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Entre O Amor E A Razão

Heloísa

Saio do hospital com hematomas por todo meu corpo e o meu rosto está desfigurado. São consequências de um casamento mal feito e anos de negligência da minha parte por nunca ter tomado uma decisão mais séria e seguido nossas vidas por rumos diferentes.

Todas as vezes que ele me batia ou me ofendia de alguma forma eu o perdoava, ele dizia que era por causa da bebida ou por ele ter tido algum problema no trabalho. Ele nunca assumiu seus erros e a culpada sempre fui eu. Uma mentira contada muitas vezes vira uma verdade.

Eu sempre pensei que a culpa era minha e que eu deveria fazer dar certo porque um casamento é para a vida toda e a mulher tem que se sujeitar a muitas coisas por honra, filhos e amor, esquecendo que a minha felicidade e o meu bem estar vem em primeiro lugar, sempre.

Meu nome é Heloísa Amaral, sou professora em uma rede de ensino particular, tenho trinta e nove anos e dediquei vinte um anos da minha vida ao meu marido César e aos meus dois filhos: Lucas de de dezenove e Elisa de vinte. Sinto que tudo que fiz foi um erro, começando ter casado muito nova e em seguida ter dois filhos um atrás do outro. Ninguém me falou das lutas e dificuldades que era a maternidade, essa mania de romantizar tudo que as pessoas tem, esquecem que ser mãe não vem com manual de instrução e que nós também erramos, principalmente quando esquecemos de nossas vidas para vivermos as deles.

Depois da primeira gestação engordei vinte quilos passando do manequim trinta e oito para o quarenta e seis, pensei que fosse normal, engordei muito na gravidez, fiquei cheia de estrias e o corpo com o tempo volta ao normal, só que não! ...

Um ano e meio depois com o outro filho nos braços e o manequim cinquenta eu desisti de lutar contra a balança. Tenho um metro e setenta e três e cheguei a cento e quinze quilos. Agora vinte anos depois estou com noventa e nove quilos, pressão alta e pré- diabética. Vivendo a maior turbulência da minha vida eu decidi largar tudo, jogar para o alto e mudar de vida. Parece ser irresponsável mas tudo tem um motivo Justo. E o meu é mais que justificável, tem um B O fornecido pela delegacia de mulheres para que ele fique longe de mim no mínimo vinte metros.

Não posso mais continuar ao lado de um homem que me deixou desacordada, sem forças e sem estima alguma.

Eu cheguei do colégio como de costume e passei direto para a cozinha preparar o jantar, Elisa e Lucas chegam da faculdade morrendo de fome e César como sempre não tem horas. Preparo a comida e a deixo na mesa e vou tomar meu banho, pois ainda tenho provas para corrigir.

Ouço o carro entrando na garagem e me apresso pois ele pode querer jantar, visto uma roupa mesmo com o corpo sem secar direito.

__ Helô!... Helô!...

Onde pode estar essa gorda?

Ele fala e ri como se tivesse falado uma piada muito engraçada. Não respondo, apenas apareço a sua frente .

__ Você está aí!... O que fez para o jantar?

__ A comida está na mesa, é só dar uma olhada.

__ Você fez essa porcaria?

A partir desse momento foram somente ofensas, socos e as comidas espalhadas pelo chão. Só me lembro de ter segurado a faca que estava em sua mão quando desmaiei com uma cabeçada.

Acordei no hospital decidida a mudar para sempre, nem que para isso eu tenha que sair da cidade e morar bem longe daqui.

Estou humilhada, cansada e marcada como um animal. A faca passou em meu braço e fez um corte profundo, essa é a marca de que agora não terá mais perdão e nem volta. Eu quero o divórcio e prefiro morar na rua a viver debaixo do mesmo teto com um homem que não me respeita.

Meus filhos aceitaram de irem comigo, apesar de serem independentes financeiramente mas não querem me deixar sozinha.

Por mais que a situação aqui em casa estava insuportável, eu gostava do meu marido. Foram tantas lutas e provações que fui deixando de amá-lo e hoje era só um gostar e agora nem isso.

Eu quero distância de tudo que se refere a ele, não sei para onde eu vou mas tenho a certeza de que é bem longe de tudo que vivi durante todos esses anos.

Colocamos as malas nos carros e nossas coisas pessoais e partimos em três carros, era um comboio indo em direção ao interior. É o lugar que meus filhos escolheram para começarmos uma nova etapa. Viajamos por três horas mas gostaria de irmos para mais longe possível.

