Escola estadual 14: 36, pm.
O silêncio residia como antecipando a tragédia. Trancado no armário da sala de informática, somente a respiração ao ritmo do coração podia ser ouvido. Tudo estava quieto, antes de passos apressados surgirem acompanhados de um choro infantil.
— Me ajuda, socorro!- uma menininha caiu frente ao armário, indefesa. Observar o desespero através de uma pequena abertura, quieta, era impossível para mim.
Para salvar uma vida, uma nova correria se iniciou fugindo para sobreviver. Derrapando e voltando a correr, não havia opção de parar, mas o destino é traiçoeiro e o sangue no chão estava espalhado impedindo passos largos. A queda foi inevitável. Aguardando a morte, último abraço foi dado perante o choro aguçado.
— O que tá fazendo aí?! VEM!- como um herói de capa branca, o presidente do conselho estudantil surge através da porta do laboratório, estendendo a mão.
Por segundos uma mão podre e ensanguentada atinge as pernas sujas dos sobreviventes ao solo, porém a porta foi trancada a tempo, impedindo qualquer tragédia.
Ofegante estirada sobre o chão, disponho-me. Cabeça girando a mil, mal noto a menina que resgatei de joelhos agradecendo-me.
— Obrigado! Obrigado! Obrigado!- mais choro.
— É, tudo bem...- orgulhosa de mim, afago seus cabelos que estão grudentos de tanto suor.
— Silêncio.- ordena o presidente. A sala naturalmente iluminada, têm janelas vetadas com armários e papel colados por fitas. O líder fica armado com um estilete vigiando a fresta pequena que leva ao corredor onde estávamos. Os grunhidos e bater vão diminuindo, mas os passos seguem como se tivessem nova vítima a perseguir.
— Sanna?- tá me zoando. Perplexa olho para cima ainda deitada, vendo a cara lambida do meu ex-satanás, ops, namorado.
— Se você tá aqui, ela também deve tá.- suspiro no fundo aliviada, me iludindo antes da hora.- Cadê a Rose, Jacob?
— E-eu não sei...- cara de rato maldito. De fúria ponho-me de pé num salto, acertando seu rosto com um soco.
— Hey, chega!- o presidente me segura.
— Como você não sabe onde ela tá? Seu covarde desgraçado! Abandou ela grávida lá fora!
— Shhhh!!- minha boca é contida pelo líder, que prende seus dedos nos meus lábios impedindo-me de disparar mais veneno.- Eles estão lá fora...- eles, vocês perguntam, quem? Não sabemos.
Contenho-me por asco, indo para o outro lado do laboratório ignorando os olhares dos outros alunos. Inquieta olho o celular buscando por sinal, preocupada com Rose. Sei do que aquela vagabunda foi capaz de fazer, mas não vou deseja-la ver morta por isso.
— Moça...- a menina de antes se ajoelha na minha frente.- Muito obrigado... por me salvar.- e pensar que se tivesse me retido, eu estaria longe desse escória mas teria visto seu rostinho morto aos meus pés. Sorrio admitindo fazer a coisa certa.
— O que uma menina do fundamental faz aqui, no segundo prédio?- pergunto voltando a procurar sinal de celular.
— Eu... vim atrás da minha irmã, ela estuda no último ano.- certo, então deve estudar comigo ou já devo ter visto-a.- Ela tava na enfermari-
— Okay, chega!- quase solto o aparelho quando alguém grita.- Será que alguém pode fazer a gentileza de me explicar que inferno tá acontecendo aqui?!- ninguém sabe, esse é o problema.
— Contenha-se, Suzan, a não ser que queira virar jantar daquelas coisas lá fora.- o presidente sem qualquer gentileza, fala. Isso é o bastante para deixa-la quieta.
De um lado estão alunas recolhidas abraçadas, usando livros ou mesas para se barricarem. Alguns nerdes estão mexendo nos detritos de química enquanto 4 jogadores de futebol estão quietos olhando pela janela. Jacob está ao lado de um aluno esquisito, gótico que fuma despreocupado com a vida, e meu pensamento deve ter sido alto, pois o mesmo me olha.
— É permitido fumar aqui?- ele dá de ombros.- Sabia que tem bagulho inflamável aqui dentro?
