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Por Apenas Uma Noite

Capítulo 1

Respire

fundo. Está tudo bem. Apenas respire fundo.

Sinto o colarinho apertar

meu pescoço. Observo uma única gota de suor escorrer em minha testa. Respiro

fundo mais uma vez, embora não faça diferença, pois meu nervosismo não irá mudar

por um simples gesto. Boca seca, batidas apressadas em meu coração e medo

inserido na mente.

Respire

fundo. Você consegue.

Tento dizer repetidas

vezes, como me ensinaram, mas em vão. Ouço passos na escada. Engulo em seco.

Espero que esse reflexo no espelho não seja o garoto que terei que ser. Está

amedrontado demais. Apreensivo demais. Não posso ser assim.

Vamos,

respire fundo.

Escuto o som da maçaneta

girando. Minhas pernas tremem. Tento ajeitar o colarinho que me sufoca, sentindo

a saliva queimar minha garganta.

— Está tudo bem, filho? —

Minha mãe entra no quarto e, de imediato, sinto um aroma doce chegar até mim. Penso

em sorrir, mas meus lábios não obedecem.

— Eu? Sim. Acho.

Seus passos seguem para

minha direção. Eu a observo através do espelho. Um vestido justo e escuro

esconde seu corpo. Cabelo solto, caindo por cima dos ombros.

— Sabe que não precisa

ficar tão nervoso assim, não é mesmo? — Seus dedos tocam meus braços, apertando-os.

Não respondo. Fecho meus

olhos. Conto até três.

— Ela está te esperando.

Quando estiver pronto, pode descer — diz ela. Sua voz me acalma, apesar de

tudo. Adocicada. Paro de contar e me viro em sua direção. Não demora muito para

que ela ajeite o terno em meu corpo, assim como a gravata que passei horas

tentando deixá-la perfeita.

Seus olhos escuros estão

cravados em mim. Maquiagem, tanto nos olhos quanto nas bochechas preenchem seu

rosto. Seu sorriso está estampado, como sempre esteve. Uma brisa fria invade o

quarto, vindo da janela à direita. Sinto meu corpo se arrepiar.

— Então, está pronto? —

pergunta com um sorriso aberto.

Respiro fundo mais uma

vez.

Você

consegue.

— É, estou pronto.

***

Escuto passos em minha direção, um de cada

vez, enquanto encaro o espelho à minha frente — mesmo que detestando cada

segundo passado, esforçando-me o máximo para não virar o rosto —, enxergando

nervosismo estampar em minha feição. Por algum motivo, excesso de ansiedade ou

falta de controle emocional, não consigo permanecer quieto. Meus dedos tremem,

minhas pernas bambeiam e meu coração explode dentro do peito.

É

apenas o primeiro dia de aula. Não tem o que temer. É apenas o primeiro dia de

aula.

Observo minha mãe caminhar

para perto de mim, com um sorriso aberto no rosto.

— Como está meu campeão,

em? — Se aproxima com uma pergunta.

Respiro fundo, tentando

não demonstrar indícios de um garoto amedrontado e apreensivo, e tentando ainda

mais não olhar em seus olhos que tanto me conhecem.

— Filho, você está no

terceiro ano do ensino médio, acho que passou da hora de relaxar esses ombros e

agir como um garoto da sua idade. Não precisa se preocupar tanto assim.

Ergo meu olhar. Seu

sorriso brilha em minha direção. Cabelo amarrado em um rabo-de-cavalo, enquanto

uma de suas mãos se apoia em meu ombro, massageando-o suavemente.

Engulo em seco.

— E se não sair tudo bem?

— pergunto, com falhas em minha voz. — E se eu começar a suar e todo mundo rir

de mim?

— Não vai acontecer. Você

fica nervoso jogando videogame?

— Não, mas é diferente.

Não tem ninguém me observando. Muito menos comentando sobre como eu sou.

— E por que acha que

estão comentando sobre você? — Suas duas mãos estão em meus ombros agora,

apertando-os. De alguma forma, isso me faz acalmar.

— Porque é o que parece.

— Não, eles não estão

falando de você. Sabe quantos alunos tem naquela escola? — pergunta, achando

graça da situação, no entanto. — O suficiente para não comentarem sobre você.

— Mas...

— Nada de “mas”, filho. Você

se lembra de quantas vezes eu tive que te buscar na escola, quando você chorava

e dizia para a professora que tinha alguém te observando?

— Infelizmente —

respondo. — Era o ensino fundamental, crianças são assim.

— Não, crianças não são

assim. Você era assim — Seus dedos me apertam ainda mais forte, e eu agradeço

por isso. — Não existem pessoas te observando ou te julgando. É apenas sua

mente. Não foi isso que a terapeuta explicou?

— Tecnicamente sim. Mas

não é tão fácil quanto parece. Eu começo a suar, minha boca não abre e minha

cabeça gira. Não gosto que me observem.

— E é por isso que você

vai sair desse quarto, caminhar até aquele lugar repleto de alunos e se

esforçar o máximo para se sair bem. Ou você não quer se tornar um diretor de

cinema?

Ela sabe mesmo como me

acertar em cheio. Retiro minha atenção do espelho por um momento e giro o corpo

para encará-la. Ela logo faz questão de ajeitar o cabelo que está caído em

minha testa. Alinha a camisa xadrez em meu corpo e suspira, fitando-me nos olhos.

Estão calmos e reflexivos, decididos talvez. Sorri.

Minha boca se abre, mas

nenhuma palavra consegue sair. Então a fecho, engolindo em seco.

