...PASSADO...
— Cadê a princesinha do papai?
— Aquiii — gritou ela saindo do esconderijo atrás do arbusto, mas não avistou o homem. — Papai?
Alice olhou ao redor.
— Papai? — chamou novamente, mas estava sozinha.
De repente o vento soprou tão forte que a fez estremecer. Assustada, saiu correndo pela calçada até esbarrar em alguém e o choque fazê-la cair de bunda no chão.
— Cuidado menina — disse a mulher.
Alice via apenas os pés da estranha que calçava um par de sapatos de cor vermelha, assim como o lábios que a menina, amedrontada, avistou quando ela ahachou-se o suficiente para que pudesse ver parte de seu rosto, que tinha metade coberto pela aba do chapéu que usava. A menina viu surgir um sorriso perverso que fez um arrepio passar por seu pequeno corpo.
— Sabe de uma coisa? — disse a mulher diante dos grande olhos assustados daquela criança. — Diz a lenda que há uma bruxa nesse parque, que devora criancinhas feito você.
O grito de Alice pôde ser ouvido ao longe. A menina rapidamente ficou de pé e correu o mais rápido que pôde.
— Que maldade — disse a senhora pequena com rosto enrugado e corpo já um tanto curvado devido a idade, parando ao lado da outra. — Consegue sentir o medo dela?
Charlotte nada respondeu, mas a outra sabia que sim, ela tinha a capacidade de sentir o que os humanos sentiam.
— Não tem vontade de possuir seus próprios sentimentos? — perguntou Madalena. — Acredito que um dia, quando cumprir sua missão aqui, conseguirá sentir também. Alegria, raiva, medo, amor...
— Amor? — Ela tinha o olhar vago. — Quando isso acontecer, quando cumprir minha missão aqui, creio que irei apenas... desaparecer.
— É o que mais deseja, não é? Sumir. Mas eu acho que algo nesse mundo ainda vai te fazer mudar de idéia.
— Seus sentimentos de esperança quanto a mim são admiráveis Madalena, perduram por longas seis décadas.
Charlotte balançou um pacote de jujubas que tinha em mãos.
— Onde conseguiu isso?
— Estava no bolso da menina.
— Oh, vejo que mesmo após seis décadas de servidão você ainda consegue me surpreender.
Havia chegado o momento de Madalena, após longos anos servindo Charlotte. No início ela a considerava um irmã, mais tarde um filha. Já a mulher não tinha sentimentos humanos, por isso não era capaz de sentir-se como ela, por mais que apreciasse sua presença e todos os anos de servidão.
A linhagem de Madalena está fadada a servir Charlotte, geração pós geração, mas a pequena mulher nunca encarou aquilo como um castigo ou maldição. Foi de bom grado, mesmo deixando para trás o filho ainda pequeno. Naquele momento ela precisava partir e em seu lugar ficaria o homem, que desde pequeno já sabia qual seria próprio destino, ao contrário da filha, aquela garotinha amedrontada.
— Ela sequer tem idade para entender que não a abandonei. — Lamentava o homem, andando de um lado para o outro. — Alice crescerá sem saber o próprio destino. — Ele olhou Madalena, trêmula, mantendo-se por um fio de vida. — Diga alguma coisa!
— Você demorou a ter filhos, agora chegou meu momento, nada posso fazer — explicou.
— Maldita família! — gritou ele.
— Sequer deseja se despedir de sua mãe? — questionou Charlotte, que estava sentada em sua poltrona de couro, retirando uma jujuba do pacotinho. Ela observou a mesma entre os dedos por um momento. — Humanos... — Em seguida arremessou o doce em direção ao homem. A pequena guloseima na mão, aparentemente delicada da mulher, ganhou poder e força suficiente para arrebata-lo fazendo com que caísse de joelhos devido a intensidade da pancada.
Charlotte ficou de pé e se aproximou dele.
— Sua filha terá um longo caminho até aqui. Então conforme-se com seu destino. Ela cuidará do próprio, quando chegar o momento.
