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ENCONTRO MARCADO

Capítulo 1

ELE ACORDOU ÀS cinco e meia. Um pouco atordoado, olhava fixo para o teto azul céu. O sonho aconteceu de novo, pensou. Com aquela mesma sensação: não sabe quando foi a última vez, mas sabe que já tinha sonhado antes. Dessa vez seria diferente. Hugo acendeu o abajur, sentado na cama. Na mesa de cabeceira, pegou a agenda e a caneta. Começou a escrever:

Tenho certeza que já sonhei com isso antes. Só não me lembro quando foi a última vez. Quando tento lembrar, é como se tivesse um buraco na minha memória. Como se essa parte dela tivesse sido sugada. Mas eu sei que esse mesmo sonho estava lá. É bizarro. Surreal. Eu estava numa sala de interrogatório, no cantinho fazendo a transcrição. Nessa sala tem uma única luz fluorescente no teto, daquelas que lembra um pouco aquelas séries policiais. De repente, um homem alto e branco abre a porta e fica na soleira. No sonho, eu fico estático. Sem reação. O cara pegou todo mundo de surpresa. Ele tinha cara de ser investigador, já que usava um distintivo. E trazia consigo um envelope branco tamanho A4 na mão. Nossos olhos se cruzaram. Daí eu acordo, tipo agora.

Hugo bateu com a caneta na folha, como quem tenta desbloquear a memória. Sem sucesso. Soltando ar, deixou a agenda com a caneta de lado. O sono já havia passado e, como conhecia a si mesmo, não valia a pena tentar dormir de novo. Levantou-se da cama. Abrindo um pouco a cortina, viu que o céu já estava claro.

No automático, tirou o samba-canção e se cobriu com a toalha rumo ao chuveiro.

Enquanto deixava a água cair pelo corpo, Hugo questionava o quanto era difícil a mente humana recuperar os sonhos da mesma forma nítida que aconteceu. Lembrou-se de ter assistido a um episódio de Black Mirror — aquele que o cara fica rebobinando memórias através de um dispositivo subcutâneo. Através dele, descobre uma traição da mulher e que não é o verdadeiro pai da menina.

Isso poderia acontecer também com os sonhos. Assim que a gente acordasse, um arquivo de vídeo estaria salvo neste dispositivo — cujo acesso seria pelo mini controle touch. Hugo viajava nessas ideias enquanto massageava os cabelos com shampoo.

Já que não existe até o momento essa tecnologia toda, ele teria que recorrer ao caderninho de anotações que deixava sempre ao lado da cama. É um quebra cabeça complicado: tentar descobrir exatamente quantas vezes tivera o mesmo sonho. É algo que o deixou intrigado.

Ele deixou a imaginação fértil de lado, cobrindo uma toalha na cintura — enquanto usava a outra pra secar o cabelo, olhando-se no espelho.

...****************...

TOMANDO CAFÉ SOZINHO, o celular tocou. Era Chiara, psiquiatra forense e sua melhor amiga. Hugo atendeu:

— Diga, meu amor.

— Bom dia, querido. Quanto tempo…

— Bom dia… Verdade. Como você tá?

— Tô bem. E você? Sumido…

— Estou aqui de folga. Finalmente.

— E está fazendo o quê neste dia de folga?

— Acabando a primeira refeição do dia — ele bebeu um gole de café. — E você?

— A fim de dar um rolezinho na praia. Vamo?

— Hum…

— Não aceito “não” como resposta.

— Eu não falei nada — Hugo riu.

— Garoto, a gente não se vê há um tempinho. Larga de ser bobo e vem me ver! — Brincou ela.

— Eu tinha planejado um dia bem preguiçoso aqui…

— Deixa pra ser preguiçoso mais tarde. É só uma manhã de praia. Vai fazer bem.

Chiara não desiste. Hugo sabia. Vencido, disse:

— Onde e que horas.

— No Leblon, às nove. Beijo! — Ela desligou.

— Beijo — Hugo balançou a cabeça para os lados, rindo. — Maluca.

...****************...

— VOCÊ VEM TOMAR café, filho? — Carmem entreabriu a porta do quadro de Pedro Henrique, que também acordou cedo.

— Tô indo, mãe — voltou a digitar no laptop. — Tô adiantando aqui algumas coisas antes de começar o dia de fato.

