Sou um jovem de 1,79 m, pele morena, cabelos pretos e semi-ondulados que caem até o pescoço. Meus olhos, cinza prateados, refletem a sombra do que já fui. Hoje, vou contar minha história. Não apenas a minha, mas a nossa. Tudo começou antes dos desastres, quando o mundo ainda parecia estar no lugar e o caos não fazia parte da rotina.
Era 5 de maio, uma data que gravaria para sempre na memória. Ema, minha amiga de infância, me chamou para nos encontrarmos às 20:00 P.M, no lugar que só nós conhecíamos. Esse lugar era mais do que um refúgio, era o "Éden". Descobrimos esse pedaço escondido do mundo quando tínhamos apenas 8 anos, por acaso, em uma brincadeira que nos levou a essa clareira mágica, cercada de árvores e flores. Já faziam dez anos desde aquele dia. Mas, na verdade, três anos desde a última vez que vi Ema.
Depois da nossa formatura no ensino médio, perdemos contato. Não foi por falta de amizade, mas pela vida que seguiu seus próprios caminhos tortuosos. Quando ela me ligou de um número desconhecido, fiquei surpreso, mas também cheio de expectativa. A ideia de reencontrá-la me encheu de um entusiasmo que eu nem sabia que ainda tinha.
Ema era como uma luz que iluminava os dias nublados, uma garota de pele clara como porcelana, com cabelos longos em um belo tom de castanho. Quando ventava, seus cabelos se moviam como se estivessem dançando, e aqueles olhos tão belos, naquele tom de castanho claro, me faziam perder-me neles. Com ela, levava a inocência e a doçura; Ema era pura demais para este mundo. Apesar de tudo isso, ela tinha um corpo tão frágil, e seu coração parecia não resistir às coisas, tão delicado como um vidro. Mesmo sendo uma pessoa doente, ela era a mais forte entre todos, tão alegre e corajosa, o que acabava sendo contagiante, fazendo um contraste oposto ao que eu era: um desleixado e preguiçoso. Eu nunca fui de me esforçar muito, mas ela... Ela fazia parecer que cada dia era uma oportunidade de lutar.
Lembro das nossas tardes na casa dela, jogando videogame ou tentando — em vão — fazer bolos. Ema adorava cozinhar, mas algo sempre saía errado. O bolo, invariavelmente, ficava queimado ou com algum ingrediente estranho que deixava o gosto esquisito. Eu, claro, tirava sarro, e ela ria. Eram momentos simples, mas preciosos. Nossa amizade era feita dessas pequenas cumplicidades, dessas lembranças que só nós compartilhávamos.
Quando algo ruim acontecia — e, ao longo dos anos, houve muitas coisas ruins —, sempre íamos para o Éden. Lá, nos sentíamos em paz, longe dos problemas. Era um lugar dentro de uma floresta fechada, onde o céu se abria e a natureza nos abraçava com sua beleza pura. No centro da clareira, havia um banco de madeira cercado por todas as flores que você pudesse imaginar. Demos esse nome ao lugar porque, para nós, era o paraíso na Terra. Toda vez que saíamos de lá, nos despedíamos com um "Nos vemos no Éden". Era a nossa promessa silenciosa de que, não importava o que acontecesse, sempre nos encontraríamos ali.
Naquela noite, ao chegar ao Éden, me deparei com uma visão que tirou o fôlego. Ema estava lá, parada sob o luar, usando um vestido branco com bordados em forma de rosas. Era como se a própria Vênus tivesse descido à Terra. Seu cabelo sedoso balançava suavemente com a brisa, e uma rosa branca adornava seus fios. Sua pele, incrivelmente pálida, resplandecia sob a luz da lua, e sua expressão era tão pura quanto as flores que nos rodeavam. Ela era uma visão etérea, quase irreal.
Nos sentamos no banco de madeira, cercados pelas flores que balançavam suavemente com a brisa da noite. O silêncio entre nós era confortável, mas ao mesmo tempo carregava algo não dito. Olhei para as estrelas, buscando coragem, e então quebrei o silêncio.
— Aconteceu alguma coisa, Ema? — perguntei, ainda com os olhos fixos no céu.
Ela demorou um segundo antes de responder, como se estivesse escolhendo as palavras cuidadosamente. Seus dedos se entrelaçavam nervosamente no colo, e ela desviou o olhar para o chão.
— Não, não aconteceu nada. Estou bem. — Sua voz era suave, quase um sussurro. — Só senti vontade de conversar com você. Faz tanto tempo que não nos vemos… — disse com um sorriso pequeno, quase tímido.
Eu sorri, decidido a quebrar a tensão leve que pairava no ar.
— Ah, então estava com saudades de mim, né? — falei com uma voz pretensiosa e um olhar divertido, provocando-a.
Ema franziu a sobrancelha, e seu rosto ficou ruborizado instantaneamente. Ela virou o rosto, tentando esconder o embaraço, e murmurou:
— N-não é isso, idiota! Eu só queria... conversar, só isso! — disse ela, inflando as bochechas, claramente contrariada.
Não consegui segurar. Soltei uma risada contida, observando-a com aquele jeito emburrado que a fazia parecer um hamster bravo.
— Pfft... Tá bom, entendi. Só queria conversar, claro... — continuei rindo, me divertindo com a sua reação.
Ela bufou, ainda com as bochechas coradas, e me lançou um olhar irritado.
— Para de rir, não é engraçado! Você é um bobo, sério! — disse ela, cruzando os braços, mas a expressão emburrada a deixava ainda mais adorável.
O riso finalmente morreu em meus lábios, e o clima descontraído voltou a preencher o espaço entre nós. Começamos a conversar sobre o que tínhamos feito nesses anos em que ficamos distantes. Eu não tinha grandes novidades — estava meio estagnado, como sempre. Já Ema, por outro lado, estava com brilho nos olhos ao me contar sobre seu sonho de se tornar diretora de dublagem. A dedicação dela sempre foi algo que admirei.
Depois de um tempo, ela me olhou de repente, com uma curiosidade genuína.
— Zack, o que você gosta de fazer? — perguntou, inclinando-se levemente para mim.
Eu olhei para o céu, pensativo, deixando o silêncio se estender um pouco antes de responder.
