontade. — Preciso falar com vocês. — Impossível ele ser mais idiota que eu, brigo comigo. Claro que preciso falar com eles, caso contrário, por que estaria ali, não é mesmo? 

— Pois bem, fale — diz ele se apoiando no batente da porta. 

Retiro o que disse, a forma como a camisa preta apertou os músculos dele quando cruza os braços é que foi desconcertante. Ele sabe que está sendo intimidante e, está funcionando, garanto. Algumas tatuagens cobrem os braços dele e eu as avalio tentando buscar palavras firmes, mas ao mesmo tempo gentis. Eu odeio conflitos, a maioria deles, pelo menos. 

— É a garota que bateu a porta na nossa cara? — gritou um deles de dentro da casa. 

Eu não precisava dos tapas que dei em minhas bochechas, estou mais corada que tomate em dias quentes, aprendi a duras penas como devo agir diante de uma situação constrangedora. Porque, afinal, sou eu mesma. Mas claro, tenho uma boa desculpa.

No dia em que eles se mudaram, a uma semana atrás, eu estava sentada na grama lendo um livro. A vizinhança não é tão movimentada e desde que os imóveis na capital deram uma diminuída nos preços, a maioria dos vizinhos se mudaram para lá. Em uma rua com vinte e duas casas, ficaram para trás a Sra. Madoxx, a quem eu carrego as sacolas do supermercado pelo menos uma vez no mês, um casal estranho e o seu cachorro com quem eu nunca tive contato, o Sr. e a Sra. Franco com os seus três filhos, Srta. Maria, uma solteirona e eu. Mas alerto que é possível que eu não tenha lembrado de todos ou, ao menos, saiba de suas existências simplórias.

O que eu estava fazendo sexta-feira à tarde em casa? Eu tinha ligado para o meu trabalho pela manhã e dito que estava doente.  Você sabe, eu estava indisposta! Fiquei nervosa porque seria a primeira vez que eu mentiria tão descaradamente, mas deu certo. Acho que ficaram até aliviados por finalmente eu tirar uma folga. Então, como eu estava livre para fazer o que quisesse, a tarde joguei um pano no gramado e li. Quando ouvi o caminhão de mudanças dobrar a rua não liguei, porque não pensei que poderia ser os novos vizinhos. Engano o meu!

Aos poucos a rua estava ganhando vida de novo. Eram os segundos moradores em menos de um mês.

O caminhão parou quase de frente aonde eu estava, então, fiquei em pânico. Sentei e fiquei tentando entender a situação, mas quando três homens saíram de dentro do caminhão, foi a gota d’água. Eu precisava sair dali. Recolhi minhas coisas na maior pressa, é tanto que deixei meu livro para trás e quando voltei para buscar, horas depois, ele não estava mais lá. Um deles gritou acenando para mim, mas eu já estava caminhando apressada para dentro de casa para distinguir qual deles havia feito. Agora, eu sei. 

— Cala a boca — gritou uma segunda voz de dentro da casa com a primeira. — Você vai assustá-la, de novo! É a vizinha?

— Babacas — diz o vizinho à minha frente, balançando a cabeça. — Então, você tem algo a dizer — lembrou ele. 

Talvez eu esteja em choque, mas o pior que pode acontecer é eu sair correndo. Já tinha acontecido uma vez. 

— Bem, eu tenho mesmo — repito, de uma forma que é provável que tenha levantado suspeitas sobre o meu intelecto. 

Continuo parada e ele ergue as sobrancelhas paciente, parece estar achando graça da minha falta de jeito. 

— Não seja idiota — diz um loiro surgindo na porta para o homem a minha frente. — Somos cavaleiros, lembra-se? Entre, querida. 

Preciso morder a língua para não o corrigir. Agradeci em um sussurro que nem eu que proferi as palavras tinha ouvido e entro na casa. Um terceiro homem apareceu vindo da cozinha. Os três juntos é uma visão e tanto, não somente porque eram bonitos — apenas o que tinha aberto a porta era lindo de tirar o fôlego com os seus cachos negros caindo na testa —, mas porque possuíam uma presença marcante também. Se algum dia cruzasse com eles, é certo que não iria esquecer.

CAPÍTULO 2

VIVA O ROCK ‘N ROLL

Sábado, 2 de maio de 2015

Eu descobri ao menos o nome deles, o que possivelmente não é tão importante quanto acredito ser, mas também é pouco provável que eu esteja errada. Parecem ser aceitáveis, não os idiotas que eu temi serem, pelo menos dois deles não são, mas eu não posso ter tudo, já tenho o que a maioria quer ou deveria querer. Contudo, eu também não sou uma especialista em julgar caráter, um ponto negativo em minha observação.

— Sou Alex Rivers — diz o loiro de camisa regata deixando o seu peitoral amostra. — Baterista, guitarrista, seu vizinho mais gato, bartender nas horas vagas e ainda arrisco uns vocais. Ou seja, sou o pacote completo, com algumas surpresinhas.

O cabelo de Alex é quase tão grande quanto o meu e, eu tenho certeza que aquele nariz já foi quebrado mais de uma vez, embora, sua expressão seja afetuosa. Ele parece ser sufista ou só um adepto do visual padronizado que a profissão parece exigir e, parece também acreditar que possui dotes humorísticos, o que não é o caso. E foi ele que acenou para mim no outro dia.

— Não vai dizer que é um prazer para as mulheres te terem em suas camas como fez nas outras vezes? — pergunta o vizinho que parece ser mais gentil, dirigindo-se a Alex, mas deve ser uma pergunta retórica, pois ele não espera a resposta. — Sou Arnold Simonds, mas pode me chamar de Killer — diz, apresentando-se e acrescenta uma piscadela no final.

Killer faz o tipo bad boy, mas nem tanto. Ele tem os cabelos castanhos bagunçados, o sorriso encantador e os olhos mais sinceros que eu já vi. Não é tão alto como Alex, mas definitivamente é o mais musculoso entre eles. Eu posso entender o porquê do apelido.

O silêncio tomou o ar, apenas alguns segundos, mas o suficiente para nos deixar desconfortáveis. Killer lança um olhar para seu amigo e ele retribui, parecem estar conversando em uma linguagem que eu não sou capaz de entender.

— E eu sou Sagan O’Connor.

Eu acho o nome dele tão diferente quanto o meu, é bonito e soa bem, também é o nome de um dos cientistas que eu mais admiro. Sagan tem os braços repletos de tatuagens, também é quase tão alto quanto Alex e, é lindo como eu nunca vi antes, mas o que eu não disse, é que ele tem os cabelos tão pretos e brilhantes que deixariam qualquer mulher com inveja e, os seus olhos são do mesmo tom do cabelo, embora sejam tão perigosos e traiçoeiros quanto um buraco negro, o completo oposto de Killer. Se eu fosse uma estrela, temeria ser sugada pelo seu campo gravitacional.

Percebi que outro silêncio se instaurou enquanto eu o avaliava. Só espero que não tenha deixado transparecer, não acho que seja assim que indivíduos se relacionem, embora eu saiba que avaliação é o primeiro passo para tal. Preciso me apresentar conforme as normas de etiquetas exigem. Respiro fundo.

— Sou a vizinha — declaro o óbvio, de novo. — Alone Severin. — Coloco as mãos atrás do corpo para eles não verem que elas estão tremendo.

Alex arregala os olhos.

— Sério? Seu nome é esse mesmo? — quis saber.

— Não seja idiota — rebate Killer. — Ela não quer ouvir suas bobagens.

Eu fico em dúvida se devo concordar com ele ou não. Como devo agir em situações como essa? Normalmente, eu concordaria.

— Tá bom! — Alex levanta as mãos em rendição. — Qual é o motivo da visita? Mas não se preocupe, você evitou mais uma rodada de ensaios. Legal.

Sagan se apoia na parede e espera com o mesmo olhar divertido de antes. Ele acha que eu não consigo responder? Começo a falar o meu discurso ensaiado, fato que altera levemente a ordem da minha lista.

— Não é que eu desgoste do som de vocês — afirmo. Acho que estou indo bem, é assim que os jovens falam, não é?

— Droga! — exclama Alex.

Pulo assustada, pronta para fugir pela porta. Não esqueci que estou sozinha com eles.

— Ei, calma! Desculpa, não quis te assustar, gata — diz Alex. Ele tentou se aproximar, mas acho que dei um passo para trás.

Sagan intervém, colocando-se entre eu e ele.

— Se gostou do som — Sagan dá ênfase na última palavra —, por que está aqui? Com certeza, não é para tocarmos para você.

Olho atravessado para ele. Não estou preparada para tantas perguntas, o que se mostra um erro comum entre indivíduos com intelecto inferior, que não é o meu caso. As mudanças na minha rotina, nos meus horários e nas minhas listas já estão mostrando seus efeitos negativos.

— Eu poderia ter pedido — defendo-me. Tirando é claro, o fato de que já passa da meia-noite, horário em que eu deveria estar dormindo.

— Mas não vai — retruca ele.

— Foca no lado bom, galera. Ela disse que gostou da nossa música. — Killer abre um sorriso sedutor. — E é a primeira mulher a dizer isso.

Reviro os olhos, o que quer que ele esteja fazendo não está dando certo.

— Não sei se podemos abrir a contagem dessa forma — diz Sagan.

O que ele quer dizer? Eu ainda sou uma mulher. Babaca! Suspiro, chateada. Usei mais de um substantivo e adjetivo ofensivos hoje.

— Verdade — concorda Alex, dando de ombros.

O quê? Babacas!

— Bem — começa Killer com a intenção de não continuar.

Babacas!!!

Devo estar vermelha agora, mas por outro motivo. Estou zangada, não, furiosa. Quem eles pensam que são? Vou ligar para as autoridades competentes toda vez que passar das dez horas e eles não pararem de tocar.

— Quais são suas bandas favoritas de rock? Cantores? Músicas? — pergunta Alex.

— O quê? — Estou atônita. Pisco os olhos em uma tentativa de me recuperar.

—Você não pode falar Queen, nem Scorpions, os Beatles e Rolling Stones também não, todo mundo gosta deles. E quanto aos rocks alternativos poucos se salvam — alerta Sagan.

Lentamente, eu abro a boca, mas as palavras não saem. Estou sorrindo interiormente, porque mais uma vez eu interpreto a situação de forma errada. Os rapazes ficam sem entender minha reação. Devo parecer uma louca descabelada e sem os sapatos.

— Ela está bem? A lista foi tão desafiadora assim? — quis saber Alex, confuso, passando a mão pelo couro cabeludo.

— Parece que está rindo — balbucia Killer. — Mas não tenho certeza.

Eu continuo com a expressão fechada, mas divertida uns bons minutos. Sinto uma mão pousar delicadamente no meu braço. Meu primeiro impulso é me afastar, mas quando vejo que é Sagan e parece estar tão temeroso e confuso quanto os outros dois, tenho pena deles e me deixo guiar para o sofá.

— O que houve? — pergunta Sagan baixinho. Seus olhos parecem estar sugando a luz da sala.

Baixo os olhos, porque não posso encará-lo. É demais para mim, mas respondo sua pergunta.

— Achei que estavam ofendendo minha feminilidade.

— O quê? — grita Alex. Ele é muito intenso, penso.

— Mil desculpas se fizemos isso — desculpa-se Killer, confuso.

Eles não entenderiam, como poderiam?

— Você quer falar sobre isso? — murmura Sagan.

— Não — sussurro de volta.

Ele assente e se levanta.

— Não lembro de você nos responder sobre suas músicas favoritas. Precisamos avaliar o seu gosto musical — brinca Sagan.

Agradeço com um olhar rápido direcionado a ele. Talvez, ele não seja o babaca que eu achei que fosse, parece entender que não estou disposta a interagir com eles. Eu costumo errar quando se trata de pessoas, mas não com tanta frequência.

— Se eu disser qualquer coisa diferente do que vocês gostam, não vão aprovar — digo, confiante. Uau. Acho que nos últimos meses essa palavra não foi muito usada por mim. — Basta dizer que rock não é o meu gênero musical preferido, mas que eu gostei da música de vocês. A questão é que não tem letra, o que me afligi. E o principal, eu preciso trabalhar. — Finalizo quase sem ar, esse foi o maior conjunto de palavras que eu disse a noite inteira.

Eles ficam em silêncio por um instante, em seguida se encaram. Eu estou impaciente.

— Acredito em você — declara Killer.

Alex repete a afirmação e Sagan dá um sorriso matador. Droga, estou usando o apelido de Killer para descrever outro homem. Preciso de um copo de água.

— Então, vamos precisar fazer um acordo — afirma Killer.

Acordo? Não foi para isso que vim aqui. Acordos são vias de mão dupla, por isso, precisarei me envolver. Sei que eu cumprirei a minha parte, mas eles manterão a sua? Como estão propondo dou o benefício da dúvida.

Olho ao redor, prestando atenção na casa pela primeira vez. Eles depositaram os objetos no cômodo sem se darem ao trabalho de arrumar e, estou olhando só para a sala! Tem uma jaqueta em cima do sofá! O restante da casa deve estar um completo caos, minha cabeça doe, estou planejando nesse exato momento uma lista de limpeza para eles.

— Que acordo? — questiono.

— Nós tocamos das nove e meia até onze e meia, o restante das noites são suas — propõe Killer, jogando seu charme para cima de mim.

Preciso me segurar para não revirar os olhos diante da sua tentativa tosca de me enfeitiçar ou seja lá o que está fazendo.

— Das nove às dez — proponho. É, eu posso ser durona.

— E por que não das nove as dez e meia? — pergunta Alex.

— Porque eu posso chamar a polícia quando passar das dez — respondo. Parece que eu mandei para anos-luz a gentileza.

— Uou, a gatinha tem garras — grita Alex.

Essa gatinha tem garras, quero responder, mas seria demais para mim.

Eles estão surpresos. Eu estou surpresa também, depois de vinte e um anos, descobri minhas garras. Antes tarde do que nunca. Eles não ficam irritados, principalmente Alex, parecem divertidos.

Sargan me leva para a porta, enquanto Alex grita.

— Das nove às dez. Se passarmos pode chamar a polícia.

Aceno em resposta.

Quando atravesso a porta, a brisa fria de maio me atingi. Seguro o roupão com força contra meu corpo. Sagan olha para os meus pés e franze o cenho. É possível que tenha percebido só agora? Deveria ser mais atencioso aos detalhes.

— Posso emprestar um chinelo caso precise — oferece.

Não, eu não quero seu chinelo. Nego com a cabeça, digo um “tchau” tão baixo que acredito que ele não ouve. Corro de volta para casa tomando cuidado com a grama molhada. Por sorte, não levo uma queda na frente dele, se caso ele estivesse na porta ainda.

Abro a porta e entro. Limpo os pés no tapete e encosto na porta fechada. A noite não tinha sido como eu imaginei, enfrentei meu medo de contato humano fora do ambiente de trabalho, conheci três homens bonitos que é o que eu deveria estar fazendo em uma sexta-feira à noite, posso até ter flertado e não tive um ataque de pânico. Você sabe, é um dia bom esse.

CAPÍTULO 3

LEITE DESNATADO

Sábado, 2 de maio de 2015

Gosto de finais de semana, acho até que vivo por eles. Eu posso ficar o dia inteiro em casa, sem precisar ver ninguém por dois dias inteiros e o melhor, sem precisar trabalhar. Se o paraíso existir será como os finais de semana, suponho.

Mas acho que estou empolgada demais, porque afinal, vou precisar sim, sair. Houve um pequeno problema quando planejei o final de semana, eu preciso que tenha comida nele, porque querendo ou não, o ser humano possui algumas necessidades e ingerir alimentos é uma delas. Além do mais, é típico dos solitários se empanturrar de comida como uma forma de suprir suas carências.

 Eu poderia passar os dois dias pedindo comida, mas aos domingos à noite eu faço sopa. Fazer o que se sou uma criatura de hábitos? Chuto-me mentalmente, porque eu deveria ter ido quinta-feira depois de sair da Clark Company, mas eu estava com pressa para chegar em casa e escrever o máximo possível antes deles começarem a tocar e estava evitando contato humano, o dia tinha sido cheio dele. Normalmente, antes de odiar interagir com humanos, eu não deixaria algo para lá como fiz. 

E eu gostava de ir a faculdade e ter conversas acaloradas com o pessoal da física teórica, na maioria das vezes eu precisava corrigir os professores. Triste.

Sair domingo não é uma opção, então preciso ir agora. Quanto mais cedo eu for, mais cedo eu volto. São nove e meia da manhã. Pego meu celular e minhas chaves, coloco dentro da bolsa, coloco os óculos escuros no rosto e o boné na cabeça. Como aos sábados eu uso preto, o visual está aceitável.

Começo o trajeto do desespero. 

O supermercado mais próximo fica a uns dez quarteirões de distância e, eu vou a pé. Não tenho confiança para dirigir e nem o dinheiro para comprar um carro. Minha casa nem tem garagem. Acho que uni o útil ao agradável.

Verifico mais uma vez se não esqueci a carteira. Por sorte, a carteira está no mesmo lugar em que eu coloquei a minutos atrás, na bolsa.

Quando chego a calçada, vejo um jipe preto grande saindo da garagem dos vizinhos, mas continuo o meu trajeto. Dois minutos depois, ouço uma buzina muito próxima, chamando a atenção de dois pedestres para mim. Olho irritada para a rua e vejo o jipe preto parado, com a cabeça de Alex saindo pela janela. Penso em ignorar e fingir que não é comigo, mas Alex faz o impensável.

— Alone! Ei, gata! — grita ele.

Suspiro audivelmente querendo desaparecer — talvez eu esteja tendo um pequeno Acidente Vascular Cerebral — e, caminho até ele. Quando chego na janela do motorista, percebo que Alex não está sozinho, Sagan e Killer estão com ele. Eu mereço.

— Você está indo para onde? — pergunta ele.

Alex me fez passar vergonha para jogar conversa fora? É como confiar os seus contatos pessoais a uma pessoa e ela te enviar conteúdos vazios.

— Vou para o mercado — balbucio, entredentes. Não sei como consegui dizer uma frase tão longa com tanta irritação. É uma completa perda de tempo, tenho horários que devem ser cumpridos.

— Para onde? — quer saber Killer do banco do carona.

Alex responde por mim, por sorte, já que eu não ia falar de novo.

— Mercado — repetiu. — Hoje é o seu dia de sorte, gata. Nós estamos indo para lá agora. Entra aí — ofereceu.

Estou pensando em um jeito educado de recusar quando Sagan abre a porta de trás para mim. Eu não quero ir a pé, é energia desperdiçada, todavia, não sei se é o que eu devia fazer. Também não acho que esteja em perigo, mas eu não saberia dizer se estivesse. Suspiro mais uma vez e entro. Sagan se afasta da porta e eu sento ao seu lado. Passo o cinto de segurança automaticamente e vejo que nenhum dos três está com ele.

— Vocês não vão colocar o cinto? — pergunto em tom de reprimenda. Segurança é importante. E se acontecer alguma coisa? Eu não quero ser a única a sobreviver em um acidente porque usei o cinto!

Eles murmuram algo que eu não entendo e colocam o cinto. Killer vira para trás com um sorriso amarelo no rosto.

— Você vai assaltar o mercado? Pode tirar esse boné e o óculos — sugere ele. O olhar afiado que eu lanço em sua direção faz com que ele complete: — Se quiser.

Como eu não quero tirar e nem tinha a pretensão de fazê-lo, não os tiro e também não respondo.

— Você sabe o que precisamos comprar?  — pergunta Alex, olhando para a estrada.

— Nós precisamos comprar tudo — garante Sagan.

Olho espantada para ele.

— Você não tem uma lista? — pergunto.

Acho que não falo tantas palavras assim desde que aprendi a falar. Mas é impensável o fato deles não terem uma lista. Listas facilitam a vida, todo mundo sabe disso. Eu, por exemplo, tenho uma dentro da bolsa com seis itens, com as marcas a serem compradas e o valor máximo que eu posso pagar para as compras de hoje. Também tenho uma lista para os filmes que eu preciso assistir, com as séries que devo maratonar, com os livros a serem lidos, com o almoço nos dias de semana, do supermercado do mês que vem, das ligações que preciso fazer no Natal e mais algumas. Também tenho alarmes para cada item da lista. Como eu disse, para facilitar a vida.

— Não precisamos — diz Sagan, encarando a tela de seu celular e digita alguma coisa.

— É claro que precisam — murmuro, mas não insisto. Talvez eu esteja fazendo uma lista mental para eles, com prós e contras de comprar determinadas marcas, com os valores e, com a quantidade necessária para três homens. Talvez eu também tenha feito uma lista com os prós e contras de ter vizinhos, a coluna dos contras é cinco vezes maior que a coluna dos prós.

Preciso focar, eles não pediram minha ajuda, mesmo que precisem.

A viagem para o supermercado é rápida. Tem muitas vagas para estacionar vazias e, Alex escolhe a mais próxima. Quando desço do carro me sinto aliviada. Alex é bom um motorista, mas eu não sabia disso quando aceitei e aceitar a carona alterou minha rotina totalmente. Rotinas são feitas para não serem desfeitas. Preciso adicionar uma regra a minha lista “Regras da Alone”: não aceitar carona dos vizinhos.

Agradeço com um aceno rápido de despedida e ando apressada para dentro do prédio. Ajeito meus óculos e o boné. Por sorte, o segurança me conhece, porque eu não quero ser acusada de roubo, mesmo a probabilidade de uma pessoa ser um ladrão seja maior quando está vestida formalmente — o cérebro ignora.

Eu conheço esse supermercado como a palma da minha mão, as minhas compras são feitas aqui desde que me mudei. Pego uma cestinha e coloco o que eu preciso dentro. Em cinco minutos, tenho os ingredientes que eu preciso para fazer minha sopa e um pacote de batata frita com sal, mas com o tanto certo. Demorei séculos para descobrir a batata frita no ponto ideal.

Quando caminho para o caixa com a intenção de pagar, vejo Sagan e Alex em uma discussão acalorada sobre quais produtos se deve usar para a limpeza em geral. Eu posso pagar minhas compras e ir embora, ou eu posso ficar e ajudar. Prefiro ir embora, mas eles me deram uma carona, então preciso retribuir, porque, afinal, estou devendo.

Não é fácil para mim ir ajudá-los. Meu coração está acelerado e as palmas das minhas mãos suam, talvez esteja no início de uma crise, mas tento me controlar e forço o meu corpo a caminhar até eles. Parecem surpresos quando me aproximo ou talvez não queiram minha ajuda, não sei dizer. Fico mais nervosa, mas coloco um pequeno sorriso no rosto, não custa nada oferecer ajuda. Repito diversas vezes. Só que meu tempo precioso está sendo desperdiçado.

— Vocês precisam de ajuda? — indago, minha voz sai trêmula.

Killer coloca um detergente dentro do carrinho e sorri, agradecido. Parece sincero.

— Nós aceitamos sua ajuda.

Pego meu celular dentro da bolsa e vejo a minha lista de compras padrão, ela vai servir.

— Como vocês não tem lista e disseram que precisam de tudo, a minha lista padrão com alguns ajustes vai servir, certo? — Eu digo, devolvendo o detergente a prateleira. — Vocês não vão querer comprar esse.

Alex balança a cabeça em concordância. Sagan não se manifestou, parece interessado em algo no celular.

— Para maximizar o tempo, vamos nos dividir por seção. Como faço para compartilhar a minha lista? — Meu tom é autoritário, não deixo espaço para que discordem.

Sagan finalmente tira os olhos do celular e responde:

— Faça um grupo.

Tirando o fato de que preciso dar o meu número a eles, é uma boa ideia. Caso haja alguma dúvida sobre os produtos vou poder tirar. Alex é quem faz o grupo no aplicativo WhatsApp com o nome “A vizinha é demais”, mas com a ortografia incorreta e um símbolo substituindo a parte final da palavra demais. Preciso respirar fundo para não escrever da forma correta. Minha mãe está errada, eu posso aprender.

 Eu mando a lista, dividida com nomes e suas respectivas seções. Alex vai ficar com os frios, Killer com o material de limpeza, Sagan fica com a comida propriamente dita e eu com os utensílios de cozinha, três corredores para cada um de nós.

— Se não quiserem comprar algum produto, uma variação dele ou algum produto que não esteja na lista me falem com antecedência. Caso surja alguma dúvida mandem mensagem — informo.

Alex levanta a mão, quando termina de ler a lista.

— E a cerveja? — pergunta ele.

Eu pisco. Claro, como homens solteiros, eles gostariam de comprar cerveja. Qual é a melhor cerveja?

— Vocês têm alguma preferência? — questiono.

 Eu sei ouvir as pessoas e suas respectivas opiniões, mesmo que não concorde com elas.

— Temos — responde Alex.

— Então, você deve comprá-la! — afirmo, dando de ombros. — Mas atente-se ao teor alcoólico e ao que a marca apoia.

Killer dá um tapinha na cabeça dele, ato que eu suponho ter algo relacionado com a dominância masculina e Sagan ri. Acho que preciso imitar sua postura descontraída.

— Certo, cerveja resolvida! — diz Alex. — Mas Alone, você disse que deveria informar se eu não compraria algum item da lista, bem, não vou comprar absorventes.

Eles parecem bastante desconfortáveis com o assunto.

— Muito bem — concordo. — No entanto, quando vocês precisarem, essas são as melhores opções.

Eles caem na risada por algum motivo que eu não consigo entender, porque imagino que eles não queiram ficar solteiros por muito tempo, então se os seus parceiros forem do sexo feminino, é sempre bom ter absorventes a mão. Sempre se deve pensar em tudo. 

Cinco minutos depois já estou longe enchendo minha cesta. Dez minutos depois, estou no meio da lista, mas os produtos já estão caindo de dentro. Eu não gosto de carrinhos, evito o máximo possível. Eles são estranhos, grandes e não obedecem aos meus comandos.

Quando estou no final da seção, vejo Sagan empurrando o carrinho a três metros de mim, olhando para as prateleiras. A solução perfeita. Caminho rapidamente até ele e começo a esvaziar minha cestinha dentro do carrinho. Ele arqueia a sobrancelha e eu lanço um olhar inocente a ele.

— Eu ia mandar uma mensagem no grupo, mas já que você está aqui, então... — começa ele.

— Ah, pode falar — permito.

— Não gosto de leite desnatado — ele me encara.

Isso é um problema. Respiro fundo e tento me acalmar, o leite não é para mim, repito como um mantra.

— Tudo bem, mas eles são melhores — tento. E evitam doenças.

Não são para mim.

— Eu não acho — retruca, esticando a mão para pegar uma caixa de leite qualquer.

Não são para mim.

O mundo pode acabar a qualquer minuto.

— Esse não — agarro a caixa da sua mão e devolvo para a prateleira. Meu tom sai ligeiramente mais alto do que eu pretendia.

— Sim, senhora — diz ele fazendo uma continência, com sarcasmo na voz.

O sorriso de deboche de Sagan está estampado em seu rosto. Tento não prestar atenção na forma como as rugas ao redor dos olhos o deixa mais misterioso ou como, o canto da boca estremece quando ele o faz. Ele deveria ser estudado. Eu estreito os olhos em sua direção, o nervosismo ficou de lado sem eu ao menos perceber. Também não me importo que as pessoas pararam para assistir nossa interação.

— Este é melhor, tem menos gordura e sódio.— afirmo, pegando a caixa de leite semidesnatado. — Tem vitaminas e todos os componentes que fazem do leite um alimento tão importante para a nossa dieta. Sabemos qual é a procedência e não está perto da data de validade como o outro. Você olhou a validade desses produtos? — O olhar que Sagan lança é suficiente para eu ter uma resposta. — Não acredito! Você precisa, vocês precisam.

Não achei que precisasse alertá-los sobre algo tão importante.

Mando uma mensagem no grupo alertando Alex e Killer sobre a importância de olhar a data de validade. Eles respondem rapidamente com várias figurinhas e rostinhos felizes. Você sabe, nem um deles estava olhando a validade.

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