— Só não demora, hein. Bom dia — ela soprou um beijo.

— Bom dia — ele retribuiu o beijo de longe.

Desde que recebeu o caso de uma jovem desaparecida sob circunstâncias suspeitas, o faro de Pedro Henrique apontou para o Tráfico Internacional de Pessoas. Ele acordou antes do galo a fim de mergulhar nas pesquisas. As testemunhas vão dar os depoimentos mais tarde e ele precisa reunir pistas que podem ser cruciais. Trabalha como investigador na Polícia Federal de São Paulo há oito anos.

Esse tipo de tráfico rende mais de 30 bilhões de dólares por ano, atentou-se. Um negócio lucrativo, mas desumano. Continuou descendo a barra de rolagem, lendo outro artigo. Quanto mais ele lia, mais anotava no bloquinho de notas — escrevia sempre à mão.

...****************...

— BOM DIA, FAMÍLIA. — Pedro sentou-se à mesa, já servindo o próprio café da manhã.

— Acordou cedo, filho — Osvaldo ofereceu queijo coalho pra ele.

— Tive que madrugar, pai. Comer um pouquinho e continuar na Delegacia. Dia cheio.

— Caso novo?

— Desaparecimento.

— Credo — disse Carmem. — Viver em São Paulo não tá nada fácil, gente.

— Antes fosse, mãe. A garota não sumiu aqui.

— Não?

— Viajou a trabalho. Faz três dias que não dá notícia. Não liga, não manda mensagem e nem entra em rede social. Nada. Tô estudando algumas possibilidades.

— Minha nossa — Carmem ficou perplexa, mas se recompôs dizendo: — Tomara que dê tudo certo, então. Imagino como tá a mãe dessa menina…

— Tão em desespero. A família, amigos… Todo mundo.

— É de se imaginar. Ela é nova?

— Vinte e seis anos.

— Quase a sua idade. Gente…

— Daqui a pouco vou ouvir as testemunhas — Pedro levou a xícara de café até a boca.

...****************...

— ADOREI QUE VOCÊ VEIO... — Chiara deu um abraço em Hugo. Eles marcaram de se encontrar na praia do Leblon.


— Nunca mais tinha passado por aqui – comentou Hugo, olhando pro monte de areia e o mar que ficava um pouco depois.


— Eu também – Chiara levantou os óculos escuros. – Faz um tempinho que não sei o que é praia.


— Como você tá?


— Tô seguindo com a vida, até então. Trabalho, correria... E você?


— Trabalho, correria... – Hugo imitou o tom dela, sorrindo.


— Seu besta – Chiara riu, tapeando o ombro dele de leve. – E aí, a gente vai ficar numa barraca por aqui mesmo?


— Por mim, tá ótimo – Hugo deu de ombros.


 Eles seguiram até uma barraca vazia. Ninguém tinha ficado ali. Até porque o Leblon estava muito tranquilo antes das dez da manhã – o que era estranho. Hugo seguiu andando com Chiara até que congelou, ao olhar para a última pessoa que queria ver no mundo. Ele estava logo ali, de sunga e óculos escuros. Seguindo a vida. Como se nada tivesse acontecido. Como se ele não tivesse feito nada daquilo contra Hugo.

Hugo ficou paralisado ali.


— Que foi? – Chiara franziu a testa, surpresa. Ela olhou na mesma direção de Hugo e entendeu.


— Meu... – Ele soltou o ar. – Vamos embora daqui.

Capítulo 2

— FOI MAL, AMIGA. — Hugo e Chiara alugaram uma barraca em Ipanema. Chiara bebeu um gole da caipiroska de limão.

— Relaxa, amigo. Eu sei que tu ficou desconfortável em ver aquele dito-cujo lá. Inominável.

— Pois é — ele soltou o ar.

— Ele fica sempre por ali?

— Se ficar, nunca mais piso por lá.

— Credo… — Chiara se apressou em completar: — Não pelo que você disse, mas… Ele falou que não ia embora daqui?

— Era pra ele estar longe daqui. Bem longe.

— Quando vocês terminaram… — ela tomava cuidado ao escolher as palavras, abordar o assunto. — Quando cada um seguiu a própria vida, a outra criatura não tinha viajado dias depois…?