Durante o trajeto as lembranças de tudo que passei eram como um filme em minha mente. Eu tinha quinze anos quando conheci César, ele tinha vinte anos e estudava com meu irmão. Ele não me via como uma possível namorada mas eu suspirava por ele que três anos depois caiu de amores por mim na festa de formatura do meu irmão Daniel. Os alunos de engenharia que formavam com honrosa diplomação.

Ficamos juntos no baile e dois dias depois ele foi a minha casa pedir ao meu pai permissão para namorarmos. Um ano depois estávamos casados e a primeira gravidez a caminho, tudo foi tão rápido que o tempo passou e eu não vivi. Nunca fui a praia pois tenho vergonha do meu corpo, não vou a salões de dança pois tenho vergonha e o que me impacta é que muitas vezes não falam meu nome, me chamam pelo apelido " Helô" ou a gordinha que está a sua frente, a gorda... Perdi minha identidade, perdi minha auto estima e perdi o meu tempo com quem não merecia.

Um grande susto

Nossa nova morada é aconchegante mas sem muito conforto, tem um quarto para cada um de nós que já é uma privacidade. As crianças terão que compartilhar o mesmo banheiro, na casa só tem dois banheiros, que para mim já é um luxo.

A cozinha cercada por bancadas é para uma pessoa, a não ser que fique bem apertado ou bem agarrado, como sou grande em proporções se eu entrar todos tem que sair.A sala é grande eu a fiz conjugada com a copa. É uma casa alugada que conseguimos em uma imobiliária pela internet, o caminhão de mudança veio a nossa frente com poucas coisas que conseguimos tirar da antiga morada que construimos juntos com requinte, espaço e muito conforto. Digno de um engenheiro renomado como o César.

Depois de colocarmos as coisas no lugar eu deito um pouco pois a viagem e o desgaste que estou passando fez com que me sentisse um pouco abatida.

Meu braço ainda dói, lateja e me avisa que não tenho que ficar chorando ou triste pelo fim do meu casamento.

Mesmo assim me pego pensando quando foi que tudo começou a desandar?

E por quê chegamos a esse ponto? ...

Eu pensei que seria para a vida toda, nunca me imaginei sem ele, era para vermos nossos netos juntos, hoje não quero vê-lo nem em sonhos e imaginar as humilhações que passei sinto um grande desconforto e me apavoro.

Durmo um sono e acordo com uma forte dor em meu peito e o meu corpo coberto por um suor frio e muita falta de ar.

Com dificuldades chego até a cozinha para pegar uma água. Lucas está na sala assistindo a tevê e Elisa está no quarto.

Minhas vistas escurecem e só ouço meu filho gritando e Elisa ligando para emergência.

Sou levada para o hospital com um princípio de infarto.

Meus filhos choram e estão apavorados.

__ A mãe de vocês terá que fazer alguns exames e ficará internada por no mínimo três dias.

__ Mas doutor, acabamos de chegar na cidade, isso pode ter sido pelo cansaço... Não temos como custear esses exames e o hospital.

Elisa fala apavorada, não temos emprego ainda e nossas economias ficará no hospital pelo visto.

__ Me chamo Davi e não precisam se preocupar, aqui é uma cidade pequena e acolhedora, as pessoas se ajudam mutuamente. E o hospital é público e tudo será custeado pelo setor. Ela precisa apenas ficar aqui quietinha que logo, logo estará em casa.

Sinto que meus filhos ficaram um pouco aliviados, eu já nem tanto. Preciso estar no colégio onde consegui uma vaga de professora substituta por seis meses.

__ Eu sinto muito doutor Davi, mas não posso ficar aqui, eu tenho que me apresentar no colégio daqui a dois dias, é o prazo que me deram para ocupar a vaga.

__ Não se preocupe dona Heloísa, se me obedecer direitinho eu a deixo sair depois dos exames.

Ele percebe que estamos aflitos e que estou muito angustiada.

__ Não me chame de dona, por favor somente Heloísa.

Falo séria pois estou começando uma nova vida e não quero mais ser tratada como uma velha, gorda e desajeitada.

__ Está certo, Heloísa! Agora me conta o que houve com o seu braço?

Ele fala pegando com cuidado em meu braço e retirando o curativo.

Fico sem graça e um nó forma em minha garganta, olho para os meus filhos e. eles saem do quarto já percebendo o constrangimento.