— Apaga isso, Rodolfo.- mandão, o líder pede sem sequer olhar para trás. O esquisito obedece.
— Alguém deve ter chamado a polícia, não é?- Augusto, esse eu conheço. O melhor jogador de futebol americano da escola.
— Claro que sim! Quem não chamou?! Não viu a explosão lá fora?!- Suzan tem razão, o acidente foi alto o bastante para chamar as forças armadas, bombeiros, a NASA, vingadores e o Batman.
Era nisso que todos se agarraram antes das horas se passarem. Os nervos já estavam se agitando mais com a espera, e nenhum barulho de sirene se ouvia, somente ruídos e batidas pelos corredores. O mais angustiante era o tic tac do relógio de parede e o subir e descer do estilete.
— Quer parar com isso?!- o presidente poderia atravessar uma alma só de olhar, mas felizmente não era o dia para isso. Ele guarda os estilete.- Alguém tem um fone de ouvido com fio?
— E pra que você quer isso?- de tamanha arrogância diante da morte, Suzan exibe o objeto mencionado.
— Vou fazer o rádio.- e assim a tecnologia vence mais uma vez.
Sintonizando no canal certo, um fone com fio serve de antena externa que pode abrir para canais de rádio. Por segundos todos se veem esperando esperançosamente uma resposta do celular sintonizado.
— Alfa Bravo chamando torre de comando.- como um E.T cor de rosa, os olhos recaem sobre mim.
— Que droga é essa, garota?!- Augusto se afasta.
— Ela tá ligando pro pai dela.- Jacob retruca, fofoqueiro como sempre.
— Então é você...
— Torre de comando responde, Prossiga Alfa Bravo.- suspiro.- Sanna? Sanna é você?!
— Pai.- a voz sai mais emocionada do que deveria, mas o alívio de ouvi-lo era maior.- Sou eu, Sanna.
— Graças a Deus! Onde você está?!
— Tô na escola presa com alguns alunos. O que tá rolando?! Teve uma explosão aqui enfrente e-
— Você está no local da explosão?! Sanna, escute seu pai. Você tem que sair daí imediatamente.- o aviso estoura adrenalina pelos estudantes, ativando também o medo.- Saía daí agora, antes que seja tarde!
— M-mas como vamos sair daqui?!
— Tem um ônibus lá fora.- o esquisito se pronuncia.- Tá bem na entrada barricando o portão... deve ter ficado daquele jeito por causa da explosão.
— Use o que precisar para sair daí, agora. Estou a camin... shhhh... não seja peg-... sshhhh...
— O sinal tá falhando. Pai? Pai?! O que é aquilo lá fora?!
— ... shhh... experimento... shhhh... fuja!- a ligação cai.
— Não parece coincidência demais ter a filha de um militar no momento do acidente aqui?- conspirações espacam da ruiva sarnenta.- Você sabe o que é aquilo ali fora! Adimita!
— Sei tanto quanto seu conhecimento por maquiagem. Tá borrado.- aponto para seu rimel, o que é o bastante para despistar sua atenção.
— Ele parecia desesperado... seja o que for, seu pai nos quer bem longe da exposição.- o líder pondera indo até a janela.- Temos que nos arriscar.
— Tá maluco?!- Jacob balbucia nervoso.- Você viu aquelas coisas lá fora?!
— Se quiser virar um deles, fique a vontade.- aproximo-me da mesa do professor pegando todos os papéis que encontro.- Iremos sair, você vem?- a menina de antes corre para meu lado, pegando mais papéis.
— Uhhh, gostaria de ajudar.- Rodolfo expõe seu isqueiro.
— É bom eu não morrer aqui, garota, ou juro por tudo quanto é mais sagrado que você vai pagar por isso.
— Tá bom, Suzana.
— É Suzan!
Com o que pudermos achar fazemos explosivos com os inflamáveis do laboratório, e partimos para a morte certa ou a salvação. Em grupo, os jogadores seguram pedaços de cadeiras quebradas fechando as laterais e a retaguarda, as meninas no meio segurando os explosivos com Rodolfo pronto para acende-los, e Jacob, o líder e eu guiamos o caminho.
Estranhamente a saída está calma, tão calma que rapidamente chegamos ao pátio principal que leva a entrada onde está nossa fuga. Mas o destino é imprevisível o bastante para nos trair.
— Sanna! Sanna me ajuda!- virei milagreira agora. O grito retumbante vem de uma das salas, por onde Rose desce a janela fugindo... daquelas coisas. O som é tentador como luz para as mariposas.
— Corram, corram agora!- o líder empurra todos em direção ao ônibus.- Me dá.- acendendo um explosivo ele joga na direção oposta a nossa, espalhando chamas pela grama. Isso atrasa provisoriamente.
Corajoso como um tolo, o líder vai em direção aos pedidos de socorros. E eu, como um mascote vou atrás, e Jacob milagrosamente segue. Rose estava ofegante, porém antes de atingir o chão a agarro voltando a correr.
Não olho para trás, mas ouço ossos sendo acertados e rangidos de dentes passando próximos a pele exposta. No ônibus, o esquisito é o primeiro a entrar pela janela com ajuda dos musculosos. Sem demora ele abre a porta para os outros.
— Alguém tem a chave?!- derrapo nos degraus quando uma mão prende meu pé.
— Não, solta ela!- Rose tenta me puxar e Augusto surge logo atrás fazendo o mesmo.
De prontidão ele desembarca e acerta a criatura que me segura, levantando-me para o ônibus. Mas antes que suba de volta, algo lhe atinge nas costas.
— Não fica parado aí, faz esse ônibus funcionar!- Suzan pegando um pedaço de pau e me acompanhando. Rodolfo como um bom criminoso faz ligação direta nos fios.
Acerto o que posso sem ser atingida, enquanto os outros jogadores jogam bomba e puxam o ferido para dentro. De visão periférica vejo Jacob encurralado dentro de um carro, e o líder tentando espantar os bichos do teto.
— Pegou!- Rodolfo comemora o roncar do motor.- Alguém sabe dirigir?
— Aprendo agora.- Suzan corre para dentro enquanto Rose me joga outra bomba, que arremesso acertando o chão próximo aos monstros.
Com a distração, os dois correm para o ônibus. Jacob é mais rápido, mas o presidente está cansado. Com a aproximação humanoide na sua nuca, disparo um soco que o derruba.
— Isso vai doer amanhã.- sem demora entramos, e as portas se fecham antes da partida.
Adrenalina grita pelas ruas quase desertas. A cenas da escola se repetem do lado de fora. Dos carros sobem fumaça e gritos, pelo chão sangue mancha e corpos se empilham retorcidos.
— Posso ver?- minha mão roxa é tomada pelo líder, que avalia atentamente.- Dói?
— Só até a alma.- ele sorri.- É o mínimo por ter me salvado.
— Tem razão. Estamos quites...- com delicadeza seus dedos apalpam o ferimento baixando um band-aid encima.- Ferdinã.
— Sanna.- apertamos as mãos. Nesse momento, o celular volta a tocar.
— Alfa Bravo?- apelido ridículo.- Conseguiu escapar?
— Da escola sim, dessa loucura, não.
— Vá até o antigo cais da cidade, os militares estão resgatando civis pelo porto e levando para fora do país.
— Para fora do país...? Isso é tão grave assim?- sussurro abismada.- Estamos a caminho, torre de comando. Alfa Bravo desligand-
Como mais uma armadilha da vida, o ônibus é atingido por um caminhão desgovernado que o arrasta para fora da estrada.
— Alfa Bravo? Alô? Tem alguém?! Sanna!!
Tu... tu.... tu...
O zumbido espalhava-se seguido de dormência pelas áreas atingidas do corpo. O cheiro de poeira fundido a ferro e gasolina se tonificava ao retornar dos sentidos corporais. Magnético estava o chão, a gravidade pesava. Vidros encravados na pele dividiam os poros vermelho-carmesim. O coração bombeava delirante atacado pela adrenalina, exigindo que o corpo estivesse mais confortável que ali naqueles escombros.
— A-ah... ai, minha perna...- no banco da frente de assento único próximo às portas, estava Rose despertando, tendo uma fratura exposta da perna direita. Ânsia subia à garganta a cada esforço para sair do lugar, para tentar ajuda-la. Essa vagabunda ainda é importante para mim, apesar do chifre que me colocou.
— Fica parada, eu tô indo.
— Que escolha eu... tenho?
— Pode escolher se mexer... E... ter uma hemorragia mais grave... e morrer.- a sua face se aquieta.
Vários corpos estão tortos, mal pode-se dizer se estão vivos ou mortos. Ferdinã se contorce, estando com o corpo dobrado sobre um assento. Seu ganir é de dor. O seu olhar amendoado demora para fixar em algo, antes de sair daquela posição o mais lentamente possível.
— Ferdinã... Ferdinã! Gasolina.- os seus olhos deliram pelas janelas destruídas, vendo que o caminhão desgovernado estava vazando combustível, que escorria até o ônibus, onde estamos.
— Entendi, vá na... argh, frente!- quatro braços não seriam o bastante para evitar uma catástrofe maior.
Deste lado da cidade, não foi avistado muitos humanos, então estávamos por conta própria. Rose range os dentes para não gritar, enquanto removo a sua perna de entulho de ferros. Agarrada por baixo do busto, ela esforça-se o máximo que pôde, sendo arrastada para fora do autocarro por uma moribunda: eu.
Deitada sobre o concreto, o casaco surrado é feito de travesseiro antes de a suas calças ser rasgada no ferimento expondo mais a sua angústia. Suspirando, os seus olhos pedem socorro.
— Fica aqui, longe do ônibus.- de improviso, Rose segura uma barra de ferro que estava próximo, mostrando não estar mais indefesa.
Capengando e caindo, rastejo para o veículo, acudindo Ferdinã que empurra Rodolfo para fora por uma janela despedaçada.
— Ai, aposto que estragou o meu cabelo...
— Não tanto quanto as suas costelas.- aperto a sua lateral, o fazendo gritar em desespero.
Um farfalhar adjacente atrai olhares. Pela cabine um homem salta, flexionando os seus músculos, e ajudando a pequena menina de antes a descer.
— Que bom que estão vivos.- Augusto sorri exibindo alegria por seus dentes ensanguentados. Posta no chão, a menina corre a meu encontro, abraçando-me.
— E-eu pensei que... você estivesse morta...
— Que azar, não é? Vá para longe...- com um último afago e sorriso fraco, empurro-a na direção de Rose.
Um, dois, três. Juntos retornarmos ao veículo, para buscar os outros. No entanto, Jacob está desaparecido. Busco como agulha no palheiro em escombros, antes mesmo de tencionar o estômago revirado. Sangue foge dos meus lábios.
— Droga...- os braços de Augusto sustentam-me, levando-me para fora dali, antes mesmo de notar a ferida nas suas costas tendo uma hemorragia.
— Ajudem ele...- os outros jogadores feridos o sustentam, enquanto sai do veículo. Diante disso, penduro-me para sair também cortando a mão num metal exposto. O líquido esguicha para fora.
— Desajeitada.- Ferdinã escarnia desajeitadamente segurando a minha cintura. Salto tomando impulso das suas mãos, e dependuro-me na beirada, o bastante para subir.
Em solo, há uma breve busca ao redor dos veículos por aqueles que ainda andam sem ajuda, mas não há sinal de Jacob. O cheiro inebriante de gasolina intensificou-se o bastante para assustar. Espaço foi necessário antes de uma mine explosão acontecer, tremendo o solo. O barulho foi alto o bastante para atrair... aquelas coisas.
— Sanna... Sanna, saí daí!- com o chão de nova moradia, a visão embaçada permite focar pouco no visual que se aproxima correndo.
Hiperventilando, arrasto-me para longe. Augusto com toda a sua exibição de força agarra a gola do uniforme surrado, e como um saco de batata me tira dali. Ferdinã pega escombros juntos dos outros alunos e arremessa contra aquelas coisas. O terror se instala permanente quando grito de Rose estoura.
De olhos esbranquiçados e dilatados, o ser de pele apodrecida agiganta-se por cima dela. Os seus dentes afiados expelem saliva a cada novo passo. A sua fissura se igualaria a de um animal demoníaco, se existisse um. Rose paralisa de medo.
— Eu sinto muito...- gesticulando com lábios trêmulos, saem tais palavras.
Impotente, observo o 'animal' avançar. Sabendo que não chegaria a tempo, os pés não se detém a correr, sendo impedidos apenas por algo mais rápido ainda que atravessa caminho.
Uma viatura faz a volta 'J', chovendo tiros contra o animal. Rapidamente, outras viaturas e comboios surgem nos cercando, dançando tiros contra as criaturas.
— Estamos salvos!- a menina comemorava aliviada, soltando lágrimas de emoção. Porém, a alegria durou pouco quando um deles passou despercebido saltando encima da menina.
— Sanna, pega!- falta tempo para processar de quem era a voz, antes de uma espingarda ser jogada na minha cara.
Engatilhando-a, disparo um tiro perfeito. A potência joga a criatura morta para longe, e o coice da arma empurra o meu ombro para trás, deslocando-o.
— FILHO DA-
— Assim não.- o suporte no corpo permite o meu desabo em dor.- Foi uma mira perfeita, não esperava menos de uma parente minha.
O orgulho do coroa militar não abafa os sons de tiros. Mas a cena de ver as pessoas sendo resgatadas e aqueles monstros sendo mortos, é relaxante o bastante para drenar adrenalina do sangue.
No comboio, espanto-me ao ver Jacob hospitalizado sobre um colchonete, tão cheio de ferimentos quanto qualquer um de nós.
— Ele ouviu-me chamar...- pai estende-me um celular (o meu) de tela trincada, mas com o fio de rádio improvisado conectado.- Estávamos a caminho, tudo que precisávamos era da localização exata de vocês... Jacob correu a nosso encontro, antes que o sinal sumisse de vez.
Olha-lo dormindo em paz parece egoísta demais, no entanto, estaríamos mortos senão fosse por isso. Quase cruel demais querer espanca-lo por ter me traído.
Obrigado, seu vagabundo.
Do veículo militar observo, os soldados retirarem os corpos sem vida do ônibus. Mesmo assim, vendo-os estirados e molengas no asfalto, ainda havia um desejo, uma fagulha de esperança de vê-los levantar e suspirarem porque a ajuda chegou rápido. Mas não, isso não aconteceu, e ver os soldados dizerem:
— Eles estão sem vida, senhor.- ao meu pai, é um castigo. O seu olhar vai de sério a apaziguador em segundos, observando o desalento no semblante da sua unigênita.
— Eu sinto muito que isso tenha acontecido...- o homem impotente demonstrava afeto singelo, parecia sentir culpa pelo infortúnio.
— É... eu também.
Os soldados descarregavam os corpos para um único carro e já nos outros sobrava espaço para os resgatados vivos, que oscilavam entre agradecer ou explanar dor.
— Atenção, código resgate. Mande reforços para a Estação de Fuga a Leste, estamos com sobreviventes que presenciaram a explosão, exijo extrema proteção.- o homem sequer aguarda resposta antes de desligar o aparelho. O seu carinho estava voltado para o ser mais importante da sua vida, notório tamanho amor somente pelo olhar.
— Por que estamos saindo da cidade, pai?- o espanto estava presente agora.- A rota leste... é pelos túneis de trânsito... levam para fora da cidade.
— Esqueci que te ensinei bem demais.- a sua risada é orgulhosa do trabalho que fez.- A cidade está infestada... por algo que escapou do caminhão que explodiu enfrente a sua escola. Algo que se espalhou rápido demais e infectou os animais.
— Então, aqueles seres deformados apodrecidos... são animais? Tipo... cães e gatos?
— Ratos e o que mais tiver um sistema neuronal idêntico a de animais.
— Eu estava no pátio principal quando isso aconteceu...
O terror estava espalhado de forma inexplicável, os alunos fugiam de algo veloz demais para olhos desfocados verem. Os gritos instalaram mais instinto de sobrevivência, porém a cereja do bolo foi redefinida em pavor saindo da traseira aberta do caminhão embargado na rua. Tinha quatro patas, sangue escorria da sua pele apodrecida e os seus dentes despejavam altas doses de saliva ao chão, e os seus olhos ludibriados pela loucura...
Jamais haveria de esquecer aquela cena, ainda mais descobrindo que tal ser seria antes atrativo para amor e pureza que somente animais podem carregar.
— Vi quando saíram da carroceria... sedentos por sangue.
— Aqueles animais estavam infectados...- o seu sussurro não cotidiano, deixa o espaço para a questão, que se esta frase seria uma pergunta ou uma afirmação.
A dúvida jamais seria sanada, não naquele momento. Os carros saíram em disparada deixando para trás o cenário de sangue, antes de uma explosão repentina ocorrer. Não haveria nada mais que cinzas e fumaça do ônibus escolar.
— Não sei o que ele fez para você...- o olhar recai sobre Jacob.- Mas esse rapaz é bom, deveria repensar...
— Tem razão pai, você não sabe o que ele fez.- retruco, impedindo suas palavras seguintes.
— Quando estiver pronta, estarei aqui para ouvir. Com certeza não foi tão mau quanto a sua mãe...- o seu rosto se retorce num sorriso amargurado, novamente cheio de sabedoria carregado pela idade, ele está certo.
Inesperadamente, o veículo freia com brutalidade fazendo com que pai e filha fossem jogados para mais dentro da carroceria. No ato, um impacto eminente ocorreu, desencadeando mais dor nas feridas já causadas; o pai presenciou de mãos atadas a sua filha expelir sangue pelos lábios já avermelhados.
— SANNA! Onde tiraram suas habilitações, seus imbecis?!- esbraveja, amaldiçoando o condutor, tentando atravessar com cuidado por cima de Jacob, para alcançar-me. No entanto, o famoso destino tende a ser traiçoeiro.
— Subtenente, não podemos passar! A estrada está engarrafada por todos os lados, devemos dar a volta!- o motorista brada, causando rugas no militar mais velho.
— Não se mexa, querida, eu já volto.- fala saindo do carro.
O cadete motorista não estava mentindo, não haveria por onde passar e eles teriam de ir pelo túnel mais longo, o que demoraria mais tempo para chegar a um local adequado para cuidar dos feridos, incluindo a sua própria filha.
— Que droga... O que estão esperando?! Deem a volta!- manda aos soldados que sem pestanejar obedecem à ordem. No entanto, entre os carros entulhados, ocorre uma movimentação estranha.
— Senhor, o que é aquilo?- da cabine de motorista o cadete aponta.
O Subtenente junta-se a mais dois soldados antes de ir verificar, não dando sequer cinco passos antes que uma pessoa gravemente ferida aparecesse.
— Soco... socorro...- era um homem aparentemente de meia-idade, coberto de sangue e mordidas que estavam notoriamente apodrecendo.- Me ajudem...
Os homens iriam se aproximar, porém se detiveram ao observarem os olhos do homem dilatando de forma avulsa. O rosnar que saia da sua boca se igualava ao rosnar dos animais infectados.
— Senhor, se mantenha afastado, chamaremos ajuda.- o militar no comando diz, mantendo firmeza ao falar.
— So-... socor... ro... me aju-judem... grrr...- o homem desobedecia à ordem dada, fazendo com que os cadetes apontassem as miras para ele.
— Não atirem, é uma pessoa.
— Mas senhor, ele não parece mais uma pessoa!- indagou um cadete.
— Ele está doente devemos, leva-lo a base para os cuidados.- afirma, mostrando uma fita de algemas descartável.- Senhor, fique parado, irei colocar isso em você e leva-lo até a base para devidos cuidados.
O homem rosnava loucamente demonstrando hostilidade, mas por ser um militar treinado o conteve facilmente.
— Pare de resistir, senhor, é pro seu bem! AH!
De repente o militar grita, recebendo uma forte mordida na canela. Um cadete não se conteve e acabou atirando, matando uma criança infectada que aparecerá por entre os carros.
— Desculpe, senhor! Não tive escolha!- rapidamente se desculpou, temendo pelo castigo que receberia, mas o seu olhar foi atraído para uma nova movimentação por entre os veículos.
Igualmente todos os militares seguiram a sua visão, tendo uma surpresa. Aquele homem contido não era o único infectado, haviam centenas de infestados ali, incontáveis até para eles.
— Recuem, recuem.- o Subtenente manda jogando o homem no chão.- Voltem para os carros, agora. Atirem se necessário.
Sobre a mira das armas aqueles seres infectados não recuam. Observo com espanto as pessoas se aproximando velozmente, igual aos animais carniceiros.
— Eu mandei não se mexer, Sanna.- meu pai diz vislumbrando minha figura manca, e corre recuando até mim, baixando a sua mão sobre os meus cabelos desgrenhados.- Tão teimosa, criatura.
— É natural.- respondo, reclinando-me sobre o seu toque, vendo a ferida sangrando no seu tornozelo.- Pai, está ferido! Como se feriu?!
A demonstração de afeto foi interrompida quando tiros for disparados. Os doentes estavam se aproximando cada vez mais.
— ARGH! GRRR!
— Papai?!- diante de mim ele cai no chão retorcendo-se de dor, cuspindo sangue fresco que pinta o chão.
Sem reação imediata, atento-me a arma engatilhada que tomo de sua mão. Hesito em disparar, mas ao ver o vermelho-carmesim saindo de seus lábios, a visão dos cães infernais retorna. Disparo precisamente em qualquer coisa que possa acertar, sem saber onde estou acertando.
— Pai, vamos! Temos que entrar!- dependurando-se nos ombros da filha, ambos nos apoiamos em direção ao veículo. Nisso, um cadete buscou dar cobertura passando a frente e atirando nos infectados.
— Vem, papai... você vai ficar bem...
— Sanna..., minha filha... foge...!!! ARRGH!!
Destilando mais sangue, ele se dobra sobre os joelhos no chão e incapacidada observo meu pai sofrer uma mutação perigosa. Recuo para trás abismada, mas não rápido o bastante para fugir do seu bote. Como um animal, meu pai salta para cima de mim envolvido pela loucura e desejo por carne.
Prendo seus dentes colocando a arma entre nós dois, mas claramente a diferença de força.
— Pai... para! Por favor, sou eu, sua filha...- não havia resquícios do homem que um dia ele forá. Só havia um monstro. Um monstro que eu não mataria.- Pai, por favor...- lágrimas escorrem.- Sou eu, a Sanna... você resgatou-me, não lembra?
Nada. Apenas rosnar e ranger de dentes atrás de mastigar algo. A cada novo impulso, mais perto os seus caninos chegavam do meu pescoço, e menos força restava-me.
— Eu te perdoo.- sussurro deixando a arma ser arrancada de mim. Fecho os olhos sentindo a pressão dos seus dentes na minha pele do meu rosto, mas a dor não chega.
— Fu-... fuja-arr...
— Pai!- levanto o seu rosto bem a tempo de ver uma bala atravessando a sua testa, e o seu corpo mole cair em cima de mim.
— Não, não, não, não! PAI!- desespero seria pouco para descrever aquela situação. Busco o revólver do coldre dele, e miro para a direção do disparo.
Mal engatilho a arma antes de alguém torcer o meu pulso e desarmar-me. Com fúria misturada ao luto tento atacar as cegas, sendo imobilizada em seguida.
— Não resista, Sanna!- o cadete solta o seu fuzil e corre até o corpo do meu pai, o jogando sobre as costas.- Vamos sair daqui.
— O meu pai... me solta! Você matou ele!- as lágrimas não são mais contidas, a vergonha de chorar em público não existe mais.
O agente que me prenderá, guarda a sua arma retirando um lenço e entregando a chorona eu, que a recusa firmemente. Suspirando exasperado, com um pouco mais de brutalidade ele esfrega o pano no meu rosto, mais misturando do que limpando aquela bagunça que estava ficando.
— Sanna!- a menininha grita do veículo, em pleno desespero a beira de lágrimas.- Volta, Sanna, volta! A senhora tem que voltar, não me deixa! Por favor...
Foi aí então que eu desmoronei. O agente segurou-me, abraçando o seu corpo no meu levou-me até a carroceria da menina. Pensando que seria disposta ali, nem sequer relutei ou observei o caminho, notando apenas no último instante que fui levada para um carro diferente. Carro dos agentes especiais.
Nele estava disposto o corpo coberto por um lençol cinza, responsável pelo derramamento das minhas lágrimas.
— Pode chorar... ninguém aqui está vendo. - talvez para confirmar suas palavras, ele olhou para cima oferecendo seu ombro. Observei, os outros agentes que subiam no camburão também pareciam não me ver ali. Tal gesto foi inesperado, gentil o bastante para acertar a ferida recém-aberta.
Naquele dia eu chorei tanto quanto jamais choraria na vida no ombro de um desconhecido. Mal sabia eu a próxima surpresa que o destino estava reservando.
Para mais, baixe o APP de MangaToon!