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Um Destino... O Amor!"Um Doce Harém!"

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Parte I

O RELATO DE SORAYA 1

InfânciaNasci em Marag, povoado da região de Jebel

Akhdar, a montanha Verde, não muito distante da fronteira com o Egito. Era 17

de fevereiro de 1989. Sim, 17 de fevereiro! Para os líbios, é impossível

ignorar essa data: foi o dia em que eclodiu a revolução que tirou Kadafi do

poder, em 2011. Em outras palavras, um dia destinado a virar feriado nacional,

ideia que muito me agrada.

Três irmãos vieram antes de mim, e outros dois nasceram

depois, assim como uma irmãzinha. Mas eu fui a primeira menina, e meu pai

exultava de alegria. Ele queria uma menina. Queria uma Soraya. Tinha esse nome

em mente bem antes de se casar com minha mãe. Ele me falou muitas vezes de sua

emoção no momento em que veio me ver. “Você era bonita! Muito bonita!”, sempre

dizia. E ficara tão feliz que, no meu sétimo dia de vida, na celebração que se

costuma organizar após os nascimentos, ele fez uma festança, como uma festa de

casamento. Convidados encheram a casa, tinha música, um grande bufê... Queria

tudo para a filha, as mesmas oportunidades, os mesmos direitos que os filhos

teriam. Certa vez chegou a me dizer que sonhava em ter uma filha médica. Tanto

é verdade que no colégio fez com que eu me matriculasse em ciências naturais.

Se minha vida tivesse seguido o curso normal, talvez eu tivesse mesmo estudado

medicina. Quem sabe? Mas que ninguém venha me falar em igualdade de direitos

com meus irmãos. Ah, isso não! Que nenhuma moça líbia acredite nessa ficção.

Basta ver como minha mãe, por mais moderna que seja, acabou por renunciar à

maior parte de seus sonhos.

E ela tinha sonhos enormes. E todos se frustraram. Ela

nasceu no Marrocos, terra da avó que tanto adorava. Mas seus pais eram

tunisianos. Ela tinha bastante liberdade, visto que quando nova fez estágio em

um salão de beleza em Paris. Isso é que é sonho, não? Foi ali que conheceu meu

pai, em um grande jantar numa noite do Ramadã. Ele trabalhava na embaixada da

Líbia e também adorava Paris. A atmosfera era tão leve, tão alegre em

comparação com o clima de opressão na Líbia. Ele até pôde fazer cursos na

Aliança Francesa, como lhe propuseram, mas era muito ansioso e preferia sair,

passear, aproveitar cada minuto de liberdade, ver tudo o que era possível. Hoje

ele se arrepende de não saber falar francês. Isso sem dúvida teria mudado nossa

vida. Em todo caso, quando ele conheceu mamãe, não teve dúvida. Pediu a mão

dela em casamento, que ocorreu em Fez, onde ainda morava a avó dela. E então o

que aconteceu? Ele a levou de volta, todo orgulhoso, para a Líbia.

Que choque foi para a minha mãe! Ela jamais imaginara viver

na Idade Média. Ela que era tão vaidosa, tão preocupada em andar na moda, bem

penteada, maquiada, teve de se esconder atrás de um tradicional véu branco e

limitar ao máximo suas saídas de casa. Ficou feito um leão enjaulado. Ela, que

sempre se sentira solta, de repente se viu amarrada. De forma nenhuma aquela

era a vida que papai a fizera imaginar. Ele havia falado em viagens entre a

França e a Líbia, de seu trabalho, que ele poderia realizar alternando entre os

dois países... E foi assim que, em questão de dias, ela foi parar no país dos

beduínos. Entrou em depressão. Então papai fez de tudo para se mudar com a

família para Benghazi, a segunda maior cidade da Líbia, no leste do país. Uma

cidade provinciana, mas sempre considerada um pouco rebelde em relação a

Trípoli, onde o poder estava instalado. Ele não podia levá-la a Paris, para

onde continuava viajando com frequência, mas pelo menos ela estaria morando em

uma cidade grande, não precisaria usar o véu e poderia até trabalhar como

cabeleireira num salão que abriria em casa. Como se isso fosse consolá-la...

Ela continuou deprimida e sonhando com Paris. Contava para

nós, seus filhos, dos passeios pela Champs-Elysées, dos chás com as amigas no

terraço dos cafés, da liberdade dos franceses. Falava também da proteção

social, dos direitos dos sindicatos, de como a imprensa podia ser audaciosa.

Paris, Paris, Paris... Isso acabou nos fazendo mal, mas por culpa do meu pai.

Ele tinha a ideia de abrir um pequeno negócio em Paris, um restaurante no 15o

arrondissement, que mamãe poderia tocar. Acontece que ele logo brigou com o

sócio, e o plano foi por água abaixo. Também deixou de comprar um apartamento

na Défense. Na época, custava vinte e cinco mil dólares. Faltou-lhe coragem, e

até hoje se lamenta por isso.

São, portanto, de Benghazi minhas primeiras lembranças da

escola. Elas estão um pouco confusas na memória, mas lembro que foi um tempo

muito feliz. A escola se chamava Os Leõezinhos da Revolução, e eu tinha quatro

amigas inseparáveis. Eu era a palhaça do grupo, minha especialidade era imitar

os professores quando eles deixavam a sala, ou fazer macaquices atrás do

diretor. Acho que tenho um dom para captar o gestual e as expressões alheias.

Juntas, chorávamos de tanto rir. Eu podia tirar zero em matemática, mas era a

melhor em língua árabe.

Papai não ganhava bem. E o trabalho de mamãe se tornou

indispensável. Era ela quem acabava arcando com as contas da família. Ralava

dia e noite, sempre à espera de algo que nos levasse para bem longe da Líbia.

Eu sabia que ela era diferente das outras mães, e por isso começaram a me tratar

com desprezo na escola – eu era “a filha da tunisiana”. Isso me magoava. Os

tunisianos eram tidos como modernos, emancipados, e em Benghazi, acredite se

quiser, essas qualidades não eram bemvistas. E eu, tola, me senti depreciada.

Desejava que meu pai tivesse escolhido como esposa alguém do próprio país. Por

que foi se casar logo com uma estrangeira? Não pensou nos filhos? Meu Deus,

como eu era idiota!

Quando eu estava com onze anos, papai anunciou que nos

mudaríamos para Sirte, cidade também da costa mediterrânea, entre Benghazi e

Trípoli. Ele queria se aproximar do berço familiar, de seu pai – um homem muito

tradicional, que tinha quatro esposas –, de seus irmãos e primos. Na Líbia é

assim: as famílias procuram formar grupos em torno do mesmo bastião, que

supostamente lhes dará força e sustentação incondicionais. Em Benghazi, sem

raízes nem relações, éramos como órfãos. Pelo menos foi assim que papai nos

explicou. Mas para mim a notícia foi uma catástrofe. Deixar a escola? Minhas

amigas? Que drama!

Fiquei doente. Doente de verdade. De cama

por duas semanas. Incapaz de me levantar para ir à nova escola.

E então finalmente eu fui. Com o coração apertado. E logo

percebendo que não seria feliz. Antes de tudo, tenho de dizer que aquela era a

cidade natal de Kadafi. Ainda não falei da figura porque não se tratava de uma

preocupação nem de tema de conversa em casa. Mamãe nitidamente o detestava.

Mudava de canal sempre que ele aparecia na TV, referia-se a ele como “o descabelado” e repetia,

sacudindo a cabeça: “Francamente, esse tipo lá tem cara de presidente?” Papai,

penso eu, tinha medo e se mantinha mais reservado. Intuitivamente, todos nós

percebíamos que, quanto menos se falasse dele, melhor seria; o menor assunto

que saísse do núcleo familiar poderia passar de boca em boca e nos trazer

grandes problemas. Sem fotos dele em casa e sobretudo sem militância. Digamos

que, por instinto, éramos todos cautelosos.