__ Foi uma violência doméstica, meu ex marido...

__ Tudo bem! Já entendi. Agora descansa e vou pedir a enfermeira para fazer um novo curativo e limpar esse ferimento que pode ter sido a causa da sua arritmia.

Ele sai do quarto e meus filhos voltam. Elisa está nervosa e anda de um lado para o outro até que não aguenta e solta o que está lhe incomodando:

__ A senhora não disse a ele que foi meu pai, disse?

__ Calma, Elisa! A mãe está doente.

__ Calma? Essa situação está como está por culpa dela que não fez nada para segurar seu casamento, agora meu pai é visto como um criminoso.

Eu fico sem reação, é a minha filha, que acompanhou de perto tudo que passei nas mãos do seu pai e ainda o defende.

A enfermeira entra no quarto e avisa que eles não podem ficar, Lucas me beija na testa e diz que me ama, Elisa sai sem dizer mais nada, está revoltada pois sempre foi ligada ao pai e apegada a ele, que em tudo a tratava como uma princesa.

César não foi um pai ruim ou ausente, ele ama os filhos e o problema dele é comigo. O relacionamento quando acaba deixa muitas cicatrizes abertas, os filhos sofrem com a separação por fazerem parte do processo e precisam aprender a conviver com o novo rumo que a vida dará a cada um. Eles unem o casal de alguma forma e muitas vezes relevamos os conflitos por causa deles mas chega um ponto em que não dá mais e quando eles são adultos não precisamos mais ter medo de traumas ou revoltas, e não vou me importar com birra de uma mulher feita e continuar morrendo todos os dia ao lado de uma pessoa tóxica e que estava me matando aos poucos.

A enfermeira faz o curativo e pede com carinho que eu descanse e que são ordens do doutor Davi.

Ele é um homem muito bonito aparentando cinquenta anos e com seus cabelos grisalhos e seu olhos verdes e a pele morena e sua barba bem feita. Sua roupa branca parece ter saído da loja de tão bem arrumado, sua esposa deve ser cuidadosa e muito dedicada.

Sou do tipo que julgo o homem bem casado pela roupa bem cuidada pois fui assim uma vida inteira. Por mais que tivéssemos empregada eu sempre cuidei das roupas e coisas pessoais do meu marido e dos meus filhos. Minha mãe me ensinou que a mulher deve ser zelosa e cuidadora.

Solto um ar preso no pulmão... Do que adiantou? Procurou na rua com a desculpa de que não tinha mulher em casa.

Viro meu rosto e no choro encontro o desabafo até dormir.

Vínculo eterno

Acordo com uma mão forte segurando meu pulso, abro meus grandes olhos verdes e vejo os seus parecendo uma folha:

__ Descansou?

Pergunta doutor Davi checando meu pulso e ouvindo meu coração.

__ Sim, descansei! Estou louca para ir para casa.

__ Você poderá ir amanhã, seus exames não estão tão ruins como eu pensei...

Você teve uma arritmia por causa do stress, você está pré diabética e precisa fazer uma dieta urgente se não quiser tomar remédio o resto da vida. Sua pressão subiu, com certeza por causa de sal e pouca água.

__ Eu vou me cuidar, o senhor vai ver.

Depois de ver meus filhos chorando e Lucas desesperado eu preciso pensar nos meus filhos e cuidar mais de mim.

__ Agora volta a dormir, aproveita a estadia e o conforto desse hotel cinco estrelas. kkkk

Realmente não é ruim, tem um certo conforto por ser um hospital.

Não consegui dormir direito, tinha alguém sofrendo muito durante a noite e a família estava chorando no corredor.

Perguntei a enfermeira do que se tratava e me disseram que um fazendeiro havia sofrido um acidente, ele é muito conhecido na cidade.

Sua esposa morreu na hora e ele quebrou a perna e está fora de perigo. Está no quarto ao lado com uma das filhas e está muito abalado.

A enfermeira sai e o doutor Davi entra com minha alta e uma lista quilométrica de cuidados e remédios para minha nova fase.

__ Heloísa! Não quero saber de você chorando ou sofrendo pelo que você passou, agora é daqui para frente e um sorriso lindo nesse rosto. Estou sempre aqui no hospital, se precisar conversar ou se você sentir alguma coisa novamente me procure.

__ O senhor é assim com todos os seus pacientes ou eu tive sorte de além de médico o senhor ser psicólogo?

__ Sou assim com todos e a enfermeira me contou que você dormiu chorando ontem a noite.

Ele fala olhando o corte em meu braço.

__ Esse machucado foi feio, vou te passar uma pomada e daqui oito dias eu tiro os pontos.

__ Estou achando que o senhor está arrumando motivos para me ver novamente. Está com medo de que eu não vá obedecer as ordens médicas?

__ Sim! ... E se não obedecer eu não te socorro mais.

__ Obrigada doutor! Com certeza farei o possível para obedecer.

Ele sai do quarto e a enfermeira me ajuda a levantar da maca e trocar minha roupa enquanto Lucas chega.

Ele fica feliz por me ver melhor e me abraça. Não pergunto por sua irmã, deve estar em casa.

Chego e está tudo arrumado e no maior silêncio:

__ Mãe, eu fiz o almoço e tenho uma entrevista de emprego em uma clínica veterinária aqui da cidade. Se der certo vou poder fazer meu estágio e concluir o curso na cidade vizinha.

__ Nossa! Fico muito feliz por você e onde está sua irmã?

__ Ela saiu cedo, disse que está olhando algumas academias para trabalhar.

Eles estão se ajeitando como podem e amanhã eu também vou me apresentar no colégio.

Tomo um banho para tirar o cheiro do hospital, saio do banho e vejo meu corpo nú no espelho, me sinto enorme, parece que não me vejo a muito tempo.

__ Não me reconheço!

Falo passando a mão na minha barriga flácida e vendo as estrias das pernas e até nos meus seios.

__ Acho que nunca mais terei ninguém na minha vida. Quem vai querer uma pessoa como eu?

As lágrimas teimam em cair e me sinto depressiva. Tenho uma filha formada em educação física que não tem um pingo de paciência para me ajudar com os exercícios, mas não a culpo eu nunca conversei com ela a respeito.

Visto uma roupa larga e saio do quarto ainda abatida, tomo um suco quando vejo Lucas voltando todo eufórico:

__ A senhora não vai acreditar! Fui contratado.

Ele fala me abraçando e beijando meu rosto.

__ Você merece tudo de bom, meu filho. Estou feliz por você.

__ Mas porque a senhora estava chorando?

__ Não é nada! Não precisa se preocupar comigo.

__ Eu me preocupo e não a quero chorando. Chega! Esquece tudo que a senhora passou. Eu tenho certeza que vamos ser felizes aqui e a senhora vai fazer a dieta, vai melhorar sua saúde e ainda vai curtir muito as noites paradas dessa cidade. kkkk

Ele é um filho maravilhoso,deixa minha autoestima nas alturas.

Ele sai novamente e vou arrumar os documentos para apresentar na escola. Ouço a porta abrindo e Elisa entrando com uma cara amuada.

Ela me pede a benção e me beija o rosto. Eu a abençoo e percebo que não deu muito certo sua peregrinação por emprego.

__ Você já almoçou? Seu irmão deixou a comida pronta em cima do fogão.

__ Estou sem fome. Depois eu tomo um suco.

Ela fala sentando ao meu lado, vejo uma lágrima sair dos seus olhos.

__ O que foi, Elisa? Aconteceu alguma coisa?

Mãe não se engana e Sempre se comove com os filhos.

__ Eu acho que fiz o curso errado, tem vagas até para cozinheira nessa cidade mas não tem para educação física.

__ Você já tentou nas escolas?

__ Já! ... Deixei meu currículo nas escolas, academias e até nas padarias e supermercados.

A puxo para um abraço e acalento sua aflição.

__ Não fica assim. Eu começo a trabalhar amanhã e seu irmão também conseguiu trabalho. Daqui a pouco aparece alguma coisa para você fazer e se as coisas apertarem você tem seu pai, ele pode te ajudar.

Ela fica em meus braços e em meio a soluços me pede perdão pelo ocorrido no hospital, eu conheço minha filha e ela está perdida com tantas mudanças. É difícil para mim e para ela está bem pior. Deixou os amigos,o emprego, o pai e todo conforto que tinha.

Ela vai descansar e eu faço uma vitamina para ela.

Mais tarde assisto um filme com os dois onde damos muitas risadas e os trato como crianças, eles parecem estar melhor.

Agora eu tenho que ser o apoio deles e ficar presente para que essa separação não cause mais transtornos na minha família.

Elisa está muito carente e acabou dormindo no meu canto da cama, seus cabelos longos espalhados na cama dá impressão de ter dez anos onde tinha pesadelos e deitava entre eu o César.

Infelizmente tudo me faz lembrar do maldito, é o vínculo eterno que temos, os filhos.

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