— O que eu gosto de fazer? Hmmm... ainda não sei ao certo. Mas o que eu gosto importa tanto assim? — perguntei, com uma expressão confusa.
Ela, com o vigor de sempre, respondeu sem hesitar.
— Claro que importa! — disse, firme, seus olhos brilhando com convicção.
Fiquei um pouco surpreso com a energia dela. Sorri de lado, refletindo por um momento antes de me virar para ela.
— Entendi... Ei, que tal eu tentar virar dublador? — falei, colocando uma mão no queixo, tentando parecer pomposo. — Você sempre disse que eu tenho uma voz linda, lembra? — acrescentei, me vangloriando um pouco, com um sorriso presunçoso.
Os olhos de Ema se iluminaram. Ela parecia incrivelmente animada com a ideia.
— O quê?! Sério?! Você promete que vai se esforçar? — perguntou com uma excitação que quase transbordava, os olhos brilhando de contentamento.
— Você quer mesmo que eu prometa? — perguntei, tirando a mão do queixo, surpreso com a intensidade dela.
— Siiim! — respondeu, com uma firmeza contagiante, o sorriso dela irradiando uma alegria pura.
Diante daquela energia, não consegui evitar. Abri um sorriso genuíno.
— Tá bom, eu prometo — disse, vendo o sorriso dela crescer ainda mais, como se aquela simples promessa fosse algo de grande importância.
Ema suspirou de alívio e felicidade, olhando para mim com doçura.
— Zack, espero que mantenha essa promessa. Quero te ver conquistando muitas coisas, não só a dublagem. E toda vez que você sair do estúdio, vou estar te esperando com uma fatia de bolo! — disse ela, sua voz suave e cheia de esperança.
Soltei uma risada suave e a olhei de canto.
— Tomara que o bolo seja bom dessa vez — provoquei, com um tom sarcástico.
Ema fez uma careta de desafio, mas os olhos dela ainda brilhavam.
— Ah, você vai ver! Vai ser o melhor bolo que você já comeu! — disse, com convicção, seu olhar confiante e determinado.
Ficamos ali, sentados no banco de madeira por horas, sob o manto estrelado da noite e rodeados pelas flores belas que balançavam suavemente ao vento. Cada palavra trocada, cada riso compartilhado, tornava aquele momento mais especial. Era como se o tempo tivesse desacelerado para nos dar a chance de reviver nossa amizade, sem pressa. Eu fazia piadas sem fim, provocava Ema, e, como sempre, ela ria comigo, sem se importar, apenas se deixando levar pelo momento.
Entre uma risada e outra, com os olhos ainda brilhando de alegria, Ema virou-se para mim e, com a voz suave e um sorriso no rosto, disse:
— Zack, eu quero que você seja feliz... e eu desejo estar lá quando isso acontecer — ela falou, ainda rindo, enquanto limpava as lágrimas que escorriam por ter rido tanto.
Por um instante, fiquei sem palavras. A sinceridade na voz dela, a doçura no sorriso, tudo me pegou de surpresa. Hipnotizado pela beleza daquele momento, apenas respondi:
— E eu quero te ver feliz também, Ema. Mas não só nos momentos bons... Eu quero estar lá sempre, como você sempre esteve comigo. — Eu disse, sorrindo de verdade, com um olhar que esperava que ela entendesse a profundidade do que sentia.
Os olhos de Ema se encheram de lágrimas, mas dessa vez, não eram de riso. Ela começou a soluçar, tentando segurar a emoção.
— Obrigada... obrigada... obrigada... — repetia entre soluços, suas mãos trêmulas agarrando o tecido do vestido, como se estivesse tentando se segurar àquele instante.
Sem pensar duas vezes, a envolvi em um abraço suave. Puxei-a para perto, deitei sua cabeça em meu ombro e sussurrei com uma voz calma, quase como uma promessa.
— Estou aqui, Ema. Para tudo o que você precisar, sempre. — Minhas palavras eram tranquilizadoras, enquanto eu sentia seu corpo tremer com cada soluço.
Ela apertou minha camisa nas costas, afundando o rosto em meu ombro enquanto as lágrimas escorriam, deixando seu choro fluir livremente. Eu apenas afagava seus cabelos, em silêncio, tentando transmitir calma. Não dissemos mais nada por um tempo. Ficamos ali, abraçados, até que seu choro se acalmou.
Levei-a até sua casa mais tarde, a despedida veio com sorrisos sinceros, mesmo que um pouco cansados. Quando já estava me afastando, quase na esquina, ouvi sua voz soar forte atrás de mim.
— ZAAACK, VOCÊ CONSEGUE! EU SEMPRE VOU TORCER POR VOCÊ! — Ema gritava, acenando energicamente com um brilho de esperança nos olhos.
Virei-me, sorrindo, e acenei de volta.
— OBRIGADO, EMA! SE CUIDA! NOS VEMOS NO ÉDEN! — gritei, ecoando nossas antigas despedidas.
— NOS VEMOS NO ÉDEN!! — ela respondeu, sua voz ainda cheia de energia.
Mal sabia eu que aquela seria a última vez que ouviria sua voz.
Na manhã seguinte, acordei com uma notícia que dilacerou minha alma: Ema havia partido durante a noite, vítima de um ataque cardíaco fulminante. A pressão insuportável de uma vida repleta de desafios e tormentos fora o gatilho. Naquele instante, o tempo pareceu desacelerar; o ar ao meu redor ficou denso, difícil de respirar, enquanto o peso de uma realidade cruel se instalava. Levantei-me, mas me senti vazio, desprovido de qualquer força ou propósito. A dor era tão profunda que nem lágrimas encontrei. Tudo dentro de mim parecia entorpecido, incapaz de compreender o abismo que se abria com a ausência dela.
No funeral, cada detalhe trazia uma brutalidade implacável. O murmúrio das pessoas, as flores tristes, o murmúrio frio dos pés sobre a grama — tudo me deixava atordoado. A cada segundo, meu coração, já em pedaços, se quebrava um pouco mais. Não queria aceitar. Não conseguia. O sorriso de Ema, aquela risada que iluminava qualquer ambiente... tudo agora se resumia a memórias frágeis, prestes a se desfazer como névoa. Eu a amava com uma intensidade quase irracional, mas nunca fui capaz de dizer isso a ela. Guardei o sentimento em silêncios, nos pequenos gestos que, agora, pareciam tão insuficientes. Como fui cego... deixei o tempo escapar enquanto ela estava ao meu lado. E agora o tempo era o meu maior inimigo.