— Realmente pensei que tivesse viajado. Talvez tenha viajado. — Hugo fez uma pausa. — Até que aconteceu o que aconteceu hoje.

— Não queria ter recomendado o Leblon como primeira opção.

— Você não tem culpa — Hugo olhou Chiara nos olhos. — Não precisa se sentir assim. Isso foge do nosso controle.

— Verdade. Mas ficou um clima pesado… Não ficou?

Hugo bebeu um longo gole da caipiroska.

— Não — sorriu, colocando o copo quase vazio na mesinha. — Não ficou. Agora vamos falar um pouco mais de você, que tal? Quero saber como anda a senhora…

— Senhora? — Chiara levantou uma sobrancelha.

— Sim, senhora! — Hugo riu. — Eu sei que você foi pedida em casamento pela Vanessa…

— Foi do nada, sabia?

— Eu sabia. Vanessa é a última romântica do mundo — Hugo brincou.

— Nisso eu preciso concordar… — Chiara riu.

Eles continuaram conversando sobre o pós noivado.

...****************...

— ELE ME PAGA. — Aron jogava vôlei com mais três rapazes. Um deles era seu amigo e sua dupla: David. Antes de defender a bola, o rapaz comenta:

— Por que insiste nisso, cara?

Aron parou, encarando-o. Nisso, ele perdeu a bola. Os dois rapazes do outro lado fizeram um sinal, encerrando a partida.

— Você acha que vou deixar barato aquele dia? Fez a polícia me escoltar do apartamento dele…

— Mas aí você fez besteira — David deu de ombros. — Não quis aceitar o término da relação e jogou um vaso que quase acertou na cabeça dele.

— Se tivesse acertado…

— Cê tá brincando, né?

— Não.

Houve um breve momento de silêncio constrangedor.

— Seria bem pior se tivesse acertado — David disse.

— Quem garante… Eu acertaria um vaso. Depois outro… Daí eu fugiria. Quem ia me achar?

— Eu realmente não acredito que você não esteja brincando — David deu uma risadinha nervosa.

— Nunca falei tão sério.

A frieza na voz de Aron — e a naturalidade de como falava todo esse absurdo — deixou David sem reação. Os dois mal se viam e aquela partida de vôlei na praia foi só uma oportunidade aleatória. David se lembrou e entendeu o motivo de não conviver tanto com ele.

— Vou indo nessa.

— Cansou? — Aron riu, com escárnio.

— Cansei.

— Então vai, fracote.

David retribuiu apenas um soquinho com a mão e seguiu andando. Tentou não seguir a passos rápidos. Não reconhecia mais o cara que um dia já foi seu amigo. Ou será que não o conhecia de verdade?

...****************...

— BOM DIA, P. H. — cumprimentou Alex, que sentou-se na quina da sua mesa e segurava uma caneca cheia de café. Esse era o apelido de Pedro dentro da delegacia.

— Bom dia… — Pedro só olhou para o homem ali uma vez, enquanto digitava com ritmo no computador. — Tô aqui arquivando algumas coisas….

— Deixa esse trabalho pro escrivão.

— Que nada. Coisa boba. Eu mesmo faço.

— Hum — Alex deu de ombros.

— Mas me conta…

— Contar o quê? — Alex pousou a caneca na mesa de Pedro, franzindo a testa pra ele.

— Alguma novidade sobre o caso?

— As testemunhas devem dar o depoimento hoje. Com isso, a gente consegue algum progresso nesse caso.

— Tomara — Pedro soltou o ar. — Me parece um negócio complicado de ser resolvido.

— Tomara que apenas se pareça mesmo. — Alex ficou em pé. — Daqui a pouco chega a hora de alguém vir aqui prestar depoimento.

— Tá bom.

— Tem café fresquinho na copa. Cuida em pegar.

Com isso, Alex saiu.

— Tá.

...****************...

HUGO VOLTOU DO MAR. Sentou-se na espreguiçadeira, com os óculos escuros. Tinha pedido só mais um drink, bebendo o primeiro gole.

— O mar tá uma delícia — comentou.

Chiara olhava o horizonte.

— Tá mesmo.

Houve um momento de silêncio. Chiara bebeu mais um gole da caipiroska. Colocou o chapéu na cabeça e, soltando o ar, começou a tocar no assunto:

— Amigo.

— Diga.

— Pode me responder uma pergunta?

— Posso. Só não garanto se a resposta será satisfatória — brincou Hugo.

— Mas é sério, garoto.

Hugo soltou o ar.

— Tá bom. Pergunte-me o que se passa nessa mente de titânio…

— Você tá bem? De verdade.

Ele ficou em silêncio. Franziu o cenho.

— Amiga… — ele se ajeitou na espreguiçadeira — Eu tô aprendendo a administrar esse trauma. Você está sozinho em casa de boa e, do nada, seu ex-namorado invade o seu espaço e diz que vai te matar. Esse mesmo ex-namorado joga um vaso grande de porcelana no seu espelho, quase acertando a sua cabeça… Enfim. Você, do nada, vai vendo a vida passando como um filme diante dos seus olhos enquanto ele continua te perseguindo com um objeto cortante… Insistindo em colocar um fim na tua vida… Enfim. — Hugo soltou o ar e concluiu: — É babado. Pesado, até.

Chiara ficou em silêncio. Mesmo ela tendo vivido aquele dia fatídico com Hugo — ela o acompanhou para registrar queixa na delegacia —, ainda fica chocada.

— Você voltou pra terapia?

— Não. Ainda não.

— Eu também tô em falta… — Chiara decidiu mudar de assunto. Não queria transformar aquela conversa numa sessão. Muito menos Hugo, claro. Completou: — Enquanto não tiver um dia marcado na agenda da minha psicóloga… Vou esquecer meus problemas com mais um drink.

— Então somos dois — Bruno levantou o copo de caipiroska vazio. Acenou para o rapaz do quiosque — Aê, meu querido, me vê mais dois desses aqui.

— Um dia de folga regado a álcool não faz mal a ninguém — Chiara bebeu o resto do drink.

— Eu que o diga.

...****************...

ELE JÁ OUVIU a primeira testemunha. Foi uma das amigas mais próximas de Janine, a moça que desapareceu no exterior. A moça disse que Janine havia recebido uma proposta para trabalhar fora, para receber em euro e poder mandar pra família. Essa moça julgava que não tinha nada de errado e que Janine de fato se daria bem.

Pedro perguntou se a moça já tinha visto a pessoa que fez essa proposta de trabalho para Janine. Como era esperado, a resposta foi negativa.

Como ele não ia conseguir muita coisa, a jovem foi dispensada. Em seguida, a mãe veio prestar depoimento.

— Sua filha não mostrou foto ou conversa dessa pessoa que fez a oferta de emprego?

— Não — a senhora respondeu. — Ela não me mostrou quem era. Me mostrou somente o que era: a proposta. Eu li. Parecia ser muito boa e verídica. Só não conheci quem estava por trás disso. Acreditei que era alguém confiável. Eu poderia ter insistido em conhecer de fato essa pessoa… Ter olhado um retrato só por via das dúvidas…

— Pois é, senhora — Pedro fez muxoxo. — Uma situação bem complicada, mas… Me responde uma coisa: além da moça que veio aqui, ela tinha alguém ainda mais próximo?

— Tem sim, claro. No lugar onde ela trabalhava. Uma tal de Eliza. As duas se conhecem há muito tempo e com certeza Janine deve ter falado mais coisas para ela.

— Você tem o endereço de onde eu possa achar essa Eliza?

— Claro. Vou te repassar…

— Escreve aqui, por favor — Pedro ofereceu um bloquinho com a caneta.

A senhora anotou tudo.

...****************...

O DIA NA PRAIA foi ótimo. Hugo saiu do banho, enrolado numa toalha enquanto secava o cabelo com a outra. Reparou que o relógio marcava seis e meia da tarde. Tudo o que ele quer agora é passar o resto do dia deitado na cama, maratonando uma série qualquer. Amanhã ele estava de volta.

Antes, ele resolveu dar uma olhada no e-mail para saber se estava tudo bem — se não tinha uma mensagem importante que foi ignorada durante o dia todo. Torcia que não. Até que só tinha uma mensagem não lida. Hugo foi pego de surpresa só de ler o assunto:

...OFÍCIO DE TRANSFERÊNCIA...

Capítulo 3

ELE SE OLHAVA no espelho. Estava pronto, de saída. Resolveu dar uma conferida antes de chegar à porta. Escolheu um look all black, apostando na versatilidade. Mexeu no cabelo, com cuidado para não desbotar o penteado. Era uma noite importante. E pegou o celular, mandando uma mensagem para ele:

... Tô descendo. Beijo. ...

Ele respondeu:

...Quase virando a esquina aqui. Vou te esperar. ...

As luzes se apagaram, de repente.

— Que merda é essa…

Ele ouviu dois passos na sua direção. Como estava tudo escuro, não sabia em que direção deveria seguir. Antes mesmo dele calcular uma reação, a luz de uma lanterna mirou-lhe bem no rosto.

— Parado aí — ordenou uma voz robotizada. — Agora.

Hugo não estava sozinho. Teve certeza assim que viu o cano da arma apontado na mesma direção. A única reação instintiva foi erguer as duas mãos.

— Quem mandou você aqui? — Foi a única pergunta que ele conseguiu fazer.

O disparo foi ensurdecedor.

...****************...

HUGO ACORDOU, ASSUSTADO. O relógio marcava uma da manhã. A TV ainda estava ligada. “Você ainda está assistindo?”. Não se lembrava do que assistia na Netflix antes de adormecer. Acendeu o abajur e desligou a TV. Precisava anotar todo e qualquer sonho, lembrou-se. Por mais insignificante que fosse. Aquele pesadelo estava longe de ser. Estava no top 3 dos piores. Pegou o caderninho e a caneta, começando a escrever. Depois que narrou, tentando ser o mais exato possível, começou a descrever sentimentos:

Se eu não morri agora, não morro nunca mais. O coração tá martelando ainda. Pode ser que esse pesadelo tenha relação com o fato de ter visto meu ex na praia do Leblon. Se ele teve a coragem de tentar me matar jogando um vaso grande no espelho e depois correr atrás de mim pelo apartamento usando um pedaço grande e afiado… Eu esperaria esse pior dele. Seria um mau presságio? Sair desse apartamento pra não ter que passar por isso novamente… No sonho, o cômodo era semelhante; o espelho estava no mesmo lugar. A luz incandescente também. Será que essa Transferência não é coisa do destino? Não tenho dúvidas… Ou sou eu que tô assustado demais com esse sonho? Não posso perder a cabeça. Foi só um pesadelo. Na medida que tô colocando tudo no papel, percebo que foi só isso mesmo: um pesadelo. E, como sempre, um pesadelo é esquecido quando você volta a dormir e a memória é ocupada com outro sonho qualquer. Um pesadelo bem realista. Vou encarar como um aviso para me manter longe do inominável.

Ele tentou dormir quando deixou o caderninho de lado com a caneta, mas não conseguiu. Pegou o laptop e abriu o e-mail, para ler melhor o Ofício de Transferência que havia chegado pela tarde, enquanto estava com Chiara. Não é só apenas uma transferência. Hugo foi promovido para atuar como investigador na Polícia Federal. Uma promoção que exige começar do zero.

...*Suas atividades inerentes à função de INVESTIGADOR DA POLÍCIA FEDERAL serão iniciadas na nova unidade, PF — SÃO PAULO - SP, a partir do dia 03 de agosto. É imprescindível o cumprimento da função a partir da data citada. *...

Hugo retorna das férias nesse dia.

...****************...

MAIS UM DIA. Onze da manhã. Pedro Henrique alimentava informações no relatório que precisava entregar para Alex: a respeito dos depoimentos que havia coletado e a pista que vai seguir.

— Com licença — Alex entrou na sala dele.

— Pensando no Diabo… — Pedro brincou. — Finalizei o relatório e acabei de enviar pro teu e-mail. Era sobre isso?

— Não, mas obrigado.

— Então é o quê? — Pedro cruzou as mãos sobre a mesa. — Alguma novidade?

Alex sentou-se na cadeira, de frente para o rapaz.

— Você vai trabalhar de dupla nesse caso — disse.

— Uau.

— Ele vem do Rio. Acabou de ser promovido. Tem um perfil muito bom.

— Já andou avaliando, foi? — Pedro voltou a digitar no computador.

— Era necessário. Enfim… Ele começa mês que vem. Foi entregue o Ofício de Transferência e ele deve estar, neste momento, organizando a vida dele por lá para vir morar aqui.

— Vocês não tem vergonha de mudar a vida do rapaz assim tão de repente…? — O tom de Pedro foi seco e ao mesmo tempo irônico.

— Ossos do ofício, meu chapa — Alex bebeu um gole longo de café.

Pedro franziu a testa, olhando o Delegado. Censurou num tom de brincadeira:

— Você não tem medo de ter uma overdose, não? É a quinta caneca antes do meio-dia.

— O medo que eu tenho é de não poder tomar um gole sequer disso aqui — ergueu a caneca preto e branco, como quem indica. Levantou-se. — Só vim trazer esse recado.

— Tá bom. Tchau.

— Vai sair? — Alex ergueu uma sobrancelha, com a porta entreaberta.

— Daqui a pouco. Vou almoçar e seguir uma pista. Não necessariamente nessa ordem…

— Bom garoto.

Alex fechou a porta.

...****************...

— TRANSFERÊNCIA? — CHIARA FICOU surpresa quando Hugo anunciou o Ofício que recebeu por e-mail. Eles estavam juntos no bistrô, almoçando.

— Sim, garota. Fui olhar a caixa de entrada como quem não queria nada… Mentira, queria sim — emendou num tom de brincadeira, rindo. — Só queria saber se tinha algo importante, porque né... Daí eu li o nome Ofício enorme. Fiquei sem saber o que fazer da minha vida durante cinco minutos.

— E eu pensei que a promoção era por aqui mesmo. Que você continuaria por aqui, trabalhando. — Chiara franziu a testa.

— Também pensei — Hugo deu de ombros. — Mas já que eu aceitei, não vou fugir da raia. Ser investigador foi algo que andei querendo nesses últimos anos.

— Chega de ser escrivão, né?

— Chega mesmo.

— Mas, e aí, já pensou no que vai fazer com o apê… os móveis…?

— Uma parte eu levo comigo. A outra parte vou ter que me desfazer, e vai ser vendendo as coisas.

— Praticamente vai ter que começar tudo do zero hein, amigo…

— Pois é — Hugo olhou para o nada. — E ainda tenho as férias que vão começar logo neste fim de semana.

— Mudou alguma coisa?

— Não. Graças a Deus.

— Ainda bem, né.

— Eu só preciso de, pelo menos, quinze dias. Somente. Porque eu tô com um leve pressentimento de que vão interromper.

— Por quê?

— Parece que tem um caso novo aí. Polêmico.

— Hum… — Chiara bebeu um gole de suco. — Conta mais.

Hugo pousou os braços sobre a mesa, aproximando-se melhor.

— Tráfico Internacional de Pessoas — cochichou.

— Passada. Aqui no Brasil?

— Vou descobrir melhor quando chegar lá — Hugo deu uma risadinha. — César não quis me contar muitos detalhes. Mas andei sabendo só isso mesmo. Cheguei de manhã para conversar sobre o Ofício e ele me adiantou pouca coisa. Disse que ia continuar a conversa depois do almoço.

— Ele quer conversar com mais calma — Chiara deu de ombros. — Pra te contar os detalhes. É um caso realmente polêmico. Se for aqui no Brasil, então…

— Vamos ver mais tarde.

Houve um breve momento de silêncio.

— Já achou o novo apê em São Paulo?

— E se eu te disser que achei logo de cara? — Hugo pegou o celular, abrindo um app. — Vou te mostrar as fotos…

...****************...

HUGO RESOLVEU PASSAR em casa. Com tempo de sobra, aproveitou para checar os anúncios que publicou no site de Compra & Venda na internet. Ele vai entregar o apartamento neste fim de semana — no sábado.

Passeando pela sala, olhou para boa parte das suas coisas que já estavam encaixotadas. O caminhão de frete vai buscar tudo amanhã — as coisas que ele não vai precisar. Fez a mala de viagem para as férias, deixou algumas roupas para continuar vestindo… Enfim. Uma loucura que ele precisou gerenciar. No fim, estava dando certo.

Sentou-se no chão de madeira, com o celular na mão, só imaginando os bons momentos que viveu no seu apartamento: a motivação por trás da mudança; o momento que conheceu o espaço pela primeira vez; o fechamento de contrato; o recebimento das chaves; a pequena inauguração que fizera com poucos amigos; o espaço sendo ocupado aos poucos com as suas coisas.

O primeiro lugar que ele conseguiu chamar de seu.

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