— Vamos, uma escola

precisa de você. — Tenta me incentivar, abrindo passagem e esperando que eu

siga para fora do quarto.

— Mãe...

— Não adianta enrolar,

filho. Você tem uma missão e precisa ser concluída.

— Mas...

— Sem “mas”, eu já disse.

Vamos lá, seu preguicinha. Hora de

fazer seu trabalho e mostrar para o mundo que é muito mais do que imagina.

Dou um suspiro, sentindo

meu estômago se embrulhar com o simples fato de pensar que terei que enfrentar

o mundo lá fora. Não entendo porque preciso me encaixar em uma bolha no qual

não tenho interesse em fazer parte.

Mas sei perfeitamente que

minha mãe jamais concordará comigo, por isso preciso me apressar o quanto

antes. Não quero escutar seus prolongados sermões.

Finalmente meus passos

indicam a saída do quarto.

— Isso mesmo, andando. E

sem pensar demais, em? Apenas faça! — Seu tom de voz sai alto o bastante para

me deixar envergonhado, ainda que não tenha ninguém por perto.

Pego minha mochila

encostada na parede do quarto e desço os degraus da escada.

***

Faz cerca de cinco minutos que estou no

ponto de ônibus. Não posso negar o nervosismo que percorre meu corpo. Algumas

outras pessoas estão presentes, em completo silêncio, perdidas em seus

smartphones ou em conversas cotidianas. Evito olhar diretamente em seus olhos,

mantendo minha cabeça baixa.

Confesso que sessões de

terapias têm me ajudado, embora não por completo. Sinto minhas pernas

bambearem, meu coração bater mais forte e minha boca demonstrar indícios de

ressecamento. Contudo, já é uma grande evolução, eu diria. Agora posso caminhar

com pessoas me olhando, mesmo que de forma discreta e acelerada. Não preciso

derramar mais lágrimas ou correr como um desesperado no qual eu costumava

fazer; ou como eu gostaria de fazer nesse exato momento, para ser sincero.

Fugir sempre parece a melhor solução.

Só preciso respirar fundo

e imaginar que tudo ficará bem. É assim que me ensinaram.

Por fim o grande

transporte se aproxima. Espero todo mundo subir primeiro antes que eu possa dar

o primeiro passo. Não consigo nem mesmo encarar o motorista, temendo que ele

possa me expulsar do ônibus por isso. Meus olhos percorrem todo o lugar por um

rápido instante, enxergando uma quantidade surpreendente de alunos conversando,

rindo e olhando diretamente para o meu rosto amedrontado. Tento ignorar,

observando David e Helena sentados à direta. Caminho até eles imediatamente.

— Eu apostei dez pratas

que você não apareceria hoje — diz David antes mesmo que eu me sente ao seu

lado. — Me deve dez pratas.

— É você quem me deve dez

pratas, idiota. — Helena dá dois tapinha nas costas de David, enquanto exibe

sua seriedade de sempre.

— Viu o que me fez

passar?

— Não enrola. Me paga

logo.

Relutantemente, David

retira uma nota suada do bolso da calça e entrega a Helena, franzindo os cenhos

em minha direção.

— Obrigado, amigo —

ironiza ele, ainda com seus olhos em mim. — Lá se foi toda minha grana.

Satisfeito?

Dando de ombros, eu me

sento.

— Não liga para ele,

estava mesmo convicto que você não apareceria. — Sinto o hálito quente de

Helena em minha orelha. — Mas sejamos sinceros, ele só está assim porque deve

ter descoberto que alguma baleia, em algum oceano, pode ter morrido.

— Muito engraçado. E não,

nenhuma baleia, em nenhum oceano, morreu. Eu espero que não. Falando nisso, vocês

sabiam que baleias possuem melhores amigos? Acho que ninguém aqui seria uma

baleia, pelo visto.

— Eu disse, ele está

mesmo chateado com alguma coisa. Eu ainda aposto que é por causa de alguma

baleia. O que foi, David, Free Willy não é mais sua amiga?

— Muito engraçado

novamente. Deveria abrir um bar de comédia. E tecnicamente Free Willy não pode ser minha amiga, porque é macho. Então seria

amigo. Mas isso não vem ao caso. Aposto dez pratas que não é por causa de

baleira. O que me diz?

— Não sou idiota, garoto

— rebate ela.

David solta um suspiro de

decepção, cruzando os braços no alto do peito. Suas sobrancelhas se franzem,

como uma criança sem seu brinquedo favorito.

— Bom dia para vocês

também — digo por fim, não evitando o sorriso que se abre.

— Não esquece. Dez pratas

— escuto o sussurro de David ao meu lado.

— Continue esperando —

respondo.

Eu costumava permanecer

no primeiro banco, com os olhos voltados para o lado de fora do ônibus, sem me

dar conta que duas pessoas incríveis compartilhavam o mesmo transporte que eu. Ainda

me lembro do dia que David me convidou para sentar ao seu lado, ao ver que

quatro garotos começaram a se implicar comigo, me chamando de...

— Bom dia, Forrest Gump.

— Escuto meu apelido sendo pronunciado atrás de mim.

Não me viro para

encará-lo. Por que deveria? Apenas escuto algumas risadas que percorrem o fundo

do ônibus.

— Cala boca, Milk-shake! —

Helena rebate Mike no mesmo instante, girando o pescoço para ameaçá-lo com um

simples olhar, exatamente como cansou de fazer. — Não me faça ir aí e quebrar

todos esses dentes podres da sua boca.

Uma onda de vaias chega

até mim. Fecho meus olhos e respiro fundo, contando rapidamente. Um... Dois... Três...

Eles

não estão me olhando agora. Eles não estão me olhando agora. Eles não estão me

olhando agora.

Novamente inspiro e expiro.

Não

é nada demais. Apenas provocação. Ninguém está me olhando agora.

Por fim, após alguns

segundos passados, meus olhos se abrem. Apenas David me encara, com o canto do

olho.

— Você está bem? —

pergunta ele.

Concordo com um aceno de

cabeça. Não escuto Mike dizer absolutamente nada mais. Sei que Helena está

sentada e com o corpo voltado para frente. Sinto que olhos alheios estão

voltados para minha direção, mas faço o possível para ignorá-los. São apenas

adolescentes em busca de atenção. Não preciso me preocupar, não é mesmo?

— Não liga para ele,

Caio. É um idiota. — Sinto a mão de Helena em meu ombro. — Você sabe que não se

parece com Forrest Gump. E mesmo assim, qual o problema, não é? Quero dizer,

ele se aventurou pelo mundo. Isso é incrível.

Eu entendo que não pareço

com Forrest Gump, e agradeço por Helena tentar me ajudar, mas não gosto que

pensem que tenho raciocino lento ou invento histórias por aí. O simples fato de

eu temer pessoas e não encarar em seus olhos não faz de mim uma pessoa

estúpida. Posso não ser social ou ter um bom relacionamento com seres humanos,

mas eu ainda sei usar meu cérebro, apesar de tudo.

Abaixo ainda mais minha

cabeça e apoio meu queixo em cima da mochila. Espero que ninguém perceba que

lágrimas estão embaçando meus olhos.

Capítulo 2

É incrível como nosso cérebro consegue nos

enganar. Para ser sincero, é isso que eu ouço todos os dias. Querem me

convencer que não tem ninguém me olhando. Que não tem ninguém julgando tudo o

que eu faço, cada passo, cada respiração, cada movimento inesperado. Já me

chamaram até mesmo de egocêntrico, por acreditar que o mundo gira em volta do

meu ser. Mas não é o caso.

Eu me odeio. Eu odeio ter

que ser desse modo, com vergonha, com medo, com pessimismo em minha volta, como

se paredes estreitas pudessem me prensar em questão de segundos. Eu sei que

eles estão me observando agora. Um garoto está caminhando apressadamente pelo

corredor de uma escola, mantendo cabeça baixa, ombros curvados, e querem que eu

acredite que é normal? Que não tem dedos em minha direção? Que não falam de mim

pelas costas?

Desculpe, mas eu sei o

que acontece. E não são coisas boas.

Helena e David acompanham

meus passos, ainda que necessitem de velocidade.

— Ser mordido por um

tubarão ou levar um coice de um burro? — pergunta Helena com o máximo de

empolgação possível; ou que consegue transmitir. Durante dois anos de amizade,

eu escutei todo tipo de pergunta que alguém poderia imaginar. Criar dúvidas em

mentes humanas era especialidade da menina de cabelos coloridos e maquiagem

escura nos olhos.

— E quem irá escolher ser

mordido por um tubarão? — questiona David, ainda seguindo meus passos. — Você

está na água, com medo, fora de seu hábitat natural e indefeso. Uma mordida

certamente viraria uma comida.

— O coice poderia acertar

sua cara de pateta e te deixar ainda mais idiota do que já é. Pensa nisso. —

Por mais séria que Helena consiga parecer, seu senso de humor se mantém sempre

afiado. — E você, Caio. Qual sua opção?

Não respondo de imediato,

continuando com meus passos largos e ombros curvados. Desvencilho de alguns

alunos que atrapalham meu caminho e alcanço, em poucos minutos, meu armário.

— A mordida será na perna

ou no braço? — pergunto, digitando minha senha no cadeado.

— Caio. — Helena chama

meu nome. Parece decepcionada. — É apenas uma pergunta. Não irá acontecer de

verdade.

— Mas preciso saber qual

será o grau da mordida e onde acontecerá — respondo. — O coice, por exemplo,

vai atingir minha barriga ou meu rosto?

David bufa atrás de mim,

sabendo do risco que eu não estou tomando. Escuto Helena se aproximar.

— É apenas uma pergunta,

Caio — sussurra em meu ouvido. — Ser mordido por um tubarão ou levar um coice

de um burro, em? — Seus dentes rangem.

Sinto um calafrio

percorrer meu corpo. Minha mente não trabalha sob pressão, e ela sabe disso.

Mas parece não se importar. E, conhecendo bem Helena, ela vai fazer de tudo

para tirar essa resposta de mim.

Viro-me para encará-la,

notando suas sobrancelhas curvadas e mandíbula rígida.

— Levar um coice de um

burro, é o que eu certamente preferiria — respondo, temendo que um soco acerte

minha briga. David sabe muito bem da força que essa menina possui.

Helena exibe um largo

sorriso, deixando, em questão de segundos, toda raiva para trás.

— Obrigada — faz um aceno

com a cabeça, mudando drasticamente o tom de voz, ficando assustadoramente

calma. — Viu? Você não se machucou de verdade, bobão.

Bem atrás de Helena, caminhando

com arrogância no olhar e braços ridiculamente abertos, observo Mike. Outros

três amigos seguem seu rastro sujo e fedido. Abaixo minha cabeça imediatamente,

encarando meu tênis escuro. Não quero ser pego olhando em seus olhos.

— Sai da frente, coisa

preta — escuto Mike ofender David, que está no meio do corredor. Ele é

empurrado para trás e abre espaço para que os quatro babacas possam passar.

Helena gira o corpo em um

rápido movimento ao escutar tais ofensas.

— O que você disse,

Milk-shake? — Sinto toda raiva de Helena explodir em questão se segundos. Ninguém

responde sua pergunta.  — Coisa preta, é

sério?

Um silêncio perturbador

se estende pelo corredor.

Mike é um garoto

extremamente ameaçador para sua idade, e Helena não se importa nenhum pouco com

isso. O garoto possui ombros largos, olhos pequenos e apertados, barriga

arredondada e cabelos encaracolados, deixando despenteado na grande maioria das

vezes. Um fino bigode, como se quisesse mostrar para todo mundo o quanto está

crescido, preenche a parte superior da boca. Suas roupas estão sempre amassadas

e um odor irritante exala de si. O chamamos — quando não pode nos escutar, obviamente

— de batata fedida. Helena prefere o termo “Milk-shake”, o que pode soar

engraçado quando se está com raiva.

Alguns olhares seguem em nossa

direção.

— Por acaso já se olhou

no espelho hoje, porco imundo? Ou estava ocupado demais tendo que escovar esses

dentes com merda? — Helena costuma não medir palavras com alguém. Por muito

tempo ficou conhecida como “a garota língua afiada”.

Não gosto do silêncio que

me cerca. Todo clima de tensão, esperando qualquer movimento capaz de tirar

suspiros; olhares penetrantes, respiração densa, cadernos amassados contra o

corpo e murmúrios distantes. Evito olhar nos olhos de Mike ou de qualquer outra

pessoa ao meu redor. Meu coração está prestes a explodir dentro do peito.

— Vamos, Helena. Não

compensa — diz David, em um tom extremamente baixo.

Com bastante custo ergo minha

cabeça e vejo tristeza em seu olhar. Racismo é mais do que grave, principalmente

quando risadas ecoam em sua direção e ninguém parece se importar. Se ao menos

eu tivesse coragem o suficiente...

— Me solta, David! —

rebate ela, mostrando toda ira acumulada em seu corpo. — Veja o que ele disse!

Te chamou de coisa preta. Não podemos deixar isso barato!

— Helena.

— Me solta! — grita. —

Ele vai pagar por isso.

— Helena — chama mais uma

vez.

— O que foi?

— O Caio...

Não gosto que se

preocupem comigo. Tudo bem, eu estou com respiração ofegante e contando até

três repetidas vezes. Mas sou apenas um garoto com medo de olhares; posso

suportar pressão de vez em quando.

Um...

Dois...

Três...

Helena me encara por

algum tempo antes de voltar à atenção para Mike. Porém, nada diz. Sinto meu

peito subir e descer em um ritmo acelerado. Não posso fechar meus olhos agora.

Pessoas estão me olhando. Não quero que pensem que sou um garoto esquisito.

Posso cuidar disso muito bem sozinho.

Apenas

ansiedade, não é nada. Respire fundo.

Um...

Dois...

Três...

— Está tudo bem com você?

— Helena coloca uma mecha do cabelo atrás da orelha, encontrando meus olhos

amedrontados.

David está com uma das

mãos sobre meu ombro. Não o havia sentindo antes.

— Forrest Gump — escuto Mike murmurar meu apelido, seguido por um

risinho irônico. — Terá sorte se alguma menina olhar para você um dia,

aberração.

Seguro firme no braço de

Helena, impedindo que se ela vire para ele mais uma vez.

— Não compensa, garota língua

afiada — um fraco sorriso se estende em meus lábios.

***

Quando mais novo, antes que eu pudesse

perceber o quão assustador é ter pessoas me olhando profundamente, eu não

costumava me sentar na primeira fileira. Gostava de ficar no meio da sala,

dividido entre garotos do fundo e estudiosos da frente. Escutava o que cada

aluno, de cada mesa, dizia. Futebol, cinema, festas e estudos depois da aula.

Não era como se eu fosse o centro das atenções, mas o intermediário de

conversas gerais.

Agora, porém, tudo se

perdeu. Logo no meu primeiro dia de aula, onde alunos se preocupam em conhecer

novos estudantes, formando grupos e interesses em comum, eu permaneço na

primeira fila, da primeira cadeira. Sei perfeitamente que eles estão me olhando

agora, enxergando minhas costas suadas, minhas orelhas de abano e meu cabelo

ridiculamente desajeitado.

O importante é que não

conseguirão enxergar meus olhos grandes, meu nariz de batata e meus lábios

finos; o que é um certo alívio, se parar para pensar.

Um professor, alto e de

barba branca, caminha com passos apressados até a mesa no canto, silenciando

imediatamente toda conversa que antes existia. Suas pernas são longas, tais

como seus braços. Seu cabelo é jogado para trás, grisalhos. Ajeita os óculos na

ponta do nariz e suspira, como se fosse um gesto rotineiro, ano após ano.

Seus olhos passam por mim

e, por um rápido instante, sinto um frio em minha barriga.

— Muito bem — começa ele

com uma voz rouca e sem muita pressa. Suspira profundamente antes de continuar.

— Teremos muito trabalho pela frente a partir de hoje. Então peguem seus livros

e vamos começar.

Não é aconselhável ter

medo de pessoas. Não é o mesmo que ter medo de baratas ou de cachorros

raivosos. Pessoas mudam o mundo. São responsáveis por criar e destruir, amar e

odiar. Precisamos delas, assim como elas precisam de nós. Ou pelo menos é assim

que eu acredito.

Quando perguntei para

Lara — no ensino fundamental — se ela gostaria de namorar comigo, eu tinha uma

pequena chama de esperança acesa dentro de mim. Eu a via diariamente, e sentia

uma estranha sensação percorrendo meu corpo. Por que minha boca está seca? O

que aconteceu com meu coração? Por que minhas pernas parecem derreter a

qualquer momento? Não sabia o que estava sentindo, mas doía, e não poderia

perder a chance de demostrar meus sentimentos para a garota de cabelos loiros e

olhos azuis. É assim que casais surgem em filmes.

Ainda consigo me recordar

do “não” que saiu da boca de Lara quando perguntei se gostaria de tomar sorvete

comigo, seguido por: “eca, que nojo, menino”. Eu não estava preparado para

tamanho desprezo, tampouco para os risos e piadas que chegaram até mim. Em

poucos dias, talvez em poucas horas, não havia mais nada aceso dentro do meu

peito. Uma simples frase destruiu tudo o que eu sabia sobre o sentido da vida.

Tive medo, tristeza e fraqueza.

Em questão de meses eu

não continha mais forças para encarar uma pessoa. Toda minha confiança e

autoestima simplesmente sumiram, como uma frágil poeira na estrada. Não saía de

casa e evitava olhar nos olhos de qualquer ser humano que surgia em meu caminho,

temendo que pudessem me odiar ou rir de mim. Minha mãe se tornou única pessoa

capaz de entrar em meu quarto e conversar comigo, mesmo com minha vergonha e

timidez. Videogame se tornou uma solução para os meus problemas. Não precisava

sair de casa para socializar com alguém nem encontrar uma pessoa na rua para

conversar. É muito mais fácil dialogar com alguém quando não se olha em seus

olhos.

***

O refeitório se mantém

agitado. Alunos conversam de maneira exagerada e gargalham como se cada minuto

passado fosse importante. Helena e David estão perto de mim, em uma mesa no

fundo do refeitório, isolada de toda multidão. Arroz, purê de batata, carne

cozida e maça. Confesso que sempre me interessei pela comida da escola, mas

ainda não pude experimentar o que está em minha frente, com vergonha de ser

observado e cometer um erro.

— Está dentro de um

prédio em chamas. Bombeiros demorarão minutos para chegar ao local. Sem água

para apagar o fogo e tossindo pela fumaça. Quinto andar, eu diria. Apenas uma máscara

de gás em cima de uma mesa. Uma senhora de oitenta anos está tossindo e precisando

urgentemente dessa máscara. E então? Salvar uma senhora ou você mesmo? — Helena

está brincando com o garfo em sua mão, levando-o de um lado para o outro. Parece

sem fome.

David suspira.

Eu o encaro por um

momento. Nossos olhares se cruzam e seus cenhos se franzem.

— E então, rapazes? — Ela

ergue a cabeça, impaciente.

— Bem... — começa David,

respirando fundo, temendo um passo em falso. — Uma senhora de oitenta anos já

viveu o suficiente, não acha?

— Eu não sei. Me diz você

— responde ela com um arquear de sobrancelha.— Mas está sendo egoísta.

— Não estou sendo

egoísta. Só estou dizendo que os jovens são o futuro do país. Não concorda,

Caio?

— Eu? Bem... Talvez? Não

sei. No momento do fogo acho que teremos mais empatia, não acha? É uma senhora

de oitenta anos, eu ficaria com dó.

— E não teria dó da sua

própria vida? — questiona ele.

Nossos olhares se cruzam

mais uma vez e então deixo um sorriso surgir, sem responder. Um vento fresco

atinge meu corpo, vindo de uma grande janela à direita. O pátio, do lado de

fora da escola, está praticamente vazio. Poucos alunos que insistem em sugar

fumaça para dentro do corpo se mantém presente, sentados em uma grama verde e

olhando o céu distante, perdidos. Diretores e professores não estão por pertos,

tampouco zeladores ou supervisores. Sabem perfeitamente que algo está errado,

mas preferem não tocar no assunto. Manter o nível alto da escola é algo

fundamental para eles.

Uma bolinha de papel.

Justamente quando eu

pensava que nada mais pudesse acontecer, uma bolinha de papel cai em cima de

nossa mesa. David não pensa duas vezes e logo trata de abri-la. Viro-me para

trás e percebo, no meio de toda multidão de alunos, que apenas Mike está

olhando para mim. Seus olhos estão semicerrados e um pequeno sorriso curvado se

faz em seus lábios.

— Fracassados — murmura

David, lendo o que está escrito.

Helena ergue o braço imediatamente

e mostra o dedo do meio, deixando uma careta como resposta.

— Babacas — resmunga ela.

Por mais bobo que possa

ser essa atitude, de jogar bolinhas de papel na mesa de outras pessoas e

escrever palavras desnecessárias, eu me sinto ofendido de alguma forma. Não

quero ser lembrado como um garoto fracassado. Sei que pode parecer idiotice da

minha parte, mas eu pensava que no ensino médio tudo seria diferente, que eu

deixaria todo passado para trás e escrevia novas páginas em minha vida. Era o

que eu acreditava. Era o que minha mãe me dizia. E eu fracassei.

— Vão se danar, otários!

— Helena não suporta manter a boca fechada por mais tempo e então grita, ainda

com a mão levantada.

Algumas pessoas parecem

não entender, apertando os olhos e se virando para nossa direção.

Abaixo minha cabeça e

conto até três.

Capítulo 3

Escuto passos seguirem em direção à porta

da sala. Meu corpo continua inerte, esperando o momento exato de pegar minha

mochila e me levantar. David faz o mesmo, sabendo perfeitamente o tempo que eu demoro

em sair da escola — 15 ou 20 minutos, dependendo da situação que eu me

encontro; o que não posso dizer ser propício no momento. Diferente de Helena,

que precisa se apressar para o trabalho.

— Tchau, babacas — diz

ela enquanto se desvencilha de muitos estudantes que atrapalham seu caminho. —

Sai da frente, ô merda.

Curvo minha cabeça e

apoio a testa sobre meus braços dobrados na mesa, fechando meus olhos. Ainda

consigo ouvir passos seguindo para fora da sala, assim como cadeiras sendo

arrastadas e conversas nos corredores.

Há algum tempo, quando eu

não tinha uma terapeuta com quem conversas ou amigos para compartilhar boa

parte do tempo, esperava que toda a escola se esvaziasse por completo, para

então eu poder seguir para minha casa. Não havia David para me distrair ou

esperar e nem Helena para me proteger. Apenas eu, um garoto solitário e

problemático; além do zelador, que ansiava minha saída para trancar toda

escola.

Agora percebo o quão inconveniente

eu me tornara nesses últimos anos.

Minutos depois, sinto um

toque em meu ombro, me despertando. David. Pelo visto ninguém mais está por perto,

apenas o professor, Edgar, que está sentado, com uma pilha de papéis em cima da

mesa. Ajeita os óculos na ponta do nariz e encara meus olhos por algum tempo.

— O que estão esperando?

— pergunta ele, olhando de um lado para o outro. Sua voz se mantém suave,

apesar de tudo. — Se não me engano, o sinal soou tem dez minutos. — Confere o

relógio no pulso.

Penso em respondê-lo, mas

tudo o que consigo fazer é imaginar o diálogo acontecendo em minha mente: eu

dizendo que está tudo bem e pegando minha mochila do chão, levantando-me com um

sorriso no rosto, enquanto invento uma desculpa, alegando que precisava apenas

de um tempo para respirar.

Lamento por tudo não

passar de devaneios diários.

Ele continua olhando

diretamente para mim, e eu em silêncio, sentindo minha garganta se apertar cada

vez mais.

— Não se preocupem —

responde Edgar por fim, provavelmente sem entender minha falta de resposta. —

Podem ficar o tempo que quiserem. Como costumo dizer, o tempo de estudo nunca é

o suficiente.

— Não é isso. É que o

Caio não... — começa David bem atrás mim, mas, sabendo que eu não gosto que

toque nesse assunto, não termina a frase. Ninguém precisa saber que tem um

esquisitão sentado na primeira cadeira, muito menos um professor que passará

todo o restante do ano comigo.

Sem responder, temendo

que mais perguntas possam ocorrer em minha direção, pego minha mochila e me

ponho de pé. Encaro o professor por um rápido instante antes de mirar o chão

abaixo de mim, seguindo para fora da sala. Escuto David fazer o mesmo,

empurrando a cadeira para trás.

— Desculpe — diz ele para

Edgar, que parece não entender absolutamente nada. — Caio, espera!

Merda.

— Caio! — David corre

para me ajudar. É assim que ele costuma fazer quando algo sai do controle.

Ignoro seu chamado e

cruzo o corredor, saindo pela porta da frente em questão de segundos, descendo

os poucos degraus da entrada. Não está um dia tão quente assim, mas sinto todo

meu corpo suar.

Meus passos continuam

apressados, enquanto minha cabeça se mantém curvada. Eu sabia que não era uma

boa ideia sair de casa. Nunca é uma boa ideia.

— Caio!

Alunos, ainda que poucos,

se mantém presentes, em pequenos grupos ou sentados nos bancos ao redor da

escola, repassando tudo o que aprendeu. Posso observá-los com o canto do olho e

senti-los olhando para mim.

— Caio!

Sem me dar conta do

caminho que estou seguindo, sinto uma pontada de dor atingir minha testa, assim

que meu corpo se choca com alguém. Percebo livros e cadernos caírem no chão.

Merda!

— Ai, que droga! O que

foi isso? Olha por onde anda, idiota. — Uma voz feminina ecoa em minha direção,

alta o suficiente para me deixar envergonhado. — Perdeu a visão, foi?

Ergo minha cabeça, que

continua doendo, enxergando olhos verdes, no mesmo tom que o colar em seu

pescoço. Suas sobrancelhas estão juntas, demonstrando evidentes sinais de

raiva.

Minha boca se abre, e, obviamente,

não digo nada. É uma garota que está em minha frente. Uma garota extremamente

enfurecida por eu ter batido com tudo em seu corpo, principalmente por ter derrubado

todos os seus materiais escolares.

Mais uma vez me imagino

pedindo desculpas e me ajoelhando para ajudá-la, dizendo que foi tudo culpa

minha. Mas não é o que faço.

— Perdeu alguma coisa? —

diz ela, arregalando os olhos em minha direção.

Espera,

quanto tempo eu passei encarando essa garota?

Ignoro suas perguntas e,

engolindo em seco, retorno meus passos.

— Ei, espera! — David

continua me chamando, agora próximo o suficiente para me alcançar. Aperto meus

passos e me afasto rapidamente. — Caio!

Minutos depois, cansado

de ter meu nome sendo pronunciado e com pena do meu amigo precisar me

acompanhar, interrompo meu caminhar. Estou cansado, mas não tanto quanto o

garoto atrás de mim. Posso escutar sua respiração ofegante.

Ergo minha cabeça e

constato que estamos sozinhos, sem estudantes. Meu corpo mais suado do que

deveria.

Respiro fundo.

— O que foi isso? Eu

pensei que houvesse alguma melhora em suas atitudes. — Parece raivoso e exausto

ao mesmo tempo. Apoia suas duas mãos nos joelhos e puxa o ar fortemente. — Você

não corre desse jeito desde...

Não completa. Eu o encaro

por um instante antes de desviar o olhar e encarar o chão mais uma vez. Mesmo

sendo meu amigo, eu ainda me sinto desconfortável tendo que encará-lo nos

olhos. O mesmo ocorre com minha mãe, pai e irmã. Não importa o tempo de convívio,

não importa o quão íntimo eu me torne, parece que jamais conseguirei encarar

alguém nos olhos sem medo ou receio.

David está completamente

exausto, com a testa pingando de suor.

— Eu só... — Não encontro

palavras capaz de descrever o que acabou de acontecer.

— Era apenas um professor,

Caio — diz ele, percebendo meu repentino silêncio. — Ele fez perguntas, porque

é isso que professores fazem. E você... Fugiu. Simplesmente fugiu! E depois

atropelou aquela garota sem perguntar se precisava de ajuda.

Por fim consegue se

reerguer, ainda com o peito subindo e descendo sem parar. Sabendo o que virá em

seguida, eu giro sobre meus calcanhares e volto com meus passos apressados. No

entanto, uma mão segura meu ombro, impedindo de continuar da forma que eu

pretendia.

— Nada disso. Agora irá

me explicar o que aconteceu.

Estou de costas para David,

sentindo o meu coração martelar no peito. Cansaço? Bem, aparentemente não.

Correr era um dos meus hobbies favoritos. Gostava da sensação, quando o despertador me acordava cinco horas da

manhã e me obrigava a levantar da cama. O céu escuro, rua silenciosa e frio

penetrante. Sentia como se estivesse vivo, em meio a tanto caos da mente.

— Eu não estou pronto —

digo por fim, inspirando o ar em volta.

— Não está pronto? — Parece

incrédulo. Não posso culpá-lo. — São só... pessoas, cara.

Viro-me para rebatê-lo.

Mas logo meus olhos se abaixam, não suportando seus olhos escuros diretos em

mim.

— E acha que não sei

disso?

Um breve silêncio se faz

presente. Não gosto de discussões em locais públicos. Algumas pessoas podem

estar presentes agora, observando toda a cena das janelas ou espreitando em

portas. Esse pensamento faz minha garganta se fechar por um segundo.

— E suas terapias?

Um curto sorriso surge em

meus lábios.

— Não é como se fosse um

curandeiro, e você sabe disso. Ela conversa, eu converso, mas não... é o

suficiente. Eu não estou pronto. Não posso ir às aulas. E você também não vai

querer ficar até depois do horário. Quer ter seus momentos, conversar com

pessoas no refeitório...

— Opa! Pode parando aí,

cidadão. Como assim não vou querer? Acha que quero ir para casa cedo e

conversar no refeitório com milhares de pessoas e mostrar o quão popular eu

sou? Não esquece que sou tão nerd quanto você.

— Mas...

— Não tem “mas”, cara. —

Ergo minha cabeça. Ele está perto de mim, talvez dois ou três passos de

distância. Evito desviar o olhar. — Não é tão fácil como você deve imaginar.

Temos problemas também, sabia? Só porque você não consegue conviver com pessoas

te olhando, não quer dizer que para nós seja menos complicado.

— Mas vocês não se

importam se te olham ou não.

— Não exatamente. A

questão é que aceitamos que não somos diferentes de ninguém. Até eu fico

constrangido às vezes, e você já viu minha beleza? É surreal. Pessoas me amam e

se apaixonam com um simples olhar, e nem por isso sou o cara mais confiante do

mundo.

Acho graça em seu senso

de humor, mas nenhum sorriso se abre em meu rosto. Não quero mostrar que estou

bem em poucos minutos. Fico em silêncio, escutando o bater do meu coração.

— Então, como vai ser?

Vai fugir feito um garotinho ou vai enfrentar seus problemas como um homem

selvagem que precisa ser? — pergunta ele, erguendo uma das sobrancelhas.

Faz cerca de três minutos

que estamos parados no meio da calçada. Pela décima primeira vez, desde que eu

posso me lembrar, David tenta me ajudar com suas palavras. Não é como se fosse

minha terapeuta ou um psicólogo, mas confesso que por um segundo ou mais, me

sinto motivado, como se eu pudesse mudar o mundo ou salvar uma criança de um

prédio em chamas.

— Fugir, obviamente —

respondo, não conseguindo esconder o riso. — Ou acha mesmo que serei um homem

selvagem?

— Eu confesso que

esperava que dissesse isso. Não consigo imaginar você como novo Tarzan.

Ele também não deixar de

sorrir.

— Me desculpa — sinto o

nervosismo se distanciar de mim, mas sei que sou o culpado por tudo o que

aconteceu. — Eu não... bem... você sabe. Passei um mês sem conhecer pessoas,

então... acho que acabei me desacostumando mais do que eu esperava.

— Não esquenta com isso.

Tenta não sair correndo na próxima vez. Não tenho esse ritmo todo. E também,

como eu disse, são só pessoas, elas não vão te engolir vivo por responder uma

pergunta.

— Vou tentar — concordo

com a cabeça.

David sorri em minha

direção.

— E era bem bonita.

— Quem?

— A garota que você

bateu.

— Ah. Eu não percebi.

— Não vai me enganar

assim, mocinho.

***

— E então, como se saiu

hoje, filho?

Não é uma pergunta que eu

gostaria de responder. Sendo assim, ignoro minha mãe e subo para o meu quarto,

jogando minha mochila em um canto qualquer. Retiro os sapatos e os deixo

jogados no chão, enquanto sigo para minha cama.

Escuto o barulho dos

passos pesados de minha mãe, como um robô marchando em ritmo lento. Suspiro,

observando o teto acima de mim. Branco e entediante. Costumava passar horas

encarando esse pedaço de gesso, perdido em pensamentos involuntários e

perigosos.

A porta se abre. Seu

perfume surge no ar. Adocicado. Sei o que virá em seguida. Perguntas.

Fecho meus olhos.

Ela senta perto de mim,

afundando boa parte do colchão.

— O que aconteceu, filho?

Uma mãe preocupada não é

exatamente o sinônimo de perfeição. Por muitas vezes, quando necessito de

solitude e devaneios, uma pergunta, seja direta ou não, atrapalha no meu

raciocínio. Só gostaria de fechar meus olhos, imaginar uma vida perfeita, e

esquecer tudo o que vivenciei por hoje.

Porém, ela não irá embora.

Não tão cedo assim. Sempre exige uma resposta.

— Nada — digo.

Um suspiro surge no ar.

Meus olhos se abrem.

— Então não saiu como

deveria, não é? — pergunta minha mãe, mantendo suavidade em seu tom de voz.

Imagens surgem em minha

mente. Os olhos dos alunos fixos em mim; meus passos apressados; bolinha de

papel; apelidos idiotas e agressivos; racismo; fuga inesperada; garota...

— Não, não saiu como

deveria — respondo. — Mas acho que saiu como imaginei que fosse.

— O que aconteceu de tão

ruim assim?

— Não consigo, mãe. Não

sou como você, que passa horas encarando uma pessoa.

— A boca de uma pessoa,

na verdade — ela sorri.

— Não é tão fácil assim,

sabe? O professor me olhou nos olhos e eu não tive reação. Parecia que eu

estava me apequenando, como um homem-formiga. Eu sentia minhas mãos tremerem,

minhas pernas, meus lábios... — Respiro profundamente o ar em volta. — Então me

levantei e corri, literalmente. Abaixei minha cabeça e nem sequer olhei para

frente. Até bati em uma garota sem querer.

— Então não foi tudo tão

ruim assim.

— Mãe. — Um sorriso involuntário

se abre.

— Olha, filho. — Ajeita o

corpo na cama, se aproximando de mim. — Sei que não parece ser fácil para um

garoto da sua idade sofrer de transtorno de ansiedade, muito menos se vier

acompanhado de fobia social. Você está se saindo bem, se parar para pensar.

Muito melhor do que estava há três ou quatro anos.

— Não sei. Uma hora

parece que sou capaz de caminhar e conversar com pessoas. E outras... Bem,

parece que sou tão pequeno e tão inferior, que não me sinto digno de trocar olhares

com elas. Por isso eu... você sabe, eu fujo.

— Se lembra de quando não

conseguia se abrir nem para sua própria mãe? — pergunta ela. — Eu ficava aqui e

você me mandava embora, dizendo que estava tudo bem. Mas eu sabia que não

estava. Veja agora. — Olho em seus olhos por um segundo. — Você está aqui,

dizendo o que aconteceu com você e conversando, algo que nunca ocorreu antes.

Então eu vejo como um progresso. Você aceitando ou não. — Seus dentes se

mostram visíveis, por causa do grande sorriso que se estende em seu rosto.

Enxergo o teto acima de

mim. Pequenas rachaduras marcam em sua superfície, como cicatrizes deixadas

pelo tempo. Não sinto mais o perfume que se espalhava no ar. Dessa vez, noto

que um vento fresco atinge meu corpo. Não está um dia quente, tampouco frio.

Apenas calmo. Como um fim de tarde em uma praia deserta.

— Deixarei você sozinho

agora. Espero que não pense demais, sabe perfeitamente que apenas te fará mal.

Imagine como uma grande corrida repleta de obstáculos, só porque caiu em uma

barreira, não quer dizer que não chegará ao fim.

— Diana, palestrante

motivacional.

— Não me venha com isso.

— Ela sorri. — Agora trate de descansar e depois desça para comer algo. Hoje

não ficarei tanto tempo em casa, tenho clientes e o tempo será longo. Seu pai

deve chegar em poucas horas, então espero que fique bem, filho.

Coloca-se de pé, fazendo

um estalo em seus joelhos. Sei perfeitamente que não está em uma idade saudável

para movimentos rápidos. Sua pele está enrugada, seu cabelo demonstra indícios

de branquidão e sua respiração se mostra falha em boa parte do dia. Porém, é uma

mulher forte. E não será um estalo no joelho que a fará desistir.

Novamente estou só, como

passei boa parte das minhas férias. Uma vez ou outra, em finais de semana,

recebia David ou Helena em minha casa. Passamos algumas longas horas jogando

videogame, perdidos entre realidade e simulação.

Caminho até a TV que fica

em frente à cama e coloco meu jogo preferido: Matando Dinossauros.

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