O amor, dizem, é cego. E, naquele momento, percebi a dolorosa verdade dessa frase. Ele nos envolve sem que percebamos, até que é tarde demais e se esvai junto com a pessoa que amamos.
Passei dias, semanas, trancado no quarto. O vazio dela era um buraco negro, sugando qualquer resquício de vontade que eu pudesse ter. Não comia, não dormia. As noites eram longas e frias, como se o mundo tivesse perdido as cores. Eu me debatia dentro de um luto sufocante, sem saber como escapar. Mas, numa dessas noites sem fim, algo dentro de mim me empurrou para fora. Voltei ao nosso refúgio, aquele banco no parque onde passamos tantos momentos juntos, onde compartilhamos sonhos, medos e promessas. Sentei ali, tentando absorver o silêncio, e olhei para o céu. A lua cheia me observava, serena, banhando a noite com uma luz melancólica. E então, as lágrimas vieram, sem permissão, num fluxo mudo e incessante.
As lembranças dela invadiram minha mente, me envolvendo num misto de dor e conforto. Ali, naquele lugar onde nossos mundos se cruzaram pela última vez, senti como se ela ainda estivesse ao meu lado. E, entre soluços, aceitei a verdade devastadora: ela se foi. Mas no meio da angústia, encontrei algo que mal reconheci como paz. Ao recordar seu sorriso, uma fagulha de determinação cresceu dentro de mim. Ema acreditava em mim, tinha uma fé inabalável na minha promessa e nos sonhos dela.
Decidi que honraria essa fé, que a promessa que fiz a ela não se apagaria. Eu me dedicaria com cada fibra do meu ser, e, se possível, tentaria realizar o sonho dela — por nós dois.
No entanto, o destino, implacável, tinha outros planos. Em breve, minha vida seria lançada em um turbilhão, uma tempestade que varreria qualquer esperança de fazer o sonho de Ema se tornar realidade. Restaria apenas uma promessa, tecida entre ruínas: a de me esforçar, mesmo quando tudo ao meu redor estivesse desmoronando. E assim, naquele instante em que me despedia dela, começava também minha jornada com a sombra e o peso do que poderia ter sido.
^^^CONTINUA...^^^
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(Arte conceitual, Ema)
(Arte Conceitual, Éden)
"Disseram-me uma vez que, para ser forte, é preciso enfrentar a dor. Mas quando a dor é acompanhada pelo medo, essa força se transforma em pura covardia."
Três meses haviam se passado desde que Ema partiu. Como prometido, eu me forcei a mudar. Abandonei a versão desleixada de mim mesmo, aquela que Ema tanto provocava. Consegui dois empregos, um braçal e outro de garçom, tudo para juntar dinheiro e começar o curso de dublagem e aulas de teatro. Não era apenas uma promessa que eu estava cumprindo para mim. Era também para ela.
Minha rotina se tornou uma corrida contra o relógio. Trabalhar das primeiras luzes do dia até a meia-noite, sem folga para mim mesmo, era exaustivo. Meu corpo, acostumado à inércia, sofreu no início. Os músculos doíam sem parar, o cansaço me consumia. Mas, com o tempo, meu corpo começou a responder, a endurecer. As dores se tornaram toleráveis, e eu passei a suportar. Esse era o preço por me comprometer a seguir em frente.
Certa noite, por volta das 23h30, após mais um turno exaustivo no restaurante, resolvi ir até o Éden. Precisava de ar fresco e de um momento de tranquilidade antes de voltar para casa. A noite estava estranhamente fria para o verão, mas isso não me incomodou. O Éden sempre tinha aquele ar sereno que me acalmava.
Foi então que algo inesperado aconteceu. O céu, que eu tantas vezes observei ali, começou a se transformar diante dos meus olhos. A Lua, que antes brilhava redonda e prateada, mudou. Metade dela escureceu, delineada por um contorno vermelho-sangue, enquanto a outra metade mantinha o brilho suave. O céu estrelado seguiu o mesmo padrão, metade escura com estrelas vermelhas, a outra metade clara e brilhante.
Eu fiquei ali, perplexo, observando aquele fenômeno surreal. O tempo pareceu parar, e minha mente estava entorpecida pelo cansaço. Não queria sair dali, estava fascinado pelo que via. Acabei adormecendo no banco de madeira, vencido pelo sono, sem saber que aquele estranho céu seria o prelúdio de algo muito maior. Algo que, em breve, destruiria tudo o que eu conhecia.
Acordei na manhã seguinte, com o sol batendo em meu rosto e o cheiro das flores me envolvendo. Por um momento, esqueci de tudo. O céu da noite anterior, o peso da realidade... até que lembrei do trabalho. Me levantei num salto, o pânico tomando conta.
— Droga, vou me atrasar! — gritei para mim mesmo, enquanto corria pelo caminho.
Mas, à medida que me aproximava da rua principal, algo me fez parar. O que eu via não fazia sentido. O lugar estava deserto. Uma rua que, a essa hora, deveria estar cheia de gente indo e vindo, estava silenciosa.
— Cadê todo mundo? — murmurei, ofegante, a respiração pesada de tanto correr.
Olhei meu relógio: 9h30 da manhã. Não fazia sentido. Foi então que ouvi o grito.
— SOCORRO! — uma voz feminina rasgou o silêncio, desesperada.
Corri na direção do som, virando a esquina apressadamente. Ali, entre os destroços de uma loja destruída, uma mulher jovem estava presa sob escombros. Seu rosto estava tomado pelo medo. Cheguei até ela, tentando manter a calma.
— Fica tranquila, vou te tirar daqui — disse, minha voz mais firme do que eu me sentia.
Fiz força para remover os destroços.
— Obrigada... — ela murmurou, aliviada, a voz trêmula de pavor.
Mas, de repente, seu olhar mudou. Seus olhos, que estavam fixos em mim, se arregalaram de puro terror. Ela olhava algo atrás de mim. Um silêncio ensurdecedor tomou conta do ambiente, e tudo que eu conseguia ouvir era a batida rápida do meu coração.
Antes que eu pudesse reagir, senti uma força avassaladora me atingir pelas costas. Fui lançado no ar, colidindo violentamente contra um carro estacionado. O impacto tirou o ar dos meus pulmões, e tudo que eu conseguia fazer era tentar respirar.
— O... que... foi isso? — murmurei, ofegante, o peito subindo e descendo rapidamente enquanto me apoiava no carro.
Com esforço, me levantei e, ao olhar na direção da mulher, vi algo que congelou meu sangue. Ali, diante de mim, estava a criatura que mudaria meu mundo para sempre.
Era uma monstruosidade de três metros de altura. Sua pele era pálida e rachada, com garras afiadas nas mãos. O rosto, distorcido e aterrorizante, tinha olhos ensanguentados que saltavam das órbitas. Sua respiração era pesada, e ele resmungava baixo, como uma fome insaciável.
— CaRneee... CoMiDa... — murmurava, salivando grotescamente.
Com um único movimento, o monstro arrancou os escombros que prendiam a mulher. Eu só pude ficar parado, paralisado, enquanto ela me olhava com olhos cheios de lágrimas e terror. Seus lábios tremeram ao tentar pedir ajuda.
— Socor-... — antes que pudesse terminar, suas palavras foram interrompidas.
Ela foi devorada diante dos meus olhos. O som da carne sendo rasgada, o estalar das entranhas sendo arrancadas e devoradas, e os gritos agonizantes da mulher se gravaram na minha mente como um pesadelo eterno. O horror me paralisou por um momento, mas então o instinto tomou conta. Tudo o que eu conseguia pensar era em fugir. Corri com toda a força que meu corpo permitia, o medo pulsando em minhas veias, a respiração ofegante e pesada. Precisava me afastar daquilo, me esconder. E o único lugar que me veio à mente foi o Éden.
Cheguei lá apavorado, o coração disparado, as pernas trêmulas. Sentei no banco de madeira, tentando recuperar o fôlego, mas o medo ainda me consumia. Meu corpo inteiro tremia, e tudo o que eu queria era que aquilo fosse apenas um pesadelo do qual eu pudesse acordar.
O aroma suave das flores ao redor lentamente começou a me acalmar. Minha mente, antes ofuscada pelo pânico, voltou a clarear. Sentei ali por um longo tempo, pensando se haveria mais daquelas criaturas por aí, se ainda existiam sobreviventes... onde estavam os militares? O que havia acontecido com o mundo?
Mas ficar ali não mudaria nada. Eu sabia disso. Ainda assim, o medo me paralisava. Olhei para minhas mãos trêmulas, respirei fundo e, num ato de pura necessidade, dei um soco no próprio rosto.
— Eu preciso encontrar outras pessoas. Só preciso evitar aquela coisa... — murmurei para mim mesmo, tentando reunir coragem. O otimismo soava vazio, mas era tudo o que eu tinha.
Respirei fundo novamente e me levantei, voltando à rua onde tudo começou. Cada passo era cauteloso, meus movimentos eram silenciosos enquanto me aproximava da esquina onde a criatura atacara. Espiei com cuidado... o monstro havia ido embora. Um alívio pesado desceu sobre meus ombros, mas a tensão ainda me sufocava. Aproveitei a oportunidade e me desloquei rapidamente até a delegacia local.
Quando cheguei lá, o lugar estava em ruínas. Havia marcas de tiros e arranhões por toda parte. Sangue cobria o chão e as paredes, espalhado como uma cena de guerra. Caminhei devagar entre os destroços, procurando qualquer arma ou suprimento que pudesse me ajudar a sobreviver. Mas, por mais que eu procurasse, tudo havia sido levado. Era como se alguém tivesse passado por lá antes, limpando o lugar. Os corpos dos policiais estavam ali, mas suas armas não.
Então, ouvi tiros. Disparos ressoando lá fora, perto da delegacia. Corri até uma janela e vi duas pessoas enfrentando o monstro: uma jovem mulher e um homem mais velho, ambos usando uniformes da polícia. Eles disparavam contra a criatura, mas os tiros não pareciam surtir efeito. O monstro avançava impiedosamente.
O homem, percebendo que não conseguiriam detê-lo, empurrou a mulher para longe.
— CORRE! EU SEGURAREI ELE! — gritou, sua voz cheia de determinação.
— O quê?! Eu não vou de- — Ela tentou protestar, mas ele a interrompeu.
— VAI LOGO! SE FICARMOS AQUI, VAMOS MORRER! — Sua voz ecoava com um tom de desespero.
Relutante, a mulher correu, os passos cambaleantes e o rosto inundado por lágrimas. Cada movimento era uma despedida amarga, um corte profundo em sua alma enquanto deixava para trás o homem velho. Ele ficou, uma decisão que misturava coragem e sacrifício; um adeus silencioso para protegê-la. Então, o monstro avançou, brutal e implacável, com um golpe que ecoou como o trovão. O policial foi arremessado, seu corpo frágil colidindo com a cerca de ferro. O impacto foi devastador, e a estrutura perfurou seu abdômen, arrancando-lhe um grito abafado. Eu, escondido na sombra, observei em choque. Não entendia por que o monstro o deixara ali, inerte, sem o devorar como fizera antes com a outra mulher.
Aguardei, o coração disparado, até o som dos passos bestiais do monstro se perder na distância. Só então, tomando coragem, corri em direção ao corpo do policial, movido pelo impulso de pegar sua arma, uma chance mínima de defesa. Mas ao me aproximar, um som quase inaudível me congelou.
— Ei... você... — ele sussurrou, a voz tão fraca que mais parecia o vento atravessando seus lábios trêmulos.
— Santo Cristo! — soltei um grito sufocado, quase deixando a arma cair de minhas mãos. A visão dele, ferido e ensanguentado, deixou meu corpo em alerta.
— Desculpa... não queria assustar... — ele disse entre suspiros, cada palavra arrancada a duras penas. — Pegue minhas armas... mas, por favor... eu imploro... escute meu último pedido...
Eu me ajoelhei ao lado dele, o pânico pulsando em minha mente. Fiz um esforço para manter a voz firme, tentando oferecer um mínimo de dignidade àquele momento.
— Claro, senhor. O que deseja? — perguntei, forçando um tom que soasse respeitoso, mas ao encarar seus olhos, vi o desespero, o brilho da vida se esvaindo rápido demais.
— Aquela mulher... — ele murmurou, o peito subindo e descendo com esforço. — Ela é minha filha. Ajude-a... ela viu... viu o monstro devorar a mãe dela... bem na frente... Por favor, eu... imploro...
Engoli em seco, sentindo o peso cruel daquele pedido pairando sobre mim. Vi no olhar dele não apenas dor, mas uma angústia que parecia estar partindo o seu coração tanto quanto o ferimento. Ele não estava apenas pedindo que eu a ajudasse; ele estava entregando sua última esperança.
— Eu... eu prometo, senhor. Vou protegê-la. Farei o meu melhor — garanti, minha voz embargada, tentando lhe transmitir uma segurança que eu mesmo não possuía.
— Obrigado... — ele murmurou, e uma suavidade inesperada tomou conta de seu rosto. Ele fechou os olhos, o alívio desenhando-se em sua expressão cansada. — Aquele monstro... só devora... mulheres... ignora... homens... Não sei o motivo... mas... é tudo... que sei...
Um último suspiro escapou-lhe dos lábios, e vi a vida se despedir dele, deixando para trás uma expressão de paz, como se, por fim, ele pudesse descansar.
Fiquei ali, ajoelhado ao lado dele, sentindo a solidão pesar sobre mim. A promessa que fizera ao homem moribundo agora cravava-se em meu coração como a cerca em seu corpo. Levantei-me devagar, os ombros vergados pelo peso do que estava por vir. Eu não sabia o que me esperava — aquele monstro, o desespero de uma criança órfã, ou o caos que se espalhava por cada esquina. Só tinha certeza de uma coisa: aquela promessa me obrigava a enfrentar todos os horrores que surgissem.
E ali, naquele instante, minha luta por sobrevivência começava. Sabia que nada mais seria como antes; meu destino se entrelaçara com o daquela menina em um mundo onde a realidade havia se fragmentado, e monstros devoravam o que ainda restava de nossa humanidade.
Peguei as armas do policial com mãos trêmulas, sentindo o peso não só do metal frio, mas também da responsabilidade que agora carregava. Rezei baixinho, desejando que ele encontrasse paz. Ele tinha uma pistola com apenas 10 balas e duas granadas. Percebi que o cinto de granadas tinha espaços vazios, provavelmente usadas para tentar atrasar o monstro. Vesti um colete que encontrei dentro da delegacia, ajustando-o sobre minha camisa social. Estava preparado, ou ao menos, tanto quanto poderia estar.
Segui pela rua onde o monstro havia desaparecido com a filha do policial. Mesmo sabendo que ele só devorava mulheres, não havia garantia de que não me atacaria se eu estivesse em seu caminho. O medo pesava sobre cada passo que eu dava, como uma sombra constante.
Após algum tempo, localizei a criatura. Ela estava em frente a um posto de gasolina, farejando o ar como se tentasse localizar sua presa. Contornei a rua em silêncio, mantendo-me fora do campo de visão da criatura. Foi quando a vi: a filha do policial, escondida dentro do posto, olhando nervosamente pela janela. Usava a farda, o boné da polícia, mas estava sem colete. Pude ver seu rosto tenso através do vidro.
Aproximei-me devagar, sem fazer barulho, e bati levemente na janela. Ela se assustou, virando a pistola na minha direção. Levantei as mãos em sinal de rendição, apontando para a frente do posto, onde o monstro estava, e fiz um gesto para que ela ficasse em silêncio. Relutante, ela abriu a janela devagar, ainda com a arma apontada para mim.
— Quem é você? — perguntou com desconfiança, o olhar duro.
— Sou Zack. Vim ajudar você. — Minha voz era baixa, tentando não chamar atenção.
— Me ajudar? A que custo? Nem te conheço. — Ela engatilhou a arma, seus olhos fixos em mim.
— Calma! Eu vim a pedido do seu pai. Ele me pediu para te ajudar... em troca, ele me deixou pegar as armas dele. Juro por tudo. — Falei rápido, suando frio, o coração acelerado.
Ela mordeu o lábio, as sobrancelhas se franzindo.
— Meu pai... — Sua voz vacilou, os olhos começando a encher de lágrimas.
— Meus pêsames... Ele... lutou até o fim. — Eu disse suavemente, tentando transmitir alguma paz.
— Entendi... — Ela murmurou, a voz trêmula, os olhos evitando os meus.
Vi o desespero nela. Seu corpo tremia, e ela estava à beira de desabar, mas lutava contra isso. Não consegui me segurar. Abaixei sua arma gentilmente, segurando suas mãos trêmulas. Olhei nos olhos dela, falando com firmeza.
— Sei que parece que seu mundo está desmoronando. Você quer gritar, chorar... Eu entendo bem essa dor. — Minhas palavras saíram pesadas, carregadas de lembranças que me traziam profunda saudade.
— O que você sabe? Você não tem ideia do que eu passei! — Ela exclamou, a voz baixa, mas carregada de mágoa. Lágrimas escorriam pelo seu rosto.
— Eu sei... Eu já estive nesse mesmo vazio. — Minha voz era melancólica, meus olhos cheios de uma tristeza profunda que ela parecia reconhecer.
Ela ficou em silêncio, sem saber como responder, percebendo que eu falava a verdade.
— E está tudo bem chorar. — Continuei, suavizando o tom. — Pode não ser muito, mas se precisar, eu te empresto meu ombro... assim que sairmos daqui, tá bom? — Disse isso enquanto limpava uma lágrima do rosto dela com cuidado, minhas mãos ainda segurando as dela com firmeza, esboçando um sorriso singelo.
Ela assentiu, tentando segurar o choro, o rosto levemente corado pela situação.
Depois de um momento, ela respirou fundo e se recompôs, limpando as lágrimas com as costas da mão.
— Não tenho mais balas... — Ela disse, a voz mais controlada. — Qual é o plano, Zack?
— Bem, o plano é simples. Vou distrair o monstro. — Fiz uma pausa, vendo a surpresa no rosto dela. — Vou me vestir de mulher. Por sorte, passei por uma loja de fantasias e peguei uma peruca e algumas roupas. Enquanto eu o distraio, você foge para o norte o mais rápido que puder. Eu vou te encontrar depois.
Ela me olhou como se eu tivesse enlouquecido.
