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ORLANDO (VOL. 2)

Capítulo 1

...MESES DEPOIS…...

EU TAMBÉM PARTICIPAVA de um momento único — e importante — na vida do meu namorado. Neto foi promovido a capitão da Polícia Militar e, neste momento, está na cerimônia com outros policiais para receber a promoção. Ele estava vestido com a farda branca — e algumas medalhas na lapela —, usando a boina azul marinho. Lindo de doer. Tive que me controlar ao máximo para não gritar de empolgação, mas ele sabia que — por dentro — eu vibrava com essa conquista dele.

Não só por questão de classe. Outras mulheres e familiares estavam ali, do meu lado. Algumas até o conheciam o suficiente para que eu pudesse ouvir o inevitável:

— Quem é aquele menino que está ao lado da mãe do Neto? É um sobrinho? Irmão mais velho? — Uma mulher cochichava para a outra, que olhava para mim sem ao menos disfarçar.

— Que eu saiba, a Helô se divorciou de Neto — a outra comentava ainda olhando para mim. — E ela me contou o motivo.

Helô é a ex mulher do Neto.

— Qual?

Dei um olhar mais duro para a mulher que não parava de me encarar.

— Depois eu te conto — cochichou, voltando a atenção para a cerimônia. — Ele está olhando pra cá.

Voltei a olhar para o meu namorado, que acabou de se tornar capitão. Confesso que o orgulho que sentia não cabia dentro de mim. O brilho nos olhos dele também mexia comigo. Eu o acompanhei de perto o suficiente, durante os seis meses que passamos juntos, para entender o quanto aquela promoção era importante. Fiz questão de participar, claro. Adiantei todos os meus trabalhos para ficar uma semana de folga. Giane aprovou na hora.

Ele e eu comemoraremos aquele momento. Juntos.

Nunca pertenci tanto a alguém, como nunca tive alguém que fazia questão de pertencer a mim.

As inseguranças que eu sentia ao ouvir os comentários maldosos se tornavam pequenos diante do que a gente nutre um pelo outro.

— Está tudo bem, meu filho? — Dona Dita pegou no meu braço, olhando com cadência para mim. — Me parece um pouco chateado. O que aconteceu?

— Nada demais — olhei para as duas mulheres. Ela acompanhou o meu olhar.

— Não liga para essas duas megeras, não — cochichou ela num tom de brincadeira. Tive que sorrir.

Dona Dita, a minha futura sogra — segundo Neto —, é um amor de pessoa. Bastou algumas horas de visita para conquistá-la um pouco. Mas não demorou muito para que ela me considerasse como um filho. Ela pousou os cabelos platinados no meu ombro.

— Elas não gostam do diferente — concluiu. Dita tem sessenta e oito anos e uma mente futurista. Temia pelo filho e com quem se envolvesse com ele. — O importante é que você está aqui, prestigiando uma etapa da vida dele. Nada mais importa.

Verdade. E eu estava feliz.

...…...

DEPOIS DO DISCURSO DE PROMOÇÃO, houve uma sequência de tiros ao alto e gritos de guerra, além da orquestra — com seus instrumentos de sopro — tocando a marcha épica. Foi bonito acompanhar o momento em que os capitães saíam do pequeno palco no meio do campo de treinamento. O pôr do sol brilhava atrás de nós.

Todo mundo se reunia no gramado para tirar fotos, dar cumprimentos e congratulações entre si. Fui em direção ao Neto junto com a Dita, que segurava em volta do meu braço — olhando ao redor do campo.

— É lindo isso aqui, não é? — Disse ela, com empolgação.

— Lindo é aquele ali, também — brinquei, apontando para ele.

Uma das mulheres que cochichavam passou por mim, olhando com desdém. Mas parou, falando com a senhora que estava me acompanhando.

— Dona Dita!

— Solange!

Ah, o nome da mulher de cabelos pretos — e com aparência de meia idade — é Solange. Anotado.

— Como a senhora está? — Perguntou ela. Senti um tom forçado de empolgação.

— Muito bem, obrigada. E você? Cadê Ivone?

— Ah, está logo ali — apontou para a mulher que estava ao meu lado. E elevou a voz: — Ivone! Vem aqui! — Acenou.

Esse encontrinho estava ficando legal…

— Dona Dita! — Ivone, uma mulher loura com olhos castanhos, lembrou-me um pouco a minha mãe com o mesmo olhar de desdém para mim. E continuou: — Estava esperando falar com a senhora por aqui, saber como está se sentindo…

— Eu me sinto ótima, graças a Deus — disse. Pegou no meu braço de volta, surpreendendo o pequeno semicírculo: — Vocês conhecem o meu genro?

As duas ficaram surpresas — os olhos arregalados. Demoraram um pouco para reagir. Confesso que foi uma delícia ver aquilo.

— Que bacana! — Solange reagiu primeiro.

— Sim, bacana! — Ela deu uma batidinha no meu ombro. — Esse menino é de ouro! Melhor ser humano que pude conhecer na vida. Além de meu genro, é meu filho.

Houve um momento de silêncio constrangedor entre as duas.

— A gente precisa sair — disse Dita. — Tchau pra vocês duas!

Nós continuamos o caminho.

E não pude deixar de ouvir:

— Você viu isso, Solange? — A senhora loura falava pela primeira vez. — Viu essa aberração na nossa frente? Que mundo perdido! O fim dos tempos chegou.

— É, minha querida… — Solange me encarava. — Um homem tão bonito como o Neto, com um casamento perfeito… Jogou tudo pro alto pra ficar com um gay.

— Se fosse o meu marido… — Ivone balançou a cabeça. — Eu não perdoava e ainda processava.

— Tadinha da Helô — Solange jogou os cabelos para trás. — Ser trocada desse jeito.

— Você não vai contar pra ela — advertiu Ivone.

— Claro que não — Solange balançou a cabeça. — Já basta o fato de ter se casado com o homem errado esse tempo todo…

...…...

MÃE E FILHO SE ABRAÇARAM. Até que Dita me puxou de leve pelo braço para fazer o mesmo.

— Meu amor… — pousei a cabeça no ombro de Neto, que beijou a minha testa. — Como você é lindo todo uniformizado assim.

Passei a mão no peitoral dele, suavemente.

— Gostou? — Ele sorriu.

— Gostei.

— Agora sou oficialmente Capitão.

— Capitão Neto — explanei com as mãos no ar. O pôr-do-sol estava de tirar o fôlego. Ele riu.

— Seu Capitão também — tirou a boina para colocar na minha cabeça.

Ignorando os transeuntes ao nosso redor, Neto me deu um selinho demorado.

— Amo você — sussurrou.

— Eu amo mais — garanti.

— Estamos empatados — brincou, sorrindo.

Dita nos observava, sorrindo.

— Vocês precisam se casar logo — disse.

Eu e ele rimos.

— A gente vai se casar sim, dona Dita — garantiu Neto.

...…...

UMA HORA DEPOIS, voltamos para o apartamento dele. A noite estava linda demais — ou estou feliz demais com a experiência que vivi durante o resto da tarde. Nunca me senti tão importante na vida de alguém desde… Sei lá, minhas memórias não alcançam tanto tempo assim.

— O que foi? — Ele veio por trás de mim para dar um abraço.

— Nada… — sorri, olhando a lua nova no céu. Peguei nos seus braços.

Neto beijou o meu pescoço.

— Quero dizer obrigado — começou. — Pelo que fez hoje.

Virei-me de frente.

— Eu amo você — coloquei as duas mãos no rosto dele. — Não pude me ver fora de um momento tão importante como hoje. Você sempre quis, sempre sonhou. É o mínimo que preciso fazer: mostrar o meu apoio.

Ele sorriu, dando-me um selinho.

— Mesmo assim, obrigado — disse.

Eu me aninhei no seu abraço.

— E eu também amo você… — sussurrou.

...…...

NÓS SAÍMOS DO RESTAURANTE — resolvemos comemorar com um jantar particular. Seguimos a pé, pelo bairro tranquilo e tipicamente urbano, em direção à casa dele. Estávamos de mãos dadas, na calçada, atravessando a pequena ponte — os poucos carros passavam por baixo de nós, as luzes, os semáforos, a noite, logo bem atrás de nós. Fora a brisa fresca que brincavam com as terminações nervosas da minha face. Eu realmente estava feliz. O relógio marcava quase meia-noite.

Paramos ali mesmo.

— Eu gosto de sentir a noite — disse ele, pensativo.

— Também tenho esse gosto peculiar — brinquei, segurando na barreira de concreto. O céu escuro estava bonito de tão estrelado.

— De vez em quando vem à tona esse… — ele parou como quem procura as palavras certas. — Esse meu lado sensível. Reflexivo.

Houve um momento de silêncio. Pousei a minha cabeça em seu ombro.

— Sabe o que uma noite como essa me faz pensar? — Comecei.

— O quê? — Neto beijou a minha testa.

— Uns dez… treze anos atrás… Eu me sentia bastante sozinho, olhando para a lua como aquela ali — apontei para o alto. — Também sentia uma incerteza agonizante quanto ao futuro, sabe… Tudo era muito intenso no meu mundo. Fora todas as questões que você já sabe que enfrentei.

— Eu sei — sussurrou ele. — Deve ter sido uma época muito difícil para viver naquela solidão.

— Sim. Muito difícil, pesado… Uma vida triste.

O semáforo alternava do vermelho para o verde — e três minutos depois subia para o amarelo até ficar vermelho outra vez. Nenhum carro passava ali. A noite estava vazia para nós dois.

Neto perguntou:

— Você tinha ideia de que, mais de dez anos depois, viveria diferente?

— Nunca — sorri. — Se o meu eu de hoje falasse de tudo para o meu eu do passado… Ele não acreditaria.

Ele me envolveu mais pela cintura.

— Você não está mais sozinho — prometeu.

— Muito menos você.

Encontrei os seus olhos verdes intensos e sorri.

— Eu estou muito feliz, sabia? — Peguei na mão dele.

Puxei-o pelo braço para o meio do asfalto, que não passava um veículo.

Não resisti a tentação de girar em volta, com os braços abertos, sentindo o êxtase — na verdade, nós bebemos algumas taças de vinho e estamos desinibidos e sensíveis. Queria sentir a noite de um jeito diferente ao lado do homem da minha vida.

Ele me observava com um sorriso.

— Você é doido, sabia? Sai daí — deu uma risada. — Sai daí antes que venha um carro...

— Vem me pegar — provoquei.

Ele mordiscou o lábio e veio na minha direção.

Surpreendeu-me quando me pegou pela cintura, levantando-me do chão.

Não pude controlar o meu riso. Nem ele, que começou a nos girar.

— Eu também estou muito feliz — sussurrou. As suas mãos afrouxaram para me colocar no chão. — De verdade. Você não faz ideia do quanto mexe comigo desde o começo…

Sorri, tocando no seu rosto.

— Obrigado — falei.

— Pelo quê, exatamente?

— Por me incluir na sua vida.

Ele beijou a minha testa.

— Amanhã vai ser um dia especial para nós dois — garantiu.

— Por quê? — Arqueei uma sobrancelha, curioso.

— É surpresa — deu um sorriso maroto.

Meu coração disparou de ansiedade por algo bom que certamente viria.

Capítulo 2

RESOLVEMOS CONTINUAR A COMEMORAÇÃO numa casa de praia e piscina no litoral oeste. Combinamos um final de semana prolongado, para aproveitarmos um ao outro — como se a gente não fizesse isso quase todos os dias… Durante seis meses de namoro. Ele me propôs a morar no seu apartamento e eu aceitei.

Mas ainda continuo com o mesmo espaço, caso eu precise voltar.

Essa casa de praia e piscina fica no litoral oposto ao que eu frequentava — onde a mãe da Ohana mora… Onde o Gael morava. Ele nunca mais deu sinal de vida e para mim está ótimo assim. Agora me tornei um homem feliz, em seu bom estado de plenitude. Conheci o homem que me ama — e o qual consigo retribuir todo o amor que sinto.

Eu estava com ele de mãos dadas na beira da praia que era só nossa, contemplando o pôr-do-sol de tirar o fôlego. Como era bom ter aquele momento de paz com o meu amor do lado… Não pude deixar de dar um sorriso fraco e genuíno, com a cabeça repousada no peito dele.

— O que foi? — Neto beijou a minha testa com a mesma ternura de sempre.

— Nada demais…

Aninhei-me mais um pouco nele.

— Sabe de uma coisa?

— O quê?

— Isso está bom demais para ser verdade — brinquei.

— Por quê? — Ele deu uma risadinha.

— Sei lá… — dei de ombros, beijando-lhe no peito. Meus braços estavam em volta da sua cintura, enquanto suas mãos acariciavam as minhas costas. — Acho que é a primeira vez que vivo um amor tranquilo como este.

— Isso é bom?

— Claro que é — olhei para ele.

— Então… — sorriu.

Olhei para o horizonte que estava prestes de escurecer — no contraste entre azul e laranja. A visão mais monumental que posso contemplar.

— Então… — continuei. — Eu não quero que isso acabe.

— Eu que o diga.

Houve um momento de silêncio enquanto a brisa esvoaçava o meu cabelo.

— Estive pensando em nós dois — começou ele. — Sempre penso, aliás. Mas nas últimas semanas eu pensei com mais frequência.

— E o que você pensou?

O olhar dele ficou mais intenso no meu.

— Que seis meses foram o suficiente para querer você comigo — acariciou, com os dedos, a maçã do meu rosto. — Para o resto da minha vida.

Senti meu coração disparar ao ouvir aquilo.

Eu também tive a mesma certeza, mas não queria acelerar as coisas entre nós.

Seis meses pode parecer recente demais, mas a intimidade não.

— Eu quero me casar com você — disse.

Neto colocou a mão no bolso, tirando uma caixinha vermelha de veludo.

— Sinto que não posso perder tempo… Nem mais um mês.

Fiquei paralisado, surpreso.

— O que foi? — Ele sorriu.

— É sério? — consegui falar, ainda perplexo. — Você tem certeza disso?

— Claro que tenho. Por que não?

Tive que respirar fundo para me recompor.

— Você me pegou de guarda baixa — brinquei, rindo de nervoso.

— Quer casar comigo ou não? — Devolveu a brincadeira.

— Vamos lá — comecei. — Vamos começar esse pedido com o pé direito.

Neto riu. E disse:

— Você quer que eu me ajoelhe aqui? Porque eu posso…

Foi o que ele fez. Aquele monumento em forma de homem, que tinha acabado de se tornar Capitão com todas as honrarias, estava ali de joelhos — e pegando na minha mão.

— Orlando Fernandes — começou —, com toda a certeza do meu amor que tenho por você… E do seu amor por mim… Você aceita casar comigo?

Mordisquei o lábio para controlar o meu próprio êxtase. Preciso responder logo…

O homem da minha vida quer fazer morada permanente no meu coração.

— Faça esse pedido todos os dias... — fiz uma pausa dramática e completei: — porque a resposta sempre será sim.

— Sim? — Ele arqueou uma sobrancelha, o olhar ainda intenso.

— Sim, claro, com certeza… — Puxei-o pela mão. Ele se levantou para encostar os lábios nos meus e completei, sussurrando: — Eu te amo.

Ele me deu um beijo intenso e demorado ali mesmo.

— As alianças — disse com a boca ainda na minha, rindo.

— A gente esqueceu...

Trocamos as alianças de prata pela de ouro. Ambas no anelar direito.

— Noivos — sussurrei.

— Por enquanto — prometeu ele.

Dei um sorriso, afastando-me devagar — andando para trás.

— Você vai aonde? — Ele ergueu uma sobrancelha, curioso.

Tirei a camisa e larguei na areia. O sol já se pôs, mas a luz alaranjada continuava no céu azul marinho.

— A gente precisa comemorar outra vez — falei, largando a bermuda moletom na areia.

Ele deu o sorriso maroto que eu gosto, tirando a roupa em seguida.

— Vem me pegar… — pedi, chegando perto da areia molhada. Ele também estava nu.

— Agora?

— Agora — parei, a fim de esperá-lo.

Assim que ele ficou a menos de um metro de distância, corri.

Neto me alcançou e eu ri, enquanto chegamos no mar.

Envolvi as minhas pernas em seu quadril. Ele me girava consigo com as ondas batendo em nossos corpos.

O beijo continuou ali mesmo.

...…...

NÓS ACABAMOS NA CAMA. FIZEMOS AMOR intensamente até ficarmos inertes. Quando me dei conta, o relógio marcava onze e meia da noite. Fiquei de pé, seguindo em direção à varanda larga. Não havia nada ao redor, a não ser areia e — logo mais adiante — o mar. Fiquei de braços cruzados, nu, sentindo a brisa meio gelada percorrendo as terminações nervosas.

Eu vou me casar.

Não fazia ideia do que sentir — receio pelo futuro, além da ansiedade. No fundo, eu me sentia feliz. Completo, até. Olhei para ele, que estava dormindo profundamente. Daqui a pouco, vou me aninhar de volta ao lado. Queria compartilhar a minha euforia para alguém. Téo não poderia ser o primeiro a saber, visto que estava em Milão no momento — viagem a trabalho. Deve estar resolvendo algum pepino relacionado à revista, considerando o fuso horário.

Peguei meu celular e liguei para uma das minhas melhores amigas.

— Gabi? — Falei assim que ela atendeu.

— Diga, garoto. Como vai o fim de semana com o namoradão?

— Uma maravilha. Falando nele, você não vai acreditar no que vou te contar agora.

— Agora me conta. Estou ansiosa.

— Eu vou me casar — sorri, mal acreditando que aquilo estava aconteceria.

Capítulo 3

...TRÊS DIAS DEPOIS ...

— CASAR? — GABRIELA FICOU SURPRESA, dando um sorriso. — É sério?!

— Tenho até anel de noivado — balancei o dedo anelar direito que estava com a aliança dourada. — Foi na praia mesmo, em pleno pôr-do-sol. Do mesmo jeito que nós oficializamos o namoro.

Ela e eu estávamos na mesma cafeteria de sempre, perto do trabalho. Depois de entregar mais relatórios do home office. O relógio marcava quinze minutos para as quatro da tarde com uma terça-feira ensolarada.

— Seis meses de namoro foram suficientes? — Gabriela perguntou.

— Muito, até — não pude impedir o sorriso. — Pra quê perder tempo, não é mesmo?

Gabriela deu um gritinho de alegria, sacudindo meu braço em seguida.

— Meu amigo vai casar! — Disse. Assim que se recompôs, perguntou: — Vocês vão marcar pra quando?

— Sei lá… — dei de ombros. — Quando tudo estiver pronto.

— Mas não está tudo pronto? Vocês moram juntos, praticamente.

— Eu ainda mantenho o meu apê, menina. Vou ter que me desfazer de quase todos os meus móveis para definitivamente morar com ele.

— Mas como vocês estão ficando juntos? Na sua casa ou na dele?

— Na dele, claro. Mas quando ele vai trabalhar, fico na minha. Ele me pega toda vez que chega do batalhão.

— Entendi — ela jogou uma mecha de cabelo para trás. — Você está na sua casa, agora?

— Estou — brinquei com um pedaço que sobrou do cheesecake, espetando o garfo. Bebi um gole do cappuccino e concluí: — Ele vai dar plantão hoje.

— Falando em plantão… — ela cruzou as mãos sobre a mesa. — Como você está lidando com o trabalho dele na polícia? — cochichou a última palavra.

— Fico com um pouco de medo, né… — comecei. — A polícia no Brasil é a que mais morre.

— Também é a que mais mata — completou ela.

— Exato — concordei. — Acho que a última coisa que quis na vida foi namorar um cara fardado.

— Até você conhecer um — ela brincou.

— E finalmente namorar com ele.

— E casar!

Nós rimos juntos.

— A última coisa se transformou no amor da minha vida! — Finalizei.

...…...

CHEGUEI EM CASA ÀS SEIS HORAS. Gabriela e eu monopolizamos a mesa da cafeteria por mais uma hora, de modo que todas as novidades fossem compartilhadas. Eu estava sorrindo para o nada ao lembrar da conversa que tivemos sobre o meu futuro marido. Nunca me senti tão feliz em eternizar uma relação que envolvia tamanha cumplicidade atrelada com o amor.

Realmente, não queria perder tempo só ficando no namoro. Muito menos ele, que tomava iniciativa no timing exato — até mesmo perfeito.

O celular tocou.

— Oi, meu amor — era ele no outro lado da linha. — Aconteceu alguma coisa?

— Não. Aconteceu nada. Só liguei pra saber se você chegou bem na sua casa.

— Cheguei sim — sorri. Ele ainda fazia o meu coração acelerar só em ouvir a sua voz.

— Meu plantão acaba de madrugada. Chego até você às quatro da manhã. Você me espera?

— Sempre — garanti.

— Vamos curtir um pouquinho juntos antes do amanhecer — sugeriu. A voz dele era gutural e insinuante.

— Já sinto a sua falta.

— É um pouco difícil ter que ficar longe de você — disse. — Inclusive quando não estou dentro.

Dei uma gargalhada.

— Logo você estará — devolvi a insinuação.

— Não me provoca — brincou. E concluiu: — Preciso desligar. Eu te amo.

— Eu te amo mais.

Ligação encerrada.

Ouvi a campainha tocar.

— Wesley? — Fiquei surpreso ao abrir a porta, dando de cara com o presbítero da igreja onde frequentei durante dois anos e meio antes de me desvincular por completo. — Como conseguiu me achar aqui?

— Eu estava aqui por perto — respondeu. Ele é cinco centímetros mais baixo do que eu, porém forte. — Vi você entrando. Resolvi fazer uma visita.

— Minha casa está uma bagunça — falei, com um sorriso fraco. — Se importa da gente sair por aí?

— Claro que não — ele sorriu.

...…...

QUANDO EU ESTAVA NO AUGE DOS DEZOITO ANOS, deixei de frequentar a sede principal da Igreja Assembleia — visto que a sede localizada no meu bairro fechou por causa das acusações de pedofilia, envolvendo o ex\-pastor. O lugar ficava na zona mais distante e não queria mais ver ninguém sendo obrigado a me buscar e deixar de carro. Assim que passei a frequentar a igreja que fica na esquina de casa, conheci muita gente e Wesley — ainda diácono — estava no círculo seleto que era o do cristão conservador.

Nessa mesma época, enfrentava questões internas envolvendo a minha sexualidade e, como já comentei, disfarçava muito bem — negando constantemente até causar uma dor interna, um sufoco por causa de tanta repressão.

Wesley me incluiu na banda da igreja — visto que era músico há quase vinte anos. Eu fiquei tocando bateria, enquanto ele tocava qualquer instrumento que estivesse sobrando. Até mesmo cantava. Naquela época, eu não estudava nem trabalhava — mas corria atrás. Até que completei dezenove anos e consegui os dois.

A minha rotina foi me afastando e decidi sair da banda, até que um tempo depois decidi sair da igreja. Wesley tentou manter contato comigo, mas fiz a promessa para mim mesmo de que não teria mais contato com ninguém. Não queria algum filho de Deus no meu encalço persuadindo\-me a voltar para os Caminhos do Senhor.

Três anos se passaram e nunca mais vi qualquer rosto que estava presente no Templo junto comigo.

Pensei que continuaria assim.

...… ...

— PARA MIM, CONTINUA SENDO UMA surpresa te ver por aqui — bebi um gole de refrigerante. — Por onde você estava esse tempo todo?

— Moro naquele mesmo bairro há anos — ele cortou um pedaço de pizza.

Resolvemos comer na pizzaria da esquina.

— E o casamento, como vai? — Perguntei.

— Vai tudo bem, graças a Deus — ele sorriu. — Tenho dois filhos lindos.

— Continua no presbitério?

— Desde que você saiu de lá.

— Ah, sim.

Houve um momento de silêncio. Fiquei pensando na esposa dele, que já foi minha amiga um dia. Tanto ela quanto a irmã — que foi a primeira a falar comigo quando entrei naquela igreja. Também me lembrei da paixonite que nutri pelo irmão dela.

— Você não pensa em voltar? — Wesley me observava.

— Não — dei de ombros. — Por quê?

— Nem se sente mal? Vazio? Frustrado? Sem direção?

— Nenhum desses sintomas — brinquei, sorrindo.

Ele ficou em silêncio.

— Vai ter um retiro espiritual — continuou, me entregando um panfleto. — Queria te fazer esse convite.

Peguei por educação.

— É num fim de semana — explicou. — Sei que você trabalha de segunda à sexta e pode ser perfeito pra ir.

— Tudo bem.

Houve mais um momento de silêncio. E dessa vez foi um pouco constrangedor.

— Sua mãe falou que você virou homossexual — comentou.

— Foi mesmo?

— Sim, foi. Toda vez que ela sobe no altar para dar uma meditação, diz que está orando pela tua vida para se libertar dessa vida.

— Bom pra ela — dei um sorriso seco. — Agradece as orações por mim, porque me sinto bastante abençoado. Mais liberto. Livre.

Wesley me observou em silêncio.

— Vou me casar — falei.

— Se-sério? — Ele ficou chocado.

— Sério — bebi mais um gole de refrigerante. — É isso que está me fazendo feliz.

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