...PRESENTE...
...POV Alice...
...(Mensagens)...
...Marcela: "Como foi a sessão hoje?"...
...Alice: "Estranha. O lugar era sinistro. Fico toda arrepiada só de lembrar."...
...Marcela:"Você e esses seus arrepios."...
...Alice:"Sério, nada me tira da cabeça que sou médium ou seja la o quê.Tinha algum espirito ruim naquela casa.'...
...Marcela: "Ai Alice, para com isso! Sabe que fico assustada quando começa a falar dessas coisas."...
...Alice: "O pior você não sabe. Teve uma foto que eu juro, vi alguma coisa nela."...
...Marcela: "Para! Não quero saber, é muito assustador."...
...Alice: "Medrosa!"...
...Marcela: "Nem parece que é cagona também."...
...Alice: "Sou mesmo, mas agora estou na casa da Íris, tá rolando festinha e estou tranquila."...
...Marcela: "Curta aí, pois estou em casa sozinha e não quero saber desses seus papos sinistros."...
...Alice: "Devia vir!"...
...Marcela: "Sabe que não gosto dela. Me deixa quietinha aqui. Amanhã você vai comigo, não é?"...
...Alice: "Por que? O Pedro devia ir contigo ué, seu marido"...
...Marcela: "Queríamos muito, mas não tem como ele desmarcar um compromisso de trabalho."...
...Alice: "Ok, vamos lá fazer essa consulta. Não vejo a hora de ser titia!"...
...Marcela: "E eu mamãe!"...
...(...)...
Atravessando a sala observei o relógio que marcava nove e meia. Ao me aproximar das janelas puxei as cortinas de uma vez para que a luz entre no apartamento.
— Perfeito, um dia nublado. — Voltei a fechar as cortinas e segui em direção a cozinha.
Eu tenho pavor a dias nublados. Era impossível evitar a lembrança de que foi em um dia como esse que aconteceu, meu pai foi embora, simplesmente sumiu. deixando a mim e minha mãe, que anos depois, justamente em um dia nublado, tirou a própria vida ao descobrir um câncer.
— Odeio dias nublados — falei enquanto enchia uma xícara de café observando a geladeira onde havia um bilhete preso por um ímā.
"Nós vemos a noite. Beijos"
Deixou Íris.
Suspirei pesadamente.
Não é que eu não amasse mais ela. É que eu nunca realmente a amei. Eu sabia disso, mesmo assim estávamos juntas há seis meses, porque ela me amava e me mimava.
Nunca senti necessidade de dar e receber carinho, mas com Íris eu estava tentando sentir alguma coisa, só que o tempo foi passando e nada vinha acontecendo dentro do meu peito.
Meu telefone tocou lá na sala.
Larguei a xícara sobre o balcão e enquanto seguia até ele lembrei que na verdade era o despertador com o lembrete da consulta de Marcela.
Quando saí de casa já passava do meio dia. Eu tinha alguns minutos até chegar ao consultório, onde nos encontraríamos. Marcela já me ligava enquanto eu entrava no táxi, mas decidi mandar apenas uma mensagem avisando que logo chegaria.
Durante o percurso troquei mensagens com Íris e a modelo com quem trabalhei no dia anterior. Assim me mantive distraída até o carro parar e eu rapidamente me preparar para sair, mas antes notei que estávamos em um lugar diferente.
— Com licença, acredito que aqui não seja o endereço correto.
— Perdão, mas o GPS indicou esse
endereço.
Confusa, olhei para fora da janela, podendo ver os imensos portões de ferro pertencente a uma propriedade claramente antiga.
Definitivamente aquele lugar não era a clínica onde encontraria Marcela, mas mesmo assim desci do carro encarando a casa e estranhamente os imensos portões se abriram naquele exato momento. Eu não sabia porquê exatamente, mas era como se uma força maior estivesse comandando meus pés, fazendo com que desse cada passo que levava até às portas daquele casarão.