— O quê? Mas assim você corre perig- — Ela começou a protestar.
— Shhh! — Coloquei a mão suavemente sobre sua boca, silenciando-a. — Quer que ele nos ouça? Não se preocupe, tenho um plano de fuga. Prometo que vou te alcançar depois. Confie em mim.
Ela hesitou por um momento, mas então assentiu, ainda relutante.
— Ótimo. O plano começa assim que eu atirar no monstro. — Disse isso enquanto pulava a janela, já indo me trocar.
A verdade? Eu menti sobre o plano de fuga. Mas precisava convencê-la a sair dali. Depois de me trocar, saí do posto e a vi se preparando para correr.
— Ah! Quase esqueci... Qual é o seu nome? — Perguntei, já disfarçado com as roupas femininas.
— Sophia. — Ela respondeu, olhando para mim com uma mistura de surpresa e confusão.
— Tudo bem, Sophia. Nos vemos em breve. — Estendi a mão para ela, que a apertou firmemente.
— Não se atrasa, hein, princesa? — Ela disse com um pequeno sorriso, zombando da minha aparência.
Ri baixinho, acenando com a cabeça, e me aproximei da parede do posto, espiando o monstro mais uma vez. A criatura estava distraída, farejando o ar. Respirei fundo e, com as mãos trêmulas, levantei a arma, apontando para a cabeça dele.
— Seja o que Deus quiser... — Murmurei para mim mesmo antes de apertar o gatilho.
Atirei.
O som do disparo ecoou, cortando o ar pesado, e o monstro virou-se na minha direção com uma lentidão grotesca, os olhos mortos, famintos. Sua pele rachada deformada, entre grunhidos, ele balbuciou com uma voz distorcida, arrastada:
— AaaCHei... CoOoMiDa...
Ele começou a andar, cada passo balançando seu corpo desajeitado. Cada movimento era um baque contra o chão, como se a terra tremesse sob seu peso. A criatura esbarrava nos carros, arrastando placas, derrubando o que estivesse em seu caminho. De repente, colidiu com a primeira bomba de gasolina, e uma ideia louca surgiu na minha mente: "se eu acertar ali..."
Tentei disparar na bomba, mas minhas mãos estavam trêmulas. Nunca havia manuseado uma arma antes. O primeiro tiro passou longe, ricocheteando no metal, e o pânico começou a subir. O monstro derrubou a segunda bomba, cada vez mais perto de mim, e eu sabia que não tinha muito tempo. Com o coração acelerado, respirei fundo e disparei mais uma vez.
*Bang*.
Dessa vez, acertei. Uma explosão de fogo envolveu o monstro, as chamas subindo como uma fera faminta. Ele começou a se debater, a pele grotesca queimando e se deformando ainda mais, soltando grunhidos de dor que reverberavam como trovões:
— Ahhh! QuENtE! QuENTe! — Ele se agitava, tentando em vão apagar as chamas que o consumiam.
Aproveitei a distração e corri o máximo que pude, meu corpo pulsando com adrenalina. Passei em frente a outra bomba de gasolina, olhando para trás, verificando onde estava Sophia. Ela ainda não tinha se distanciado o suficiente.
"Droga", pensei. O monstro parecia diferente agora. Ele estava furioso. Não mais apenas uma besta faminta, mas uma força de destruição. E então, inesperadamente, ele começou a correr, as chamas envolvendo seu corpo deformado como uma aura infernal, direto em minha direção.
— O quê?! — gritei, o pânico tomando conta de mim.
Ele se movia rápido demais, sua forma distorcida atravessando o caos ao redor. No último segundo, consegui me jogar para o lado, mas não saí ileso. Suas garras roçaram minha coluna, cortando com precisão fria. Senti a dor rasgar minhas costas, e então o monstro bateu contra a bomba atrás de mim. O impacto fez com que ele perfurasse o tanque, e o fogo ao seu redor ficou ainda mais intenso, o metal da bomba derretendo sob o calor.
Sabia que tinha uma oportunidade única. A criatura estava presa, suas garras enganchadas na bomba, tentando se libertar. Com uma mão trêmula e ensanguentada, retirei o pino da granada e, sem pensar muito, joguei aos pés do monstro.
— Toma um presentinho... — murmurei antes de correr.
O posto explodiu em fogo e ruínas. O impacto da explosão me lançou pelos ares, e eu senti o vidro da loja próxima se quebrar enquanto eu atravessava a vitrine. Caí no chão coberto de cacos, o corpo dolorido e cheio de cortes. A fumaça e o cheiro de queimado invadiram meus pulmões enquanto tentava me levantar, minha visão turva. As costas ardiam — parte da minha roupa estava em chamas, e eu bati contra elas para apagar o fogo.
Os gritos do monstro, distantes agora, indicavam que ele havia sido gravemente ferido. Precisava aproveitar isso. Me arrastando, coberto de sangue e sujeira, corri o mais rápido que pude em direção ao norte, onde sabia que Sophia deveria estar.
Depois de cerca de quinze minutos, minha força começava a se esgotar. O sangue escorria pelo meu corpo, as feridas pulsando. Foi então que a vi, sentada no ponto de ônibus, com os ombros caídos e o olhar vazio, como se o mundo ao seu redor tivesse desmoronado.
Me aproximei, ofegante, forçando um sorriso apesar da dor.
— O que foi? Tá aí pensando na morte da bezerra? — Perguntei com um tom sarcástico, minha voz fraca e trêmula.
Sophia se virou rapidamente, surpresa ao me ver naquele estado.
— Zack?! Você... — Seus olhos se arregalaram, aterrorizados ao ver meu corpo coberto de sangue.
— Viu só? Eu disse que te alcançava... — Sorri, mas meu corpo não aguentou. Tudo ao meu redor girou, e eu caí no chão com um baque surdo, o sangue manchando a calçada.
— ZACK!! — Ela gritou, sua voz ecoando na minha mente enquanto tudo ficava escuro.
Acordei algum tempo depois, deitado numa cama, todo enfaixado. A dor era constante, mas suportável. Ao meu lado, Sophia dormia, a cabeça repousada na cama, como se estivesse exausta. Pela primeira vez, pude vê-la com mais clareza. O boné e a farda escondiam o belo cabelo dourado que agora caía solto, reluzindo como ouro à luz fraca da lua, junto a sua aparência adormecida como um anjo. Havia uma força silenciosa nela, uma resiliência que me fazia admirar a garota que, mesmo em meio ao caos, havia encontrado forças para me salvar.
Minha mão deslizou suavemente pelos fios dourados de Sophia, acariciando-os sem pensar. Seus cabelos eram surpreendentemente macios. Ela se remexeu suavemente, despertando com os olhos entreabertos, ainda sonolenta, mas rapidamente alerta.
— Como você está se sentindo, Zack? — A voz dela era suave, mas carregada de preocupação, seus olhos azuis vivos como o oceano,piscavam lentamente.
Eu sorri, ainda com a mão repousando em sua cabeça. — Estou bem melhor, graças a você.
Ela baixou os olhos, mexendo timidamente em uma mecha de cabelo, claramente envergonhada pela atenção. — Eu... não fiz muito. Você foi quem se arriscou mais...
— Se você não tivesse cuidado de mim, eu não estaria aqui. — Tirei a mão rapidamente, sentindo o peso da intimidade inesperada, tentando disfarçar minha própria vergonha. — Aliás, por quanto tempo eu dormi?
Sophia ainda estava corada, os olhos desviados. — Por umas dez horas. — Ela murmurou.
— Dez horas?! — Me surpreendi, tentando me levantar da cama. — Não acredito que dormi tanto tempo!
— Ei! — Sophia se apressou, estendendo as mãos. — Deita! Você está todo machucado! — Seu rosto ficou mais vermelho quando percebeu algo.
— Hã? O que foi? Eu estou bem... — A frase morreu nos meus lábios quando percebi que estava apenas de cueca. *Droga*.
Envergonhado, praticamente corri para o banheiro. A ideia de ter ficado exposto daquele jeito na frente dela me deixou completamente sem jeito. Depois de um banho rápido, me vesti com as roupas que ela havia deixado ao lado da cama e, tentando parecer o mais natural possível, avisei que ela podia entrar.
Sentamos lado a lado, o silêncio constrangedor crescendo entre nós. Nenhum de nós parecia saber o que dizer até que, de repente, Sophia murmurou, sem coragem de me encarar:
— Você tem um corpo bem... definido. E bonito. — Sua voz estava vacilante, enquanto olhava para o chão. — Notei isso quando cuidava de você...
Senti meu rosto esquentar. — Va-valeu... — Eu pigarreei, olhando para o outro lado. — E você... seu cabelo é... lindo. O vestido te cai muito bem. — Meu rosto ardia de vergonha.
— Obrigada... — Ela respondeu, ainda olhando para o lado, as palavras soando quase tímidas.
O silêncio caiu novamente, pesado e constrangedor.
— Sophia... — comecei, tentando parecer casual. — O que você acha de irmos para a varanda? Ver o céu? — Falei de forma desajeitada, desesperado para quebrar o gelo.
Ela sorriu, embora estivesse tão desconfortável quanto eu. — Boa ideia... vamos...
Na varanda, o clima estava mais leve. Conversamos sobre coisas triviais no início, nos conhecendo melhor. Aos poucos, começamos a compartilhar histórias mais profundas. Contei a ela sobre Ema, o peso que ainda carregava por perdê-la. Sophia ouviu com atenção, e seus olhos se encheram de lágrimas. Ela se desculpou pelo que havia dito no posto, mas eu a tranquilizei, dizendo que tudo estava bem. Ela então começou a falar sobre sua família, e a dor em sua voz era palpável. Seus pais... o que ela perdeu... sua força agora parecia ter rachaduras, e as lágrimas começaram a escorrer pelo seu rosto.
Sem pensar, cumpri a promessa que havia feito. Ofereci meu ombro, e ela se inclinou, chorando baixinho. Minha mão repousou em sua cabeça, acariciando seus cabelos com delicadeza, como se o simples toque pudesse aliviar sua dor.
Ela chorou por um longo tempo, até que, exausta, adormeceu contra meu ombro. Ficamos assim por um tempo, sentados no chão da varanda. Quando percebi que ela havia apagado, cuidadosamente a levantei em meus braços e a levei para a cama. Enquanto me afastava para sair, senti um puxão leve na minha camisa. Olhei para baixo e vi sua mão segurando firmemente o tecido, mesmo inconsciente. Suspirei, sentando ao lado dela até que sua mão relaxasse e me deixasse ir.
Na manhã seguinte, acordei com o cheiro delicioso de ovos e bacon. Sophia, já vestida, tinha preparado o café da manhã. Eu sorri ao vê-la se esforçando, mesmo depois de tudo. Ela estava visivelmente ainda um pouco sonolenta, e, quando nossos olhares se cruzaram, percebi que sua alça do vestido estava caindo, quase revelando demais. Me virei rapidamente, mas não antes de notar seu rosto ficar vermelho de vergonha.
— O-obrigado pelo café... — gaguejei, me apressando para sair do quarto.
Passei pelo corredor, tentando afastar a imagem da minha mente, mas a lembrança insistia em voltar. Com um riso nervoso, sussurrei para mim mesmo:
— Duas balançadas e a lâmina do caos estava prestes a pegar fogo...
Os dias que se seguiram foram tranquilos, embora intensos. Fomos aprendendo mais um sobre o outro. Sophia era teimosa, e nossas discussões, embora frequentes, nunca passavam do limite. A confiança cresceu naturalmente entre nós, e com o tempo, o afeto também. Saíamos juntos para buscar suprimentos, sempre armados e atentos ao perigo. Por dois meses, vivemos assim, sem interrupções.
Até o dia em que acordei com o som de tiros e gritos.
Desesperado, procurei por Sophia na casa. Quando a encontrei, meu coração quase parou. Ela estava caída no chão da sala, sangrando muito, a mão segurando o abdômen com dificuldade. Corri até ela, o medo tomando conta de mim.
Antes que eu pudesse fazer algo, senti o impacto brutal de um taco de ferro na minha cabeça. A visão ficou turva, e caí ao lado dela. Tentei me mover, mas outro golpe me apagou.
Quando voltei a mim, estava amarrado, as mãos presas atrás do corpo, a boca tapada. Foi então que vi a cena que me encheu de ódio puro: os arruaceiros que haviam invadido nossa casa estavam abusando de Sophia.
Ela chorava, sangrando, me olhando com desespero. As palavras saíam fracas de seus lábios:
— N-não... por favor, não...
Um dos homens, segurando seus cabelos, forçou sua cabeça a me olhar.
— Olha só, o espectador acordou... — ele disse com um sorriso cruel, erguendo o rosto de Sophia na direção dos meus olhos.
O ódio dentro de mim explodiu com uma intensidade avassaladora, queimando como fogo descontrolado. O mundo ao meu redor desapareceu; só restava a fúria, a dor que ardia em minhas entranhas, me consumindo por inteiro. Soltei um grito visceral, um som primitivo que ecoou, e, como se possuído por uma força que nem eu sabia possuir, rompi as cordas que me prendiam. O homem sobre Sophia sequer teve tempo de reagir quando me lancei sobre ele. Meus punhos caíram contra seu rosto, um golpe atrás do outro, até que sua face se tornasse irreconhecível, uma máscara de carne e sangue.
Os outros observavam, paralisados pelo horror, mas bastou um olhar meu — cheio de ódio cru, de promessa de vingança — para que o inferno começasse, massacrei quem estava naquele cômodo. Meu ódio ainda não estava satisfeito. Peguei a faca ensanguentada que usaram para machucá-la; o frio do metal agora era uma extensão do desejo sombrio que me dominava, uma sede insaciável de justiça à minha própria maneira.
O restante do bando ouviu o caos e veio correndo. Escondi-me atrás da porta, a respiração curta, o corpo pulsando de adrenalina e raiva. Quando o primeiro homem entrou, não teve sequer a chance de ver o perigo: cravei a lâmina em sua garganta, e ele caiu, o sangue se espalhando pelo chão. O segundo avançou com um taco, mas esquivei e, com um golpe preciso, enterrei a faca em seu peito. Ele arfou uma última vez antes do silêncio eterno.
Saí da casa, onde os restantes me aguardavam. Sentia o sangue escorrendo da minha testa e misturando-se ao suor, um fluxo quente que queimava minha pele, me tornando ainda mais decidido.
— Venham! Todos de uma vez! — gritei, minha voz um trovão carregado de ódio. — Eu vou matar cada um de vocês! Cada um! — Minha expressão estava tomada pela fúria, o sangue manchando minha visão, pingando pelo rosto, e meus olhos brilhavam com uma loucura incontrolável.
Eles hesitaram, mas o medo deu lugar à sede de sangue, e avançaram. E eu lutei como um animal encurralado, cada golpe meu era uma sentença, cada movimento carregava minha alma encharcada de raiva. Arranquei olhos, esmaguei ossos, dilacerei sem hesitar. O som de ossos estalando e carne rasgando preenchia o ar; a brutalidade do momento era selvagem, cruel. Não sentia nada além do desejo de ver cada um deles tombar ao meu redor.
Um por um, eles caíram. O chão se tornou uma cena de horror, um cenário de vingança e morte. E, quando o último deles finalmente tombou, o sangue cobrindo o solo como um manto macabro, minha fúria começou a ceder, dando lugar ao vazio, um abismo frio e paralisante.
Cambaleei de volta para a casa, meus pés pesados, o corpo coberto de sangue e feridas. Tudo dentro de mim estava cansado, e o peso do que havia acontecido finalmente me atingiu. Ajoelhei-me ao lado de Sophia, seu corpo pequeno e frágil nos meus braços. Ela estava machucada, sua respiração fraca e irregular. Mas estava viva, ainda ali, entre o mundo dos vivos e o além.
— Sophia... me perdoa... — minha voz era um fio, um sussurro carregado de dor. As lágrimas vieram, descontroladas, e cada uma carregava o peso da culpa. — Eu... falhei... não consegui te proteger...
Ela abriu os olhos com dificuldade, um sorriso tênue, como uma pequena chama insistindo em brilhar. — Zack... você... fez tanto por mim... — Sua mão trêmula encontrou meu rosto, os dedos frios acariciando minha bochecha. — Você... me protegeu... olha pra você... tão machucado...
— Mas eu... — tentei protestar, a voz embargada pela emoção, mas ela apenas balançou a cabeça com um sorriso frágil.
— Você... é a pessoa mais gentil... e forte que eu conheço... — sussurrou, a ternura em seu olhar aquecendo meu coração destroçado. — Você... fica tão lindo... quando sorri... pode prometer... uma coisa?
Apertei sua mão com força, os olhos marejados, incapaz de controlar as lágrimas. — Sim, qualquer coisa... qualquer coisa, Sophia...
— Promete... que vai viver? Que vai sobreviver... até o fim? — Sua voz era um fio, quase um sopro, mas sua mão se ergueu para secar uma lágrima que descia pelo meu rosto.
Tentei sorrir, mas o peso daquela promessa me despedaçava. — Eu... eu prometo, Sophia...
Ela sorriu, um sorriso doce, triste, que iluminou o ambiente, como um raio de sol. — Fico... tão feliz... só mais uma coisa... — Seus dedos tocaram minha nuca, e ela me puxou para mais perto. — Vem... vem mais perto, Zack...
Aproximei-me, e, num último ato de ternura, ela me beijou, suave e delicada como uma pétala. Naquele instante, o mundo parou, e tudo ao nosso redor desapareceu.
— Eu te amo, Zack... — sussurrou, enquanto uma última lágrima escorria por sua face pálida, e seus olhos se fecharam, sua respiração se desvanecendo entre meus braços.
— Sophia... — minha voz se quebrou, e o desespero tomou conta. — Eu... também te amo... — As palavras saíram entre soluços, e tudo o que eu podia fazer era segurá-la, sentindo o calor de seu corpo lentamente se esvair.
Ela morreu ali, com um sorriso sereno, nos meus braços. E, mais uma vez, meu mundo desmoronou. Aquele vazio insuportável me consumiu, e o peso da perda esmagou cada parte de mim.
Depois disso, algo dentro de mim se partiu. O ódio e a amargura tomaram conta da minha alma, envenenando cada esperança que ainda restava. Sophia era a última luz que eu conhecia, e agora, na escuridão absoluta, nada mais fazia sentido.
A partir daquele dia, começou minha jornada. Não mais como o homem que lutava para viver, mas como o homem que desejava morrer... mas não podia.
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(Arte conceitual, Sophia)
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