Na escola, em contrapartida, era uma adoração. Sua imagem

era onipresente; cantávamos o hino nacional todas as manhãs diante de um imenso

pôster de Kadafi ao lado da bandeira; diziam todos, entusiasmados: “Tu és nosso

Guia, marchamos atrás de ti, blá-blá-blá”; e, fosse na sala de aula ou no

intervalo, os alunos se gabavam de “meu primo Muamar”, “meu não-sei-oquê

Muamar”, enquanto os professores falavam dele como um semideus. Não, como um

deus. Ele era bom, zelava pelas crianças, tinha todos os poderes. Devíamos

todos chamá-lo de “papai Muamar”. Sua estatura nos parecia gigantesca.

Havíamos nos mudado para Sirte para ficar perto da família

e nos sentir mais integrados no seio da comunidade, mas não valeu a pena. As

pessoas de Sirte, aureoladas por seu parentesco ou proximidade com Kadafi, se

achavam donas do universo. Declaravam-se aristocratas, famílias da corte,

diante dos jecas e caipiras das outras cidades. Você é de Zliten? Grotesco! De

Benghazi? Ridículo. Da Tunísia? Que vergonha! Mamãe, decididamente, não

importava o que fizesse, seria alvo de humilhação. E quando abriu, no centro da

cidade, não muito longe de casa na Rua Dubai, seu lindo salão de beleza, que as

elegantes de Sirte passaram a frequentar, o desprezo só aumentou. Apesar de

tudo, ela tinha talento. Todo mundo reconhecia sua habilidade em fazer os mais

belos penteados da cidade e maquiagens fabulosas. Aliás, tenho certeza de que

era invejada. Mas você não imagina como Sirte é massacrada pela tradição e pelo

excesso de pudores. Uma mulher sem véu pode ser insultada na rua. E, mesmo com

véu, é suspeita. Que diabos faz aqui fora? Não estará atrás de aventura? Será

que tem um caso? As pessoas se espionam, os vizinhos observam as idas e vindas

na casa da frente, as famílias sentem inveja umas das outras, protegem suas

filhas e falam mal das outras. A máquina de intrigas fica ligada o tempo todo.

Na escola, o problema era dobrado. Eu não era só “a filha

da tunisiana”, mas também “a menina do salão”. Eu procurava um banco e ficava

ali sozinha, sempre esquiva. E nunca poderia ter uma amiga líbia. Um pouco mais

tarde, felizmente, simpatizei com uma garota que era filha de um líbio e de uma

palestina. Depois, com uma marroquina. Então, com a filha de um líbio e de uma

egípcia. Mas com as meninas da terra, jamais. Mesmo quando certa vez menti,

dizendo que minha mãe era marroquina. Parecia-me menos grave que tunisiana. Foi

pior. Minha vida então passou a girar quase que só em torno do salão de beleza.

O salão virou meu reino.

Eu corria para lá logo que a aula terminava. Ali, eu

renascia. Que prazer eu tinha! Primeiro, por ajudar mamãe, o que era delicioso.

Depois, porque gostava do trabalho. Minha mãe não parava, passava de uma

cliente para outra, mesmo tendo quatro funcionárias. Fazíamos cabelo, estética,

maquiagem... E definitivamente posso dizer que, em Sirte, as mulheres, por mais

que se escondam atrás do véu, têm sofisticação e exigência incríveis. Minha

especialidade era depilação de rosto e sobrancelha com fio de seda – sim, um

simples fio que eu enlaçava entre os dedos e movimentava bem rápido para

arrancar os pelos. Bem melhor que pinça ou cera. E então eu preparava o rosto

para a maquiagem, passava base; minha mãe fazia a parte mais geral, trabalhava

os olhos, daí chamava: “Soraya! O toque final!” Então eu passava o batom, dava

uma olhada no conjunto e acrescentava uma gota de perfume.

O salão logo se tornou o ponto de encontro das mulheres

chiques da cidade. Portanto, daquelas do clã de Kadafi. Quando havia eventos

internacionais em Sirte, mulheres de diferentes delegações vinham se embelezar,

esposas de presidentes africanos, de chefes de Estado europeus e americanos. É

engraçado, mas lembro muito bem da mulher do presidente da Nicarágua, querendo

que eu lhe desenhasse olhos imensos sob um coque enorme... Certa vez, Judia, a

chefe de protocolo da esposa do Guia, apareceu num carro procurando mamãe para

pentear e maquiar sua patroa. Era a prova de que minha mãe adquirira grande

reputação! Ela foi e passou horas se ocupando de Safia Farkash, que lhe pagou

um valor ridículo, muito abaixo do preço normal. Minha mãe ficou furiosa, se

sentiu humilhada. Então, quando Judia veio procurá-la da próxima vez, ela pura

e simplesmente recusou, alegando estar com excesso de trabalho. Em outra

ocasião chegou a se esconder, me encarregando de dizer que não estava. Minha

mãe tinha personalidade. Jamais se curvava.

As mulheres da tribo de Kadafi eram em geral detestáveis.

Se eu me dirigisse a uma delas para perguntar, por exemplo, se desejava um

corte ou uma tintura, ela me olhava com desdém: “Quem é você para me dirigir a

palavra?” Certa manhã, umas delas chegou ao salão elegante, suntuosa. Fiquei

fascinada com seu visual. “Como a senhora é linda!”, eu disse espontaneamente.

Ela me respondeu com um tapa na cara. Fiquei estarrecida e corri para contar a

mamãe, que murmurou entre os dentes: “Cale a boca. A cliente tem sempre razão”.

Três meses depois, vi, angustiada, a mesma mulher abrir a porta do salão. Ela

veio até mim, disse que sua filha, que tinha a minha idade, acabara de morrer

de câncer e me pediu desculpas. Foi ainda mais inesperado que o tapa.

Outra vez, uma moça que ia se casar reservou o salão para o

dia da noiva. Adiantou uma pequena parte e depois cancelou. Como mamãe se

recusou a reembolsá-la, ela ficou possessa.

Urrava, destruindo tudo que visse pela

frente, e contou ao clã de Kadafi, que apareceu em peso e acabou com o salão.

Um de meus irmãos chegou para acudir e foi espancado. Quando a polícia chegou,

ele é quem foi para a cadeia. Os Kadafi fizeram de tudo para que ele ficasse

preso o maior tempo possível, e foi preciso uma longa negociação entre tribos para

que se chegasse a um acordo, seguido de perdão. Ele foi libertado depois de

seis meses, com a cabeça raspada e o corpo coberto de hematomas. Tinha sido

torturado. E, apesar do acordo, os Kadafi, que estavam à frente de todas as

instituições de Sirte, incluindo a prefeitura, ainda se juntaram para impor o

fechamento do salão por um mês. Fiquei revoltada.

Meu irmão mais velho, Nasser, me dava um pouco de medo e

mantinha comigo uma relação de autoridade. Mas Aziz, nascido um ano antes de

mim, era como um irmão gêmeo, um verdadeiro cúmplice. Frequentávamos a mesma

escola, e da parte dele eu sentia um misto de proteção e ciúme. E eu lhe servia

como mensageira para possíveis namoradinhas. Já eu nem sonhava com o amor. De

forma nenhuma. Nem me ligava nessas coisas. Era virgem por inteiro. Talvez eu

mesma me censurasse, sabendo que minha mãe era dura e muito severa. Não sabia

de nada. Não havia nem uma paquerinha, por menor que fosse. Nada que mexesse

comigo. Nem o menor sonho. Acho que vou me arrepender a vida toda por não ter

tido amores adolescentes. Eu sabia que um dia me casaria, porque era esse o

destino das mulheres, e que então deveria me maquiar e me fazer bonita para o

meu marido. Mas não sabia nada além disso. Nem do meu corpo, nem de

sexualidade. Que pânico senti quando menstruei pela primeira vez! Corri para

contar a minha mãe, que não me explicou nada. E passou a ser uma vergonha para

mim quando a TV exibia

comerciais de absorventes íntimos. Que embaraço sentia ao ver aquelas imagens

na presença de rapazes da família... E lembro-me de minha mãe e de minhas tias

me dizendo: “Quando você tiver dezoito anos, vamos lhe contar umas coisas...”

Que coisas? “Coisas da vida.” Não tiveram tempo. Muamar Kadafi se adiantou. Ele

me triturou.

Em uma manhã de abril de 2004 – eu acabara de completar

quinze anos –, o diretor do colégio se dirigiu a todos os alunos, reunidos no

pátio: “O Guia vai nos dar a grande honra de sua visita amanhã. É uma alegria

para toda a escola. Por isso, conto com vocês para que sejam pontuais,

comportados e que o uniforme esteja impecável! Vocês devem passar a imagem de

uma escola magnífica, porque ele ama vocês e merece isso!” Que novidade! Que

agitação! Você não imagina a empolgação. Ver Kadafi ao vivo... Sua imagem me

acompanhava desde que eu nascera. Suas fotos estavam por toda parte, nos muros

da cidade, nos serviços, nas repartições públicas, no comércio. Em camisetas,

colares, cadernos. Sem falar nas cédulas de dinheiro. Vivíamos permanentemente

sob seus olhos. Cultuando-o. E, apesar dos comentários amargos de mamãe, eu

nutria por ele uma veneração temerosa. Não imaginava sua vida porque não o

classificava entre os humanos. Ele estava acima da massa, em um Olimpo

inatingível onde reinava a pureza.

Então, no dia seguinte, de uniforme limpo e engomado –

calça e túnica pretas, echarpe branca envolvendo o rosto –, fui depressa para a

escola, esperando com impaciência que nos explicassem como seria a visita. Mas

foi só a primeira aula começar e um professor veio me chamar, dizendo que eu havia

sido escolhida para entregar flores e presentes ao Guia. Logo eu! A “menina do

salão”! A aluna que ficava de escanteio! Imagine o choque. Arregalei olhos

imensos de incredulidade e fui levada, radiante e ciente do bando de invejosas

que eu deixara na classe. Conduziram-me a uma grande sala, onde encontrei um

punhado de alunas, também selecionadas, e mandaram que nos trocássemos

rapidamente, vestindo o traje líbio tradicional. As roupas estavam ali, em

cabides. Vermelhas. Túnica, calça, véu e um pequeno chapéu nos cabelos. Uma

sensação inebriante! Entre ataques de riso, nos vestimos rapidamente,

auxiliadas por professoras que ajustavam os véus, afixavam os broches e

passavam secador para alisar cabelos rebeldes. Eu perguntava: “Diga-me como

devo saudá-lo, eu lhe imploro! O que devo fazer? Me prostrar? Beijar sua mão?

Recitar alguma coisa?” Meu coração batia a cem por hora enquanto todo mundo se

ocupava de nos tornar esplendorosas. Hoje, quando penso nessa cena, vejo uma

preparação de ovelhas para o sacrifício.

O salão de festas da escola estava lotado. Professores,

alunos, funcionários, todos ali, esperando nervosamente. Nosso pequeno grupo de

escolhidas para receber o Guia perfilava-se diante da porta de entrada, e

trocávamos olhares cúmplices, de canto de olho, como quem diz: “Que

oportunidade, não? Um momento como este vamos levar para a vida toda!” Eu me

agarrei ao buquê, tremendo feito vara verde. Meus joelhos pareciam de algodão.

Um professor lançou-me um olhar severo: “É agora, Soraya, comporte-se!”

E de repente ele chegou. Em meio a um crepitar de flashes,

rodeado por um burburinho de gente e por mulheres guardacostas. Vestia um traje

branco, o torso coberto de insígnias, bandeiras e condecorações, um xale bege

sobre os ombros, da mesma cor da pequena boina, da qual emergiam cabelos muito

pretos. Foi tudo muito rápido. Estendi o buquê, tomei sua mão livre nas minhas

e a beijei, me curvando. Então senti que ele comprimia estranhamente minha

palma. Depois me mediu de cima a baixo, me lançando um olhar frio. Apertou

levemente meu ombro e pousou a mão sobre minha cabeça, acariciando-me os

cabelos. E minha vida terminava aí. Pois esse gesto, como vim a saber mais

tarde, era um sinal a suas guarda-costas que significava: “Esta aqui, eu a

quero!”

Por um momento, me senti em êxtase. E, logo que a visita

terminou, fui voando para o salão de beleza contar o acontecido à minha mãe.

–                  Papai Muamar sorriu para mim, mamãe. Eu juro!

Ele acariciou minha cabeça!

Para dizer a verdade, eu me lembrava de um rito mais

glacial que qualquer outra coisa, mas estava muito empolgada e queria que todo

mundo soubesse.

–                  Não tem muito do que se orgulhar... – soltou

mamãe, enquanto tirava bobes de uma cliente.

–                  Mas, mamãe! É o líder da Líbia! Não é pouca

coisa!

–                  Ah, é? Ele mergulhou este país na Idade Média,

conduziuseu povo para o abismo! E você vem me falar de líder?!

Fiquei chateada e fui para casa saborear sozinha minha

alegria. Papai estava em Trípoli, mas meus irmãos pareceram um pouco apáticos.

A não ser Aziz, que não cabia em si de alegria.

No dia seguinte, ao chegar à escola, percebi uma mudança

radical no comportamento dos professores em relação a mim. Costumavam ser

arredios, mesmo secos. E eis que de repente se mostravam ternos, cheios de

atenção. Quando um deles me chamou de “pequena Soraya”, eu ergui as

sobrancelhas. E quando outro me perguntou: “E então, acabou ficando na

escola?”, como se fosse uma opção, eu disse a mim mesma que aquilo não era

normal. Mas, enfim, era o dia seguinte à festa, e não me preocupei muito. Ao

fim da aula, à uma hora da tarde, fui para casa trocar de roupa e à uma e meia

estava no salão para ajudar mamãe.

As mulheres de Kadafi apareceram na porta às três da tarde.

Faíza na frente, depois Salma e por último Mabruka. Salma estava com seu

uniforme de guarda-costas, com um revólver na cintura. As outras vinham em

trajes clássicos. Olharam ao redor – era dia de movimento – e perguntaram a uma

funcionária:

–                  Onde está a mãe de Soraya? – e foram direto até

ela. – Somos do Comitê Revolucionário e estivemos com Muamar ontem pela manhã,

quando ele visitou a escola. Soraya chamou atenção. Ela estava magnífica no

traje tradicional e cumpriu sua tarefa de maneira exemplar. Gostaríamos muito

que ela viesse novamente oferecer um buquê ao papai Muamar. Ela teria de vir já

conosco.

–                  Não é um bom momento. Como podem ver, o salão

estácheio. Preciso da minha filha.

–                  Não vai levar mais de uma hora.

–                  É só para oferecer flores?

–                  Talvez ela deva maquiar as damas de companhia do

Guia.

–                  Nesse caso é diferente. Eu é que devo ir!

–                  Não, não! É Soraya quem deve levar o buquê.

Eu assistia à conversa intrigada, mas entusiasmada. Mamãe

de fato estava com o salão cheio, mas fiquei um pouco constrangida com sua

relutância. Afinal, se era para o Guia, não se poderia dizer não! Mas minha mãe

acabou aceitando – ela não tinha escolha –, e eu segui as três mulheres. Uma

caminhonete possante estava parada na frente do salão. O motorista deu partida

antes mesmo de nos acomodarmos. Mabruka ia na frente, e eu, entre Salma e

Faíza, no banco de trás. Partimos em comboio, seguidos por dois carros com

guarda-costas, como logo percebi. Eu já podia dar adeus à minha infância.

2

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PrisioneiraFicamos rodando de carro por um bom tempo. Eu

não tinha ideia de que horas eram, mas aquilo me parecia interminável. Saímos

de Sirte e avançamos pelo deserto. Eu só olhava para frente e não ousava fazer

perguntas. Então, chegamos a Sdadah, em uma espécie de acampamento. Havia

muitas tendas, outras caminhonetes e um imenso trailer, extremamente luxuoso.

Mabruka foi em direção ao veículo, fazendo sinal para que eu a seguisse, e

acreditei ter visto, em um carro parado com o motor ligado, uma das alunas que,

como eu, haviam sido escolhidas na véspera para receber o Guia. Isso me deu

certa segurança. No entanto, ao entrar no trailer, fui tomada por uma angústia

indescritível. Era como se todo o meu ser recusasse aquela situação. Como se

intuitivamente eu soubesse que algo muito ruim estava sendo tramado.

Muamar Kadafi estava ali dentro, sentado em uma poltrona de

massagem vermelha, com o controle remoto na mão. Imperial. Eu me adiantei para

beijar-lhe a mão, que ele estendeu debilmente, olhando ao longe.

–         Onde estão Faíza e Salma? – perguntou a Mabruka

com avoz irritada.

–         Já estão chegando.

Eu estava estupefata. Nem o menor olhar na minha direção.

Eu não existia. Muitos minutos se passaram. Eu não sabia onde me enfiar. Ele

acabou se levantando e me perguntou:

–         De onde é sua família?

–         De Zliten.

Sua fisionomia continuou impassível.

–         Preparem-na! – ordenou, deixando o local.

Mabruka fez sinal para que eu me sentasse em uma banqueta

num canto da sala. As outras duas mulheres entraram, à vontade, como se ali

fosse a casa delas. Faíza sorriu para mim, se aproximou e me tocou com certa

intimidade no queixo.

–         Não se preocupe, pequena Soraya! – e tornou a

sair, rindo.

Mabruka estava ao telefone. Ela dava instruções e fornecia

detalhes práticos para alguém que estava chegando, talvez uma garota como eu,

já que pude ouvir:

–         Tragam-na aqui.

Ela desligou e se voltou para mim.

–         Venha. Vamos tirar suas medidas para lhe

encomendar algumas roupas. Qual o tamanho do seu sutiã?

Fiquei atônita.

–         Eu... eu não sei. É mamãe quem sempre compra

minhasroupas.

Ela parecia irritada e chamou Fathia, uma figura, pois

tinha voz e porte de homem, mas seios imponentes de mulher. Ela me avaliou,

depois me cumprimentou de maneira informal e piscou para mim.

–         Então, é a novata? E de onde vem esta?

Passou a fita métrica em torno da minha cintura e dos meus

seios, encostando os dela nos meus. Depois anotou as medidas e saiu do trailer.

Fiquei ali sozinha, e não ousava chamar alguém nem me mexer. Caía a noite. E eu

não estava entendendo nada. O que mamãe pensaria? Ela seria avisada do atraso?

O que aconteceria ali? E como eu voltaria?

Passou-se um bom tempo e Mabruka reapareceu. Fiquei

aliviada ao vê-la. Ela me tomou pelo braço, sem dizer nada, e me conduziu a uma

espécie de laboratório, onde uma enfermeira loura colheu um pouco do meu

sangue. Depois Fathia me fez entrar num banheiro.

–         Tire a roupa. Você está poluída. É preciso tirar

tudo!

Ela espalhou creme depilatório nos meus braços e pernas,

depois passou o barbeador e comentou:

–         Os pelos do sexo nós deixamos.

Fiquei pasma e muito incomodada, mas era preciso encontrar

um sentido para tudo aquilo, e eu dizia a mim mesma que só podia ser uma medida

sanitária para todos aqueles que se aproximavam do Guia. Vestiram-me com um

penhoar e eu voltei para a sala. Mabruka e Salma, esta sempre com o revólver na

cintura, se sentaram perto de mim.

–         Vamos vesti-la apropriadamente e maquiá-la para

que vocêpossa ver papai Muamar.

–         Tudo isso para saudar papai Muamar? Mas quando

voltopara a casa dos meus pais?

–         Depois! Primeiro é preciso saudar seu mestre.

Deram-me uma calcinha fio dental – eu jamais vira tal coisa

– e um vestido branco acetinado, com fendas dos lados e decotado na frente e

nas costas. Meus cabelos soltos caíam até as nádegas. Fathia me maquiou, me

perfumou e passou um pouco de gloss nos meus lábios, o que mamãe jamais

permitira. Mabruka inspecionou o conjunto, com a fisionomia bastante séria.

Depois me pegou pela mão, me conduzindo pelo corredor. Parou diante de uma

porta, a abriu e me empurrou para dentro.

Kadafi estava nu sobre a cama. Que pavor! Tapei os olhos e

fui recuando, atordoada. Pensei: É um erro terrível! Não é o momento! Ah, meu

Deus! Virei-me e Mabruka estava ali, na soleira da porta, com uma expressão

dura.

–         Ele não está vestido – murmurei, completamente

apavorada, pensando que ela não tivesse se dado conta disso.

–         Entre! – disse ela, me empurrando.

Então ele me agarrou pela mão e me fez sentar a seu lado na

cama. Eu não ousava lhe dirigir o olhar.

–         Vira pra cá, puta!

Essa palavra. Eu não sabia bem o que significava, mas

presumia ser um termo horrível, vulgar, para designar uma mulher desprezível.

Não me movi. Ele tentou me virar em sua direção. Resisti. Ele me puxou pelo

braço, pelo ombro. Todo o meu corpo se enrijeceu. Então ele me forçou a virar a

cabeça, puxando meus cabelos.

–         Não tenha medo. Sou seu papai, é assim que você

me chama, não? Mas também sou seu irmão e, além disso, seu amante. Vou ser tudo

isso pra você. Porque você vai viver comigo pra sempre.

Seu rosto se aproximou do meu, senti sua respiração. Ele

começou a beijar meu pescoço, minhas bochechas. Fiquei dura como um pedaço de

pau. Ele quis me abraçar, eu me afastei. Ele me puxou. Virei a cabeça e comecei

a chorar. Ele quis pegar minha cabeça. Eu me levantei de repente, ele me puxou

pelo braço e, como eu resisti, ficou nervoso, queria me deitar à força, e nós

lutamos. Ele rugia.

Mabruka apareceu.

–         Olha pra mim, sua puta! – ele gritou. – Ela se

recusa a fazero que quero! Levem-na! Eduquem-na! E então a tragam de volta!

Ele se dirigiu a um pequeno banheiro dentro do quarto,

enquanto Mabruka me conduzia ao laboratório. Ela estava branca de raiva.

–         Como é que você pode se comportar dessa maneira

com seumestre? Seu papel aqui é obedecer.

–         Quero voltar pra casa.

–         Daqui você não sai! Seu lugar é aqui.

–         Devolva minhas coisas, quero ver minha mãe.

O tapa que logo veio me fez cambalear.

–  Obedeça!

Senão papai Muamar vai fazer você pagar muitocaro. – Com a mão no rosto, que

ardia, eu a olhei, estupefata. – Você se faz de menininha, sua hipócrita,

sabendo perfeitamente do que se trata! Agora você vai nos escutar, a papai

Muamar e a mim. E vai obedecer às nossas ordens. Sem discutir! Ouviu bem?

Então ela desapareceu, me deixando sozinha, com aquele

vestido indecente, a maquiagem borrada e os cabelos sobre o rosto. Chorei por

horas, andando em círculos pela sala. Não entendia nada, nada. Nada se

encaixava. O que eu estava fazendo ali? O que queriam de mim? Minha mãe

certamente estava morrendo de preocupação, já devia ter telefonado ao meu pai

em Trípoli, e talvez ele até tivesse voltado a Sirte. Já devia tê-la culpado de

todas as maneiras por ter me deixado partir, ele, que não tolerava que eu

saísse de casa. Mas como eu poderia lhes contar aquela cena atroz com papai

Muamar? Meu pai ficaria louco. Eu ainda soluçava quando a enfermeira loura, da

qual jamais me esquecerei, sentou perto de mim e me acariciou ternamente.

–  O

que foi que aconteceu? Me conte.

Ela tinha sotaque estrangeiro, e mais tarde vim a saber que

era uma ucraniana a serviço do Guia e se chamava Galina. Não consegui dizer uma

única palavra, mas ela adivinhou, e percebi que estava furiosa.

–  Como

podem fazer isso com uma menina? Como ousam? –repetia, tocando-me suavemente o

rosto.

Acabei adormecendo, e foi Mabruka quem me acordou na manhã

seguinte, lá pelas nove horas. Estendeu-me um conjunto de calça e agasalho

esportivo, e eu me enchi de esperança.

–  Então,

vou pra casa agora?

–  Já

disse que não! Você é surda? Eu já te expliquei muitobem que sua vida de antes

acabou pra sempre. Já avisamos seus pais, que entenderam muito bem!

–  Você

telefonou para os meus pais?

Eu ainda estava meio sonolenta. Tomei chá com biscoitos. E

olhei ao redor. Havia muitas garotas de uniforme militar, entrando e saindo.

Elas me olhavam de canto de olho, curiosas –

“É essa aí, a novata?” –, e faziam

referência ao Guia, aparentemente ocupado em uma das tendas. Salma se aproximou

de mim.

–  Vou

lhe explicar tudo muito claramente: Muamar vai sedeitar com você. Vai abrir você.

E você vai passar a ser uma coisa dele e não o deixará mais. Por isso, deixe de

ser teimosa. A resistência e os caprichos não funcionam com a gente!

Fathia, a imponente, chegou, ligou a tevê e

aconselhou:

–  O

negócio é deixar, vai ser mais fácil. Se você aceitar, tudovai funcionar bem

para você. O negócio é simplesmente obedecer, sem questionar.

Eu chorei e fiquei ali, prostrada. Então eu era uma

prisioneira. O que eu tinha feito de errado?

Por volta de uma da tarde, Fathia veio me arrumar com um

vestido azul de cetim, muito curto. Na verdade, ele mais despia que vestia. No

banheiro, ela molhou meus cabelos e passou musse. Mabruka deu uma olhada no meu

visual, me tomou pela mão e me levou novamente ao quarto de Kadafi.

–  Dessa

vez, você vai satisfazer os desejos do seu mestre, ou eute mato!

Ela abriu a porta e me empurrou para dentro. O Guia estava

lá, sentado na cama, de calça esportiva e camiseta. Fumava um cigarro e soprava

lentamente a fumaça, me olhando com frieza.

–  Você

é uma puta – disse ele. – Sua mãe é tunisiana, e porisso você é uma puta.

Ele não tinha pressa, olhava-me demoradamente da cabeça aos

pés e dos pés à cabeça, lançando a fumaça em minha direção.

–  Senta

perto de mim – ele indicou um lugar na cama. – Vocêvai fazer tudo que eu

mandar. Vou lhe dar joias e uma bela casa, vou ensinar você a dirigir e te dar

um carro. E um dia vai poder estudar em outro país se quiser, eu mesmo te

levarei aonde desejar. Você está entendendo? Seus desejos serão ordens! – Quero

voltar para minha mãe.

Ele congelou, apagou o cigarro e elevou o

tom de voz.

–  Escuta

bem! Acabou, entendeu? Acabou essa história de voltar pra casa! Agora você está

comigo. E pode esquecer todo o resto!

Eu não podia acreditar no que ele estava dizendo. Estava

completamente além da minha compreensão. Ele me puxou para a cama e mordeu a

parte de cima do meu braço. Doeu. Depois tentou me despir. Eu já me sentia nua

naquele minivestido azul, era horrível, eu não podia deixá-lo fazer aquilo.

Resisti, mas ele agarrou as alças do vestido.

–  Tira

isso, sua puta! – e afastou meus braços. Eu me levantei,ele me puxou e me

atirou novamente na cama, eu me debati.

Então ele se levantou, cheio de raiva, e entrou no

banheiro. Mabruka logo apareceu (só mais tarde entendi que ele tinha uma sineta

perto da cama para chamá-la).

–  É a

primeira vez que uma garota me desafia desse jeito! Aculpa é sua! Eu mandei

ensiná-la. Agora dê um jeito, senão quem vai pagar é você.

–  Meu

mestre, deixe essa garota pra lá. É uma mula. Podemoslevá-la de volta e trazer

outras.

–  Prepare

essa. Eu quero essa!

Levaram-me ao laboratório, e eu fiquei ali, no escuro.

Galina apareceu de mansinho e me deu um cobertor, com um sorriso de piedade.

Mas como eu poderia dormir? Eu não conseguia esquecer aquela cena e não

encontrava a menor explicação para o que estava acontecendo. O que teriam dito

a meus pais? Certamente não a verdade, não era possível. Mas então o quê? Papai

não queria nem que eu fosse à casa dos vizinhos, e eu sempre tinha de voltar

para casa logo que escurecesse. Então, o que ele ia pensar? O que ia imaginar?

Será que algum dia acreditariam em mim? Que explicação teriam dado na escola

para justificar minha ausência? Não consegui pregar o olho a noite toda. Ao

amanhecer, quando eu estava começando a apagar, Mabruka chegou.

–  Vamos,

de pé! Coloque esse uniforme. Vamos pra Sirte.

Que alívio!

–  Então

eu vou pra casa?

–  Não!

Vamos pra outro lugar.

Pelo menos sairíamos daquele lugar horroroso no meio do

nada e nos aproximaríamos da minha casa. Fui às pressas me lavar, vesti

novamente o uniforme cáqui semelhante ao das guarda-costas de Kadafi e me

dirigi à sala, onde cinco outras garotas, também de uniforme, assistiam à

televisão distraidamente. Elas tinham celulares, e eu quis muito pedir para

telefonar para mamãe, no entanto Mabruka supervisionava tudo, e o clima ali era

mordaz. O trailer partiu e eu me deixei levar; já fazia tempo que eu não controlava

mais nada.

Depois de mais ou menos uma hora de viagem, o veículo

parou. Fizeram-nos descer e nos dividiram em carros diferentes, quatro por

automóvel. Foi nesse momento que percebi que formávamos um imenso comboio e que

havia muitas mulheressoldado. Bem, quando falo isso, quero dizer que elas

tinham certo ar de soldado. A maioria não dispunha de distintivos nem de armas.

Era bem possível que não fossem mais militares que eu. Em todo caso, eu era a

mais nova, e isso fazia sorrir algumas que se viravam para me observar. Eu

acabara de completar quinze anos, e não demoraria a cruzar com garotas que não

deviam ter mais que doze.

Em Sirte, o comboio entrou na katiba Al-Saadi, o quartel

que levava o nome de um dos filhos de Kadafi. Logo fomos separadas em quartos,

e entendi que dividiria o meu com Farida, uma das guarda-costas, que devia ter

vinte e três ou vinte e quatro anos. Salma deixou uma maleta sobre a minha

cama.

–  Anda

logo, vai tomar banho! – ordenou ela, batendo as mãos. – E coloque a camisola

azul.

Quando ela virou as costas, olhei para

Farida.

–  O

que significa esse circo? Você pode me dizer o que estoufazendo aqui?

–  Não

posso te dizer nada. Sou um soldado. Cumpro ordens.Faça o mesmo.

A conversa se deu por encerrada. Ela organizava

meticulosamente suas coisas, e eu me vi incapaz de fazer o mesmo. E ainda mais

de vestir as roupas que estavam na mala, uma montoeira de calcinhas fio dental,

sutiãs e baby-dolls, além de um penhoar. Mas Salma voltou.

–         Eu te disse pra ficar pronta. Seu mestre está

esperando!

Ela permaneceu ali até que eu vestisse a camisola azul para

subir com ela ao outro andar, então me fez esperar num corredor. Mabruka chegou

com cara de poucos amigos e me empurrou brutalmente para dentro de um quarto,

fechando a porta atrás de mim.

Ele estava nu. Deitado em uma cama imensa com lençóis bege,

em um quarto também em tons de bege sem janelas, parecia que ele estava enfiado

na areia. O azul da minha camisola contrastava com o conjunto.

–         Vem aqui, minha puta! – disse ele, abrindo os

braços. –Vem, não precisa ter medo!

Medo? Eu estava muito além do medo. Sentia-me num

abatedouro. Pensei em tentar escapar, mas sabia que Mabruka estava de tocaia

atrás da porta. Fiquei imóvel, enquanto ele se levantou subitamente e, com uma

força que me surpreendeu, me pegou pelo braço e me jogou na cama antes de se

deitar sobre mim. Tentei afastá-lo, mas ele era pesado e eu não consegui. Ele

me mordia no pescoço, no rosto, nos seios. Eu gritava e me debatia.

–         Não se mexa, sua puta imunda!

Ele me deu uns safanões, apertou meus seios, depois

levantou minha camisola e imobilizou meus braços, penetrando-me violentamente.

Eu jamais vou esquecer. Ele profanava meu corpo, mas era

minha alma que transpassava com um golpe de punhal. A lâmina jamais saiu.

Eu estava aniquilada, não tinha mais forças, já não me

mexia, eu chorava. Ele se ajeitou na cama de modo a pegar uma toalha vermelha

que estava a seu alcance, passou-a por entre minhas coxas e se dirigiu ao

banheiro. Mais tarde vim a saber que esse sangue lhe era precioso para um

ritual de magia negra.

Sangrei durante três dias. Galina vinha ao pé da minha cama

me dispensar cuidados. Ela acariciava minha testa, dizendo-me que eu estava

ferida por dentro. Eu não me queixava. Não perguntava mais nada.

–  Como

é que vocês podem fazer isso com uma criança? Éterrível! – a enfermeira disse a

Mabruka quando me levou até ela. Mas Mabruka não deu a mínima. Eu mal tocava na

comida que me traziam no quarto. Era uma morta-viva. Farida me ignorava.

No quarto dia, Salma veio me procurar: o mestre estava me

chamando. Mabruka me levou ao quarto dele. E ele recomeçou, com a mesma

violência e as mesmas palavras degradantes.

Sangrei muito, e Galina avisou a Mabruka:

–  Não

toquem mais nela. Dessa vez pode ser perigoso.

No quinto dia, levaram-me ao quarto dele logo pela manhã.

Ele tomava o café: dentes de alho, suco de melancia, biscoitos embebidos em chá

com leite de camela. Ele colocou uma fita cassete num gravador velho, eram

canções tradicionais de beduínos, e ordenou:

–  Vai,

puta, dança aí! Dança! – Eu hesitei. – Vai! Vai! – e batiapalmas.

Tentei esboçar um movimento e então continuei, timidamente.

O som era horrível, as músicas péssimas, e ele lançava sobre mim um olhar

lascivo. Mulheres entravam para tirar a mesa do café, indiferentes à minha

presença.

–  Continua,

vadia! – ele dizia, sem tirar os olhos de mim.

Seu membro estava ereto; ele se levantou para me agarrar e

me deu tapas nas coxas.

–  Que

vadia! – e depois se deitou sobre mim.

Naquela noite, ele me forçou a fumar. Disse que adorava ver

mulher tragando cigarro. Eu não queria. Ele acendeu um e colocou na minha boca.

–  Aspira!

Agora solta a fumaça. Solta! – Eu tossia, e isso o faziarir. – Vai, outro.

No sexto dia, ele me recebeu com uísque.

–  Está

na hora de você começar a beber, minha puta!

Era Black Label, a garrafa com rótulo preto que eu

reconheceria em qualquer lugar. Sempre ouvi que o Corão não permitia que se

bebesse álcool e que Kadafi era muito religioso. Na escola ou na TV, ele era tido como o maior

defensor do islã; ele próprio se referia ao Corão o tempo todo e conduzia

preces diante de multidões. Então, vê-lo bebendo uísque era inacreditável. Um

choque sem precedentes. Aquele que nos apresentavam como pai dos líbios, como

promotor do direito e da justiça e detentor da mais absoluta autoridade,

violava todas as regras que ele mesmo professava! Tudo era falso. Tudo aquilo

que meus professores ensinavam, tudo aquilo em que meus pais acreditavam. Ah,

eu pensava, se eles soubessem! Ele me deu um copo.

–  Bebe,

vadia! – Meus lábios tremiam, senti o líquido descerqueimando e odiei o gosto.

– Vai, bebe! É como remédio.

Naquela mesma noite, partimos todos em comboio para

Trípoli. Uma dezena de carros, o grande trailer e uma caminhonete carregada de

material, a maior parte tendas. E mais uma vez todas as garotas de uniforme.

Elas pareciam contentes com a partida. Eu estava desesperada. Deixar Sirte

significava me afastar ainda mais dos meus pais, perder toda e qualquer chance

de voltar para casa. Eu tentava imaginar um modo de fugir, mas não fazia

sentido. Haveria ao menos um lugar na Líbia onde eu pudesse escapar de Kadafi?

Sua polícia, suas milícias, seus espiões estavam por toda parte. Vizinhos

espionavam vizinhos. Mesmo no seio das famílias podia haver denúncias. Eu era

sua prisioneira. Estava à mercê dele. A moça sentada ao meu lado no carro

percebeu que eu chorava.

–  Ah,

minha querida. Fiquei sabendo que pegaram você naescola...

Não respondi. Pelo vidro, eu via Sirte ficando para trás e

não conseguia falar.

Ah,

tudo bem – exclamou a garota ao lado do motorista,virando-se para mim. –

Estamos todas no mesmo barco.

3

3

Bab al-Azizia–     Ufa,

até que enfim Trípoli! – A garota ao meu lado demonstrava tamanho contentamento

em perceber as primeiras casas da cidade que até me senti um pouco mais

tranquila.

–     Já

estava cansada de Sirte – soltou a outra.

Eu não sabia que conclusão tirar daqueles comentários, mas

registrava tudo, concentrada e ansiosa por captar a menor informação que fosse.

Tínhamos rodado por quase quatro horas em alta velocidade, intimidando carros e

transeuntes, que paravam para a passagem do comboio. A noite caía lentamente, e

a cidade surgia ao longe como um amontoado de ruas, arranhacéus e luzes. De

repente, diminuímos a velocidade para passar pelo imenso portal de uma grande

muralha fortificada. Soldados estavam de guarda, mas a descontração das garotas

no carro indicava que estavam voltando para casa. Uma delas me disse

simplesmente:

–     Chegamos

a Bab al-Azizia.

Obviamente eu conhecia bem o nome. Quem na Líbia não o

conhecia? Era a sede do poder por excelência, símbolo da autoridade e da força:

a residência fortificada do coronel Kadafi. O nome significa, em árabe, “a

porta de Azizia”, a região que se estende a oeste de Trípoli; mas, na cabeça

dos líbios, aquela fortaleza era sobretudo símbolo de terror. Um dia papai me

mostrara o imenso portal, encimado por um pôster gigantesco do Guia, assim como

a muralha, que tinha quilômetros. Ninguém nem pensaria em caminhar ao longo

dela. Seria detido por espionagem e, ao menor movimento suspeito, alvejado por

balas. Haviam nos contado a história de um pobre taxista que, por infelicidade,

teve um pneu furado ao pé da muralha. Seu carro foi explodido e ele morreu no

local, antes mesmo de conseguir tirar o estepe do porta-malas. E no bairro ao

redor telefones celulares eram proibidos.

Passamos pelo portão principal, adentrando uma área que me

pareceu imensa. Os edifícios com fachada bastante austera e aberturas estreitas

– simples fendas no lugar de janelas – deviam ser o alojamento dos soldados.

Havia gramados, palmeiras, jardins, dromedários, mais construções austeras e

algumas casas aninhadas na vegetação. Exceto pelos numerosos portões de

segurança que atravessávamos um após o outro e uma sucessão de muros, que eu

não entendia como funcionavam, o lugar não me pareceu muito hostil. O carro

parou diante de uma casa imensa. Mabruka logo apareceu, parecendo ser a dona do

lugar.

–     Entre.

E deixe suas coisas no seu quarto.

Segui as garotas, que passaram por uma porta em forma de

arco, toda de concreto, em seguida descemos alguns degraus e passamos por um

detector de metais. O ambiente era frio e muito úmido. Na verdade, estávamos no

subsolo. Amal, que ficara ao meu lado no carro, me indicou um pequeno cômodo

sem janelas.

–     Esse

vai ser o seu quarto.

Empurrei a porta. Um espelho cobria as paredes de tal

maneira que era impossível escapar à imagem refletida. Duas pequenas camas

ocupavam os cantos do quarto, que tinha ainda uma mesa, uma minitelevisão e um

pequeno banheiro. Eu me despi, tomei banho e me deitei para dormir. Mas era

impossível. Liguei a televisão e chorei silenciosamente ao som de músicas

egípcias.

No meio da noite, Amal entrou em meu

quarto.

–     Coloque

rápido uma lingerie bem bonita. Vamos subir paraver o Guia.

Amal era realmente bela. De shorts e regata de cetim, dava

para ver que tinha postura; eu mesma estava impressionada. Coloquei um

baby-doll vermelho, que ela sugeriu, subimos uma escadinha que eu ainda não

havia notado, à direita do meu quarto, e logo nos vimos diante da porta do

quarto do mestre, exatamente em cima do meu. Era imenso, com espelhos em boa

parte das paredes, uma cama enorme com dossel envolta em tule vermelho, como a

dos sultões de As mil e uma noites, uma mesa redonda, estantes com livros, DVDs e uma coleção de perfumes

orientais, com os quais ele frequentemente borrifava o pescoço, e uma espécie

de escritório onde havia um grande computador. Do lado da cama, uma porta de

correr levava ao banheiro, onde havia uma enorme jacuzzi. Ah, já ia me

esquecendo! Perto do escritório havia um canto reservado a orações, com algumas

edições preciosas do Corão. Menciono isso porque aquilo me intrigava e porque

nunca vi Kadafi orar. Nunca. Exceto uma vez na África, quando teve de fazer uma

oração em público. Quando penso nisso... quanta encenação!

Entramos no quarto, ele estava sentado na cama vestindo um

conjunto esportivo vermelho.

–     Ah!

– foi logo dizendo. – Venham dançar, minhas vadias.Vai. Upa! Upa!

Ele pôs a mesma fita velha num gravador e estalava os dedos

enquanto se balançava um pouco. “Seus olhos penetrantes bem poderiam matar...”

Quantas vezes eu ainda teria de ouvir aquela música ridícula! E ele não se

cansava. Amal se esforçava, mergulhando de cabeça no jogo, lançando-lhe olhares

terrivelmente sedutores. Eu não podia acreditar. Ela requebrava, fazia tremular

as nádegas, os seios, fechava os olhos ajeitando lentamente os cabelos para que

caíssem de novo e então os jogava, girando a cabeça. Eu continuava tensa, dura

como um pau, o olhar hostil. Então ela se aproximava me chamando para dançar,

pegava meus quadris, esfregava uma coxa entre as minhas pernas, me estimulando

para que emparelhássemos os movimentos.

–     Aí,

minhas vadias! – gritava o Guia.

Ele se despiu, fez sinal para que eu continuasse dançando e

chamou Amal para perto dele. Ela foi e começou a lhe fazer sexo oral. Eu não

podia acreditar no que estava vendo. Perguntei, esperançosa:

–     Posso

ir agora?

–     Não!

Vem cá, vadia.

Ele me puxou pelos cabelos, me forçou a sentar e me

abraçou, ou melhor, me engoliu, enquanto Amal continuava. Depois, sempre me

segurando pelos cabelos, disse:

–     Olha

bem e aprende como ela faz. Você vai fazer a mesmacoisa.

Ele agradeceu a Amal e lhe pediu que fechasse a porta ao

sair. Então se jogou em cima de mim e me violentou por um tempo. Mabruka

entrava e saía como se nada estivesse acontecendo. Ela lhe passava mensagens:

–     Leila

Trabelsi pediu que ligue de volta. – Até o momento emque falou: – Pronto, vamos

terminando! O senhor tem outras coisas pra fazer.

Fiquei chocada. Ela podia lhe dizer qualquer coisa. Chego a

acreditar que ele tinha medo dela. Ele entrou no banheiro, sentou na jacuzzi,

que Mabruka deixara encher, e gritou para mim:

–     Passe

a toalha! – As toalhas estavam bem ao seu alcance,mas ele queria que eu as

pegasse. – Passe perfume nas minhas costas. – Depois ele apontou para uma

campainha perto do gravador. Apertei. E Mabruka entrou imediatamente. – Arranje

uns DVDs pra essa vadia,

para que ela aprenda seu trabalho.

Cinco minutos depois, Salma entrou no meu quarto com um

aparelho de DVD, que

pegara de outra moradora, e uma pilha de filmes.

–     Aqui

estão os pornôs. Olhe bem e aprenda! O mestre vaificar furioso se você não

estiver no ponto. É seu dever de casa!

Meu Deus, a escola... Eu estava tão longe de lá. Fui tomar

banho. Amal, ainda que tivesse seu próprio quarto, instalou-se na cama ao lado.

Fazia uma semana que eu não conversava com ninguém e já não suportava a

angústia e a solidão.

–     Amal,

não sei o que estou fazendo aqui. Essa não é minhavida, isso não é normal.

Sinto falta da minha mãe o tempo todo.

Será que eu podia ao menos ligar pra ela?

–     Vou

falar com Mabruka.Peguei no sono, esgotada.

Bateram à porta do meu quarto e Salma

entrou bruscamente.

–     Suba

do jeito que está. Rápido! Seu mestre quer vê-la.

Eram oito horas da manhã, e eu dormira apenas algumas

horas. Visivelmente, Kadafi também acabara de acordar. Ainda estava na cama,

com os cabelos desgrenhados, e se espreguiçava.

–     Vem

pra cama, vadia. – Salma me empurrou violentamente.– E você, traga-nos o café

da manhã. – Ele arrancou minha roupa e partiu para cima de mim com violência. –

Viu os filmes, vadia? Pois agora vai fazer igual!

Ele urrava e me mordia inteira. Violentou-me mais uma vez.

Depois se levantou para degustar seu dente de alho, que lhe conferia

constantemente um hálito detestável.

–     Dá

o fora, vadia.

Ao sair, cruzei com Galina e duas outras enfermeiras

ucranianas, que entravam no quarto dele. E naquela manhã compreendi que estava

lidando com um louco.

Mas quem sabia disso? Papai, mamãe, os líbios... todo mundo

ignorava o que se passava em Bab al-Azizia. Todos tinham verdadeiro pavor de

Kadafi, porque rebelar-se contra ele ou criticá-lo renderia uma condenação à

prisão ou à morte, e sabiam que ele era de fato terrível, ainda que o chamassem

de “papai Muamar” e cantassem o hino diante de sua foto. Mas daí a imaginar o

que ele me fizera... Era tão humilhante, tão ultrajante, tão inacreditável. É

isso, era inacreditável! Sendo assim, ninguém acreditaria em mim! E eu jamais

poderia contar minha história. Afinal de contas era Muamar, e, além de ter sido

desonrada, eu é que seria tomada por louca.

Eu ruminava essas ideias quando Amal meteu a cabeça pela

porta.

–     Vamos,

não fique aí, vamos fazer um tour!

Pegamos o corredor, subimos quatro degraus e fomos parar em

uma imensa e bem equipada cozinha, que tinha na parede um pôster de uma garota

morena, um pouco mais velha que eu, que Amal me disse ser Hana Kadafi, a filha

adotiva do coronel. Muito tempo depois, fiquei sabendo que sua morte fora

falsamente anunciada, em 1986, depois que os americanos, a mando de Reagan,

bombardearam Trípoli. Mas em Bab al-Azizia não era segredo para ninguém que ela

não só estava viva como era a filha preferida do Guia.

Amal preparou café e ergueu um pequeno telefone celular.

Arregalei os olhos.

–     Como

é que você tem esse telefone?

–     Minha

querida... Faz mais de dez anos que vivo dentro destes muros.

A cozinha se prolongava numa espécie de cafeteria, que

pouco a pouco foi se enchendo de belas garotas, bem maquiadas, acompanhadas por

dois rapazes que carregavam a insígnia do serviço de protocolo. Falavam alto,

riam.

–         Quem são? – perguntei a Amal.

–         Convidadas de Muamar. Ele sempre tem convidadas.

Maseu te peço, seja discreta e não faça mais perguntas.

Houve um movimento, e vi as enfermeiras ucranianas, de

blusa branca e jaleco turquesa, indo e voltando. Eu disse a mim mesma que todas

as convidadas certamente seriam submetidas a uma coleta de sangue... Logo Amal

desapareceu e preferi voltar para o meu quarto. O que eu poderia dizer àquelas

garotas, que pareciam tão empolgadas com a ideia de encontrar o Guia? Me ajudem

a sair daqui? Antes mesmo que eu pudesse contar minha história, seria presa e

lançada num buraco.

Eu estava deitada na cama quando Mabruka empurrou a porta

(eu era proibida de fechá-la totalmente).

–         Assista os DVDs que lhe entreguei. É uma ordem!

Coloquei um dos discos no aparelho, sem a menor ideia do

que veria. Era a primeira vez que eu tinha contato com sexo. Estava em

território desconhecido, ao mesmo tempo desamparada e completamente angustiada.

Logo peguei no sono. Amal me acordou para tomar café da manhã na cozinha. É

inacreditável como se comia mal na casa do presidente da Líbia! Éramos servidas

em marmitas de metal brancas, e a comida era repugnante. Minha surpresa

provocou um sorriso em Amal, que, quando saímos da cozinha, me convidou para

conhecer seu quarto. E foi ali que Mabruka nos surpreendeu. Ela urrou:

–         Cada uma no seu quarto! Amal, você está cansada

de saber.

Vocês não têm direito de receber visita.

Nunca mais faça isso!

No meio da noite, a chefe veio me procurar.

–         Seu mestre quer te ver.

Ela abriu a porta do quarto dele e me empurrou em sua

direção. Ele me fez dançar. E depois fumar. Então usou um cartão de visitas

para fazer uma fileira de um pó branco muito fino. Pegou um papel, enrolou e

aspirou pelo nariz.

–         Vai, faça como eu. Cheira, vadia! Cheira! Você

vai ver noque vai dar.

Aquilo irritou minha garganta, o nariz, os olhos. Tossi,

tive náuseas.

–         É porque você cheirou pouco. – Ele umedeceu um

cigarrocom saliva, esfregou-o na cocaína e fumou lentamente, obrigando-me a

tragar e a soltar a fumaça. Eu não me sentia bem. Estava consciente, mas sem

força. – Agora dança!

Eu sentia a cabeça girar, já não sabia onde estava, tudo se

tornava indistinto, envolto em névoa. Ele se levantou para bater palmas,

marcando o ritmo, e pôs o cigarro na minha boca. Passei mal, e ele me violentou

ferozmente. Mais uma vez. E outra. Ele estava excitado e violento. Parava de

repente, botava os óculos e pegava um livro por alguns minutos, depois voltava,

me mordia, esmagava meus seios e me agarrava mais uma vez antes de ir até o

computador checar seus e-mails ou dizer algo a Mabruka, para depois me penetrar

uma vez mais. Sangrei de novo. Lá pelas cinco da manhã, ele disse:

–         Agora sai!

Eu comecei a chorar.

Amal veio sugerir que tomássemos café já no fim da manhã.

Eu não queria sair do quarto, não tinha vontade de ver ninguém, mas ela

insistiu e fomos comer na cafeteria. Era sexta-feira, dia de oração.

Serviram-nos cuscuz. Logo chegou um grupo de rapazes sorridentes e

particularmente à vontade.

–         É a novata? – perguntaram a Amal quando me

viram.

Ela assentiu com a cabeça e eles se apresentaram, muito

simpáticos: Jalal, Faisal, Abdelhaim, Ali, Adnane, Hussam. Em seguida, se

dirigiram ao quarto do Guia. Foi nesse dia que tive o segundo choque da minha

vida. E o olhar maculado para sempre. Não conto isso por leviandade. Sou

obrigada a fazê-lo porque estou convencida de que é preciso que entendam por

que aquele monstro desfrutava de total impunidade. Pois as cenas são de tal

maneira cruas, e é tão embaraçoso descrevê-las, e eram tão humilhantes e

vergonhosas para quem as testemunhasse, que chegavam ao ponto de transformar

insidiosamente as testemunhas em cúmplices, já que ninguém assumiria o risco de

narrar as perversões de um homem que tinha direito de vida e morte sobre quem quer

que fosse e maculava todos aqueles que por desventura se aproximassem dele.

Mabruka me chamou:

–         Vai se trocar, seu mestre está chamando.

Na linguagem dela, isso significava: “Dispa-se e suba”.

Mais uma vez, ela abriu a porta, e uma cena bizarra surgiu diante de meus

olhos. O Guia, nu, sodomizava o rapaz chamado Ali, enquanto Hussam dançava,

maquiado como mulher, ao som da mesma música lânguida. Eu quis dar meia-volta,

mas Hussam exclamou:

–         Mestre, Soraya está aqui! – e fez sinal para que

eu dançassecom ele.

Fiquei paralisada. Então Kadafi me chamou:

–         Vem, vadia.

Deixou Ali de lado e me agarrou com fúria. Hussam dançava,

Ali assistia, e, pela segunda vez em alguns dias, eu quis morrer. Ninguém tinha

o direito de fazer aquilo comigo.

Então Mabruka entrou e mandou os dois rapazes saírem e o

mestre parar, pois havia uma emergência. Ele saiu de cima de mim e ordenou:

–         Sai!

Corri para o meu quarto sangrando e passei a manhã toda

debaixo do chuveiro. Eu me lavava e chorava. Não conseguia parar. Ele era

louco, todos eram, era uma casa de gente insana, e eu não queria ser como eles.

Queria meus pais, meus irmãos, minha irmã, queria a vida que eu tinha antes. E

isso não era mais possível. Ele havia estragado tudo. Ele era imundo. E aquele

era o presidente do país.

Amal veio me ver e eu supliquei:

–         Eu imploro, fale com Mabruka. Eu não posso mais,

querover minha mãe...

Pela primeira vez, eu a vi comovida.

–         Ah, meu coraçãozinho! – disse, tomando-me nos

braços. –Sua história é tão parecida com a minha. Eu também fui tirada da

escola. Tinha catorze anos.

Ela já estava com vinte e cinco, e sua vida

lhe dava horror.

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