Mal me aproximei da porta da frente e me assustei com o ranger da mesma ao ser aberta de repente. Meu coração acelerou e pela décima vez em poucos minutos. E novamente me perguntei o quê estava fazendo ali.
— Chegou bem na hora! — disse uma moça surgindo à minha frente, vindo em minha direção. — Ela está te esperando. — Um sorriso brilhante surgiu em seus lábios. — Venha!
Eu sentia um frio na barriga. E mesmo não sabendo o quê estava acontecendo, me deixei ser guiada para o interior da casa que por dentro parecia ainda maior, com imensas escadarias por onde a estranha subia. Tentei segui-la de perto, mas era tão rápida que quase tive que correr até chegar em um corredor. O papel de parede era rústico, antigo, mas não era desgastado, pelo contrário, parecia recém colocado. Quem teria tal gosto para decoração em pleno século XXI?
A estranha abriu uma porta por onde uma luz forte surgiu.
— Entra! — incentivou.
Me aproximei devagar até finalmente parar diante daquela luz. E por estranho que pareça não dava para ver exatamente o quê havia lá dentro.
Definitivamente isso não é normal. Dei um passo atrás.
— Vai, boba!
A luz branca quase me cegava.
— Quem está me esperando aí? — Ousei perguntar.
— Vai logo! — Insistiu ela, ainda com um sorriso.
Mesmo ainda incerta, me aproximei devagar, mas quanto mais entrava, mais claro parecia o lugar.
Um vento forte bateu em meus cabelos de repente, me fazendo arrepiar. Até que, de repente, pude ver a pracinha onde costumava ir quando criança.
— N-não é possível. — Virei em direção a porta, mas não havia mais nada atrás de mim.
Olhei ao redor, assustada.
Como era possível? Em um minuto eu estava naquela casa e de repente ali, naquele dia nublado.
Um grito me assustou.
É uma criança? Olhei novamente ao redor e avistei uma menina.
— Ela não é adorável? — disse alguém.
Praticamente saltei ao ouvir a voz a meu lado.
— Quem diria que se tornaria... Você.
— O quê... ?
— Perdão, a grosseria. — Ela estendeu a mão. — Charlotte.
Olhei a palma da estranha, mas não tive coragem de corresponder ao gesto.
— Seus pais não te ensinaram bons modos, menina? — Ela sorriu. — Oh, lembrei que você é órfã.
— Quem é você? E onde... estamos?
— Alguém que veio te contar uma historinha, Alice.
— Sabe meu nome? — Dei um passo atrás.
— Não tema, eu não faria nada contra você, nem mesmo se quisesse. — Ela tinha uma indiferença na voz e no olhar que me impossibilitava decifrar se estava sendo verdadeira. — Mas vamos lá. Era uma vez um homem que levava uma vida pacífica fazendo seu trabalho, até que um dia ele simplesmente desapareceu. Agora sua linda filha precisa continuar esse trabalho e quem sabe até ajudar a encontrá-lo
— Do quê está falando?
— Seu pai sumiu. E isso te obriga tanto a ocupar o lugar dele, quanto ajudar a descobri o que aconteceu.
— Meu pai?
Observei ela caminhar em direção ao balanço. Naquele momento um forte vento bateu em meu rosto,bme obrigando a fechar os olhos rapidamente e quando voltei a abri-los estávamos em uma sala, onde ela já estava sentada numa poltrona de couro marrom, tomando uma bebida avermelhada, assim como o vestido que usava.
Tudo o que ouvi a seguir era absurdo e sem pé nem cabeça. Então absorvi apenas a parte que me interessava.
— Então meu pai trabalha para você e agora quer que eu o encontre? Ele estava vivendo nessa casa o tempo todo, sabendo quem sou e onde moro, mas nunca me procurou? E agora quer que eu o encontre?
— Vejo que entende apenas o que quer — disse ela.
— Nada do que me disse faz sentido. Não sei o quê estou fazendo aqui, mas nada que envolva meu pai me interessa.
Segui em direção a porta onde ao abrir me deparei com ela. Meu coração quase saltou no peito. Tive que olhar para trás, conferindo que não estava mais sentada na poltrona.
— C-como...
— Isso é tão cansativo. E olha que nem mesmo canso como os humanos. Realmente não gostaria de ter que ficar explicando, mas é necessário, então... Sente-se.
Eu simplesmente pisquei e estava sentada na poltrona.
— Mas...
Minha mente estava girando com tudo o que ouvia sobre vida, morte, almas, maldição e toda uma história absurda contada por aquela estranha que seguia falando enquanto andava de um lado para o outro, com seu par de sapatos vermelhos. Me deixando tonta e cada vez mais confusa.
Ela não parecia disposta a desistir até que eu acreditasse naquelas loucuras, então decidi tentar ver as coisas como se fossem verdade para chegar a uma conclusão e dar um fim a aquela conversa.
— Como eu disse, nada disso faz sentido, mas seguindo uma lógica, se tudo isso que me diz for verdade, então você não deveria ser capaz de encontrar meu pai? — falei, ficando de pé. — Se ele é seu... Servo, empregado, ou seja la o quê, encontre-o você mesmo!
Eu sentia rancor ao tocar naquela palavra; pai. Ele simplesmente desapareceu nos deixando desamparadas. Não conseguia evitar culpa-lo pela desistência de minha mãe pela vida. Ela havia sofrido com seu desaparecimento e não foi capaz de suportar mais nada. Passei a vida me virando sozinha para ao menos existir. Enquanto isso ele esteve alí, naquela mansão o tempo todo, sem se dar ao trabalho de saber ao menos como eu estava.
— Agora você me pegou. — Apontou para mim e no mesmo momento sentei, como se algo tivesse me empurrado para trás obrigando a ficar alí. — Eu deveria, não é mesmo? Não entendo. É como se a existência dele tivesse sido apagada de uma hora para outra. Ele não atravessou.
— Atravessou?
— Para o outro lado. Ele não seria capaz de atravessar sem passar por mim. — Ela pareceu concentrada nos próprios pensamentos, sem parar de andar de um lado para o outro. — Em toda minha existência nada como isso aconteceu. Todos vocês cresceram, tiveram filhos, me serviram e morreram. Agora isso?
— Em toda minha existência algo assim também nunca me ocorreu. — Novamente fiquei de pé. — Inclusive, espero que nunca mais aconteça. — Segui em direção a porta enquanto falava. — Não posso ajudá-la sobre o homem que diz ser meu pai.
— Alice, não complique as coisas para você mesma.
Ouvir ela dizer, mas eu já saia rapidamente.
Quando cheguei na clínica pensei estar terrivelmente atrasada, mas encontrei Marcela ainda à espera para ser atendida. O tempo aparentemente não havia passado como imaginei. Talvez eu tenha surtado e nada daquilo tenha realmente acontecido.
— Estou nervosa — disse Marcela apertando minha mão. Ela estava gelada.
— Vai dar tudo certo! — tentei tranquiliza-la.
— Deu certo, ela está grávida.
Quase pulei de susto ouvindo a voz ao meu lado, onde virei me deparando novamente com aquela mulher.
— O-o que faz aqui? — perguntei.
— O quê? — perguntou Marcela do meu outro lado.
— São gêmeos — disse a tal Charlotte.
— O quê? Você tá louca? Vai embora daqui!.
— Alice do quê está falando? — perguntou Marcela. — Vamos, preciso entrar.
Ela levantou indo para a sala e eu ainda olhei na direção da estranha, mas logo segui, ignorando o quão perturbador aquilo conseguia ser.
...(...)...
— Parabéns mamãe, são gêmeos — afirmou a médica, enquanto fazia a ultrassom.
Minha amiga ficou prestes a chorar, assim como eu que acompanhei de perto toda a ansiedade e seu desejo de ser mãe.
— Viu? Eu disse.
Quase pulei de susto novamente. Meus olhos saltando ao ver Charlotte ao lado da médica.
— Por Deus!
— O que foi Alice? — perguntou Marcela.
— Essa mulher — falei.
— Que mulher?
Marcela me encarava confusa. Só então, analisando a situação, percebi que ninguém mais se importava com a presença dela alí.
— Elas não me vêem, Alice.
— Você é um fantasma por acaso?
— Por que está falando dessas coisas estranhas justo agora, Alice? — perguntou Marcela, claramente chateada.
— Desculpa amiga.
Eu tive que me esforçar para ignorar a presença de Charlotte, caso contrário minha amiga ficaria uma fera comigo, mas aquela mulher parecia disposta a me provar que tudo o que disse era verdade. Como se eu precisasse de mais alguma prova além do fato dela ter aparecido no banco de trás do carro de Marcela, enquanto seguiamos para a casa dela.
Eu me sentia desconfortável, mesmo nos momentos em que ela desaparecia. Sabia que a qualquer momento voltaria a aparecer, me assustando novamente.
— Você tá muito estranha hoje, Alice — dizia Marcela colocando um copo sobre o balcão, onde eu estava sentada em um banco a espera do suco que ela prometera. — Não me diga que ainda é aquele lance de mediunidade.
— É quase isso — confessei.
— Não acho que seja uma boa idéia contar sobre mim para sua amiga grávida, Alice. — Novamente ela estava lá, ao meu lado, encostada ao balcão. — Não é como se eu fosse um fantasma.
— Para mim é a mesma coisa — falei entredentes tentando ao máximo disfarçar, para que Marcela não percebesse. — Na verdade, eu acho que vou embora amiga, tenho muito trabalho hoje. — Me apressei já levantando.
— Mas já? Tenho o dia livre e o Pedro só chega a noite.
— Eu queria muito ficar, mas... — Olhei em direção a tal Charlotte que acenou para mim. — Estou bem enrolada.
Nem tive tempo de curtir o momento ao saber que minha amiga estava grávida de gêmeos.
— Sinto que vou enlouquecer — falei batendo a cabeça no vidro do carro enquanto voltava para casa.
Por sorte, depois da casa de Marcela a estranha não voltou a aparecer e eu tive o resto do dia livre para pensar em formas de me safar, antes que os últimos neurônios que me restavam explodissem de vez.
Eu pensava que só mesmo uma festa com os amigos de Íris para me ajudar a lidar com toda a loucura que aconteceu naquele dia, mas nada parecia me deixar calma e esquecer aquele par de olhos que estavam sempre em minha memória.
Na minha mente, ela surgiria de todos os lados, a qualquer momento.
— Preciso sair, vou tomar um ar. Aqui tem uma nuvem de maconha que está me sufocando — falei o mais próximo possível do ouvido de Íris, que apenas confirmou.
Saí de dentro da casa e chegando no gramado da frente finalmente pude respirar fundo. Me perguntava se devia ou não sentar ali no chão, quando barulhos de tiros vieram de dentro da residência.
Assustada, trouxe a mão ao peito, ouvindo também a gritaria que vinha de lá.
Logo algumas pessoas saiam pela porta da frente e outras pelas janelas, desesperadas. E eu estava praticamente paralisada devido o susto.
— Alice? — Ouvi ao meu lado Matheus, um carinha da roda de amigos de Íris. — O que eu faço?
— Quê? — Meus olhos desceram até sua barriga, onde havia uma imensa quantidade de sangue. — Meu Deus! — Olhei ao redor e as pessoas passavam correndo de um lado para o outro. — Você precisa de uma ambulância agora!
— Alice? — gritou Íris se aproximando.
— Íris, o Matheus...
— Sim, o Paulo matou ele, Alice!
— Ele precisa de uma ambulância. — Olhei na direção de Matheus que ainda estava de pé, ensanguentado, me olhando.
— Já chamaram, mas ele tá estirado no chão da cozinha, os meninos confirmaram que ele não tem pulso. O Paulo fugiu!
— Mas ele... — Novamente olhei de um ao outro e Íris não parecia realmente vê-lo alí, assim como eu.
— Vamos embora, não quero tá aqui quando a polícia chegar!
Íris saiu correndo.
— O que eu faço, Alice? — Matheus perguntou
Eu estava em choque.
— O que tá acontecendo? — Dei dois passos atrás, antes de correr seguindo Íris, mas esbarrei em algumas garotas que saíam e quando virei, lá estava Matheus novamente, ensanguentado.
— O que eu faço?
— Como vou saber? Vai pra luz! Me deixa! — Voltei a correr até chegar na calçada da casa, onde avistei Íris saindo com o carro em alta velocidade. — Aquela desgraçada me deixou aqui.
— Alice? — chamou novamente Matheus.
Passei as mãos pelos cabelos, desesperada.
— Já sei, aquela... Charlotte! Droga, eu não tenho o número dela.
— Me chamou?
Arregalei os olhos quando ela surgiu diante de mim, segurando uma garrafa e uma taça, o que me fez franzir o cenho.
— Como você...
— Temos ligação direta. — Ela encarou Matheus, que olhando melhor, de fato já me parecia estar morto. — Muito bem pequena Alice, está começando a entender seu trabalho.
— Meu trabalho? Você quer dizer que... — Um dos caras que saiam desesperados passou por mim esbarrando.
— Sai do meio maluca! — gritou ele.
— Presta atenção seu babaca, imbecil! — gritei de volta.
— Quer que eu quebre as pernas dele? — perguntou Charlotte.
— Você pode fazer isso?
— Claro que não — respondeu me fazendo revirar os olhos. — Tudo bem. Vamos lá? — disse ela para Matheus. — Quer vir com a gente?
— Eu quero que você tire ele de perto de mim.
Em um piscar de olhos os dois simplesmente desapareceram.
...(...)...
— Ok, recapitulando. Você é tipo um ceifeiro — falei enquanto caminhava pela sala, diante de Charlotte, que sentada na poltrona parecia nem prestar atenção a mim. — É responsável por mandar as almas para seja lá onde for. Digamos que entendi essa parte. Agora, você não me explicou o motivo de meu pai, ou melhor, minha família ser condenada a servidão e porquê eu tenho que ver fantasmas por aí. Por que só agora estou vendo essas coisas?
— Não expliquei porque não sei o motivo de ser exatamente a sua família. — Charlotte circulava a taça com aquela bebida vermelha que balançava de um lado para outro.
— Como não? Você mesma disse que tem quase um século de existência. O minimo que precisa fazer é me explicar toda a história direito!
Ela levantou e caminhou em minha direção. Eu estava em pé, com as mãos na cintura em uma postura que mudou completamente devido sua repentina aproximação.
— Para ser bem sincera, não lhe devo explicações, mas como você é a primeira a chegar até mim de maneira prematura, achei necessário contar ao menos o básico.
Engoli em seco sob aquele olhar.
— T-tudo bem — falei. — Mudando de assunto. Quem é aquela moça que me recebeu naquele dia?
— A Laura?
— Ela também é sua serva?
— Ela é apenas uma alma presa a um passado trágico — explicou.
— Uma alma... Ela está morta? — perguntei horrorizada.
— Há uns dez anos, eu acho.
— Mas, mas... Você não devia manda-la para o tal outro lado?
— Como eu disse, ela está presa a um passado trágico.
Fiquei pensando sobre aquilo, ainda tentando entender.
— Agora voltando ao que interessa. Tudo o que contei é seu destino e não há como fugir dele, não importa onde vá. Recorrer a mim será inevitável, você viu. A partir do momento em que seu pai desapareceu, cabe a você trazer as almas perdidas até mim.
— Eu realmente vou ficar vendo pessoas mortas? — Era difícil acreditar e mais ainda aceitar. — Sou como uma ponte que trás os mortos até você? Como posso viver assim?
— É aí que entra a parte mais importante. Se aceita um concelho, deve manter distância de todas as pessoas com quem tem algum tipo de ligação. Seja amizade ou relacionