Encarei a fila quilométrica que se formava do lado de fora da agência de empregos, respirei fundo e encarei meu currículo, medíocre.
Já fazem cinco anos desde que terminei a escola, fiquei um ano na faculdade de ciências contábeis e quis morrer, tranquei e tentei fazer um curso em outra área, administração, confeitaria, informática, encanamento (???). Sempre fui indecisa, nunca consegui descobrir o que eu quero, do que eu gosto, minha playlist no Spotify ilustra bem isso, começo lavando a louça ao som de tecnobrega, na metade já escutei umas três de sertanejo e pop e termina com rock ou quem sabe clássica.
Cometi mais um erro de me mudar sozinha para o Estado de São Paulo, no miolo do caos, achei que novos ares me fariam bem, mas o ar daqui tem gosto e cheiro de poluição, ninguém me avisou que eu teria de pagar oito reais numa caixa de leite e o aluguel de um cômodo poderia chegar a meio salário mínimo.
Estou na merda.
O salário da cafeteria que trabalho meio período não é o suficiente.
Quando consegui entrar na agência e estava preenchendo uma ficha o telefone toca.
O proprietário do apertamento.
- Alô, Seu José?
- " Oi Florence, eu vim verificar a sua queixa sobre o mofo, você não estava em casa mas eu entrei mesmo assim, espero que não se incomode. "
Quem se incomodaria não é?
- Tudo bem, e então?
- " Chamei um amigo meu e descobri que o buraco é mais em baixo, sinto em te dizer que o lugar tá condenado."
- O que?
- " O mofo tomou conta de tudo, o teto do banheiro desmanchou igual farofa. "
- Seu José, dá pra consertar, não dá?
- " Sinceramente... Nem vale o esforço, o prédio é velho e cheio de infiltração, já faz um tempo que estou conversando sobre vender o terreno, acho que é melhor você procurar outro lugar logo.... Florence? "
Encarei a tela do celular.
Agora sou desabrigada também?
Terminei o formulário tentando não chorar.
E o celular toca de novo.
- Oi mama.
- " Oi meu bem, como você está? "
- Ótima, e a senhora?
- " Bem, sim, na verdade, tem algo que eu preciso falar com você " - Tenha misericórdia - " Sabe querida, ontem eu recebi a uma carta do Serasa..."
- No seu nome?
- " Não, no do seu pai " - Meu pai, o alecrim dourado que foi comprar cigarro a três anos - " Parece que ele fez alguns empréstimos e deixou a casa como garantia, mas ele não pagou, e vão hipotecar a casa... Flore? Está tudo bem? "
Respirei fundo apertando o espaço entre os olhos.
- Tô ótima, de quanto estamos falando mama?
- " Vinte e três mil "
- Vinte?! Como ele conseguiu um empréstimo desse tamanho?! - Dei um salto da cadeira e todos me olharam, pedi desculpas e me sentei de novo - Mama, você precisa falar com o banco, eles tem que acionar a polícia e encontrar o pai não é?
- " Mas o problema é ele ter dado a casa como garantia, está no nome dele."
Maldita sociedade patriarcal.
- Florence Monteiro de Albuquerque - Uma mulher chamou com minha ficha na mão.
- Mama preciso desligar, te ligo mais tarde tudo bem?
- " Tudo bem querida, me desculpe por isso. "
- Vou dar um jeito mama, não se preocupe.
Desliguei e segui a mulher até outra sala, ela se sentou atrás da mesa do computador e eu me sentei em frente a ela.
- Prazer Florence, eu me chamo Bianca.
- O prazer é meu.
- Examinei sua ficha por alto, parece que você tem muitas... Experiências.
- É, sou uma pessoa que gosta um pouco de tudo - Soltei um riso amarelo, é só uma frase para "indecisa" que não pega tão mal em entrevistas de emprego.
- Claro, você viu a lista de vagas disponíveis?
- Ha sim.
- Alguma te chamou atenção?
A que paga mais.
- Estou aberta a qualquer oportunidade.
- Entendo - Ela digitou alguma coisa e soltou um sorriso social - Qualquer novidade te avisamos.
Eu já ouvi isso antes.
- Sabe, Bianca - Eu me aproximei da mesa e falei mais baixo - Sei que meu currículo não é atraente, mas eu te juro que tudo o que eu fizer vou dar cem por cento de mim, e eu preciso, muito, de verdade, de um emprego, agora mais do que nunca.
- Está tudo bem? - Ela franziu a testa e eu percebi que estava começando a chorar.
- Não, eu não tô bem Bianca, hoje foi bomba atrás de bomba - Comecei a chorar de verdade e ela pegou um lenço e encheu um copo de água - Obrigada, eu descobri em menos de dez minutos que minha casa está tomada de mofo e vai ser demolida, e que tenho uma dívida de vinte mil reais que a droga do meu pai fez e sumiu no mundo, estava desesperada pra pagar o aluguel e agora eu não tenho nem uma casa pra pagar aluguel!
- Sinto muito, de verdade.
- Desculpa, desculpa, é que tudo isso aconteceu literalmente agora e eu precisava... Desabafar, obrigada Bianca.
- Tudo bem, sabe, se estiver disposta mesmo nós temos algumas vagas que são difíceis de ser preenchidas mas valem bastante a pena.
- Difíceis?
- Já trabalhou como doméstica?
- Não, mas na minha situação atual eu limparia banheiro de rodoviária com a língua.
- Ta bom... veja, a alguns anos temos parceria com uma agência de domésticas e tem uma casa em específico que está sempre contratando, mas as domésticas costumam pedir as contas bem rápido depois de entrar lá.
- Todas saem vivas e com a integridade intacta não é?
- Elas só dizem que o proprietário é muito insuportável, ele tem mania de limpeza e uma casa de oitocentos metros quadrados então você deve imaginar que o serviço é puxado.
- Quanto é o salário?
- Dois mil por mês e com benefícios.
- Eu aceito.
Era um puta casarão, na parte mais nobre da cidade.
Não foi fácil de achar, nem de chegar, não tinha um ponto de ônibus nos arredores.
- Senhorita Florence - Uma mulher sorriu abrindo o portão.
- Sim, bom dia.
- Bom dia, eu me chamo Vera, sou a governanta, a senhorita é mais jovem do que imaginei.
- Ha é, meu nome impõe um ar de respeito não é?
Ela soltou um sorriso amarelo e eu pigarreei.
- Vamos, vou te apresentar a casa.
- Certo, obrigada.
A mulher me levou por todos os cômodos estupidamente grandes e absurdamente limpos e organizados.
- O senhor Duarte tem algumas exigências quanto a limpeza que vou deixar listado para a senhorita.
- E ele está aqui?
- Não, e raramente está, mas quando estiver, sugiro que evite encontrá-lo.
- Entendido.
Escutei um miado e uma criatura gorda e peluda veio desfilando seus longos pelos escuros.
- Esta é a Lua, diga oi para Florence.
- Oi Lua, como você é linda - Sorri me abaixando para passar a mão na gatinha.
- Espere - Disse a governanta e eu travei na mesma posição - O senhor Duarte não gosta que passem a mão nela, mas se o fizer, precisa lavar as mãos antes com água e sabão e depois de afaga-la pentear seus pêlos de baixo para cima por dois minutos.
Começou a psicopatia.
- Claro, o carinho fica pra depois Lua - Me retesei.
- Vou te mostrar como limpar o cantinho dela.
A gata tinha um quarto só pra ela, e eu nem casa tinha, estava num hotel chinfrim até conseguir um lugar não tão absurdamente caro.
A governanta explicou como limpar o quarto da gata e me deixou lá com um aspirador e uma pá para cocô.
Aspirei o carpete, dobrei os lençóis, penteei a gata, joguei o cocô fora e brinquei um pouco com a criatura gorducha.
Estava descendo as escadas quando vi a governanta conversar com um homem no sofá, me escondi no corredor e esperei eles saírem, ela saiu, mas ele não, se deitou no sofá e fechou os olhos.
Ho droga, tinha que passar pela sala para guardar o aspirador.
Esperei um pouco e desci de fininho, ele parecia estar dormindo, era mais novo do que pensei, devia ter uns vinte quatro anos, magro, alto, cabelos escuros perfeitamente arrumados, pele bronzeada e o queixo quadrado, parecia um pitel.
Estava passando pelo canto da sala quando Lua passou correndo e com o susto bati o pé num abajur e o aspirador escorregou quando tentei segurar o abajur, ele ligou com a queda e o tubo que estava baixo do meu braço sugou meu cabelo, gritei e tropecei no abajur que caiu de qualquer jeito e o aspirador chupou meu cabelo até minha orelha.
Vera veio correndo assustada e quando ergui os olhos o homem estava de pé me encarando com os olhos arregalados.
- Olá, prazer em conhecê-lo - Sorri.
*
Estava esperando atrás da porta da cozinha enquanto o homem e a governanta brigavam, não conseguia ouvir direito mas ele parecia realmente bravo enquanto ela genuinamente não dar a mínima.
A porta se abriu e eu me apressei juntando as mãos em súplica.
- Senhor Duarte, eu sinto muito pelo ocorrido. Foi um episódio isolado, eu juro que nunca mais vai acontecer.
- Não vai mesmo - Ele estalou a língua passando por mim - Sabe onde é a saída.
- Por favor, eu te imploro, preciso desse emprego.
- Não implore, não pega bem - Ele pegou a Lua e seguiu para as escadas.
Não acredito, por causa de algo tão estúpido, eu literalmente caí, eu vou ser mandada embora por CAIR?
Desgraçado...
Ele estacou e se voltou para mim, foi quando percebi que pensei alto de mais.
- Perdão? - Ele desceu as escadas lentamente com as sobrancelhas franzidas.
- Fresco, esnobe e mesquinho - Cuspi, o que eu poderia perder agora? Será que dá processo? - Não pega bem implorar? É bem o tipo de frase de alguém que nunca precisou implorar por nada na vida.
- O que você sabe sobre mim? - Ele desceu as escadas furioso e soltou Lua no sofá.
- O que você sabe sobre mim? - Repeti em tom de deboche.
- Saia da minha casa agora.
- Nem precisa mandar Vossa Alteza - Fiz uma reverência exagerada e sai batendo os pés.
*
Estava chorando na calçada da casa do meu trabalho mais rápido da vida, como colocar na carteira de trabalho o registro de um dia trabalhado?
Agora que larguei o trabalho de meio período no café por quê não daria para conciliar os horários, por mais que eu não me importasse de ter dois empregos.
- Senhorita Florence - Vera chamou e eu me levantei limpando os olhos.
- Dona Vera, eu sinto muito por isso, só estou esperando o Uber - Por que no condomínio dos riquinhos que só andam de carro não tem um ponto de ônibus em quarenta minutos de distância.
- Foi um primeiro dia difícil, até amanhã.
- Até ama... - Travei - Até amanhã?
- Claro, já estou farta dele mandando trabalhadores honestos embora por causa de suas futilidades, se estiver disposta, quero mantê-la aqui.
- É sério? Mas ele não vai tentar me matar? Depois de tudo o que eu disse?
- Basta ignora-lo, funciona comigo - Ela sorriu e fechou o portão.
Sorri dando uma explosão contida de felicidade.
Minha mãe sempre me ensinou a me defender, não baixar a cabeça, às vezes isso saia um pouco do controle, mas o fato dele ter julgado minha capacidade por um erro justifica eu tê-lo xingado por uma frase não é?
Era assim que eu me enganava.
De qualquer forma, não estou no olho da rua, vou consertar minha vida.
O salário é mais do que eu poderia esperar, ainda mais trabalhando numa área que nem tenho experiência, só tinha que aturar um esnobe mesquinho.
Peguei o uber até uma imobiliária, tinha que encontrar um lugar barato por hora, tinha algumas economias, não era muito mas se eu vivesse de farinha e ovo por um tempo daria tudo certo, do que mais um ser humano precisa não é?
Naquela tarde não encontrei nada que não custasse o meu rim, voltei para o quarto de hotel e dormi, me preparando psicologicamente para mais um dia.
Marcus POV
- Que espécime você trouxe dessa vez para dentro de casa Vera? - Perguntei colocando um biscoito amanteigado na boca, ela sempre fazia isso quando sabia que eu ia me estressar.
Ela fechou a porta suspirando.
- A agência que mandou, não tenho nada haver com isso.
- E você não checa as qualificações da pessoa antes?
- Eu parei na vigésima segunda, agora se souber usar uma vassoura já o suficiente.
- Tente ensinar a usar o aspirador também, pode ser perigoso.
- Não é como se ela fosse ficar muito tempo também, vai atazanar ela como fez com as outras até que sumam daqui.
- Não gosto de estranhos na minha casa.
- E eu não vou cuidar de tudo isso sozinha, tive uma idéia, por que não limpa sua própria casa?
- Pra que eu te pago?
- Vamos ver como o senhor fica se eu me demitir - Ela sorriu.
- Esperta, muita esperta Dona Vera.
- Se o senhor for menos insuportável e deixar as pessoas trabalharem não terão estranhos andando pela casa.
- Não sou insuportável, apenas gosto de um trabalho bem feito.
- Eu sei o que está fazendo, afastando todos, o que acontece se um dia eu não estiver mais aqui Marcus? - Ela parou ao lado do sofá e a encarei colocando os biscoitos na mesa.
- Por que está dizendo isso?
- Por nada - Ela soltou uma risada soprada, sem diversão - Apenas trate de cuidar da sua paranóia, tenho o dobro da sua idade, é estatística que vou partir antes.
- Não cansa de falar besteiras Vera? Faça seu trabalho e chega de trazer estranhos incompetentes para cá.
Ela me encarou alguns instantes, desconfortáveis instantes, e sorriu.
- Boa noite Marcus - Disse e subiu as escadas.
*
Saí cedo na manhã seguinte, Vera tinha deixado tudo preparado, tomei café, me vesti e saí para ficar o dia inteiro sentado dentro do meu carro, no topo de um morro, encarando a cidade lá embaixo, não conseguia trabalhar num ambiente com outras pessoas, meu carro e minha casa eram meus refúgios impecáveis, e o fato de Vera querer manchar esses locais de descanso me irritava profundamente.
Estava com a câmera nas mãos, encarando um homem ler o jornal, aproveitando o sol da manhã, segurando uma coleira presa a um cachorro rechonchudo que mastigava uma bola, um casal de idosos passeando de mãos dadas, o velho se abaixou e pegou uma florzinha amarela e entregou para a senhorinha, ela abriu um sorriso enorme e quase sem dentes, bati uma foto e a fiquei encarando por um bom tempo.
Por mais estranho que parecesse eu gostava de passar meus dias assim, assistindo os outros viverem, e tinha certa inveja por quê não conseguiria ser como eles, do mais simples como brincar com um cachorro até encontrar um amor para passar o resto da vida.
Minha cabeça começou a latejar e resolvi voltar para casa.
Cheguei zonzo e com dores, só queria minha cama agora e dois comprimidos de calmante.
- Boa tarde senhor Duarte.
- Boa tarde - Respondi passando reto pelo banheiro do corredor então travei, e voltei de ré, a doida de ontem estava esfregando uma privada - O que está fazendo aqui?!
- Trabalhando - Ela sorriu.
- Eu acho que fui bem claro ontem.
- Até que foi, mas Vera, que cuida do quadro de funcionários, decidiu me manter.
- Não, você não vai ficar na minha casa sua surtada - Desci as escadas correndo e abri as portas da cozinha - Vera!
Olhei na piscina, no quarto dela, no cinema, e nem sinal daquela velha.
- Está procurando pela Dona Vera? - A garota desceu as escadas tirando as luvas de privada - Ela disse algo sobre tirar alguns dias dos três anos de férias acumuladas que ela tem. Então parece que só sobrou eu para deixar sua casa brilhando.
- Não acredito que ela fez isso comigo...
- Agora que terminei com os banheiros o que o senhor quer para o jantar?
- Que? Preparar minha comida com essas mãos? Nem morto. Pare com essa palhaçada e ligue para Vera já!
- Eu nem tenho o número dela, então suponho que o senhor vai fazer sua própria comida, é um alívio, eu tenho que limpar o cocô da Lua.
*
Vou fazer greve de fome até Vera voltar, foi o que eu pensei, mas apenas duas horas com fome e eu tive que descer para a cozinha.
Mas odeio cozinhar, sempre demoro de mais, é difícil cortar as coisas no tamanho certo, tudo que toco tenho que lavar as mãos logo depois, até terminar estarei morto de fome.
Tomei a decisão mais sensata e me sentei nas banquetas do balcão com um miojo cru, Vera comia esse tipo de porcaria, esse veneno em pacotes jamais entraria na minha casa se isso dependesse de mim.
- Vamos comer chuchu, mas você está tão gordinha, precisa fazer mais exercícios - A doida abriu a porta da cozinha com Lua nos braços.
- O que pensa está fazendo segurando minha gata?
- Segurando a gata dã - Ela disse, que vontade de joga-la da janela - Que porcaria está comendo? - Ela riu - Poderia simplesmente ter pedido um Ifood se tem tanta preguiça de cozinhar.
- Não como nada feito fora da minha casa.
- Isso aí foi feito da China.
- Você me entendeu.
- Eu ainda posso cozinhar se quiser, existe algum ritual de lavagem das mãos que eu preciso seguir antes?
- Não enche o meu saco.
Ela balançou a cabeça rindo e foi lavar as mãos, pegou um pacote de macarrão, molho de tomate e algumas verduras.
- Você precisa deixa-las de molho no vinagre e lavar antes de cortar, e lavar de novo antes de cozinhar - Disse e ela pegou uma faca.
- Por que não espera o jantar ficar pronto lá fora senhor Duarte?
Peguei Lua e sai para a sala, era realmente melhor, se eu visse o preparo não conseguiria comer, em menos de uma hora ela me chamou de novo.
A mesa estava posta com um prato de macarrão ao molho, o cheiro estava bom, e meu estômago estava gritando, me sentei e dei uma garfada.
Estava gostoso, surpreendentemente bom.
Terminei de comer e repeti.
- Satisfeito? - Ela secou as mãos depois de lavar a louça.
- Sim, obrigado - Limpei a boca e me levantei.
- Disponha. Ha, senhor Duarte - Ela chamou quando já estava saindo - É só que... Eu não recebo para cozinhar, então espero um bom bônus, e claro as horas extras de hoje.
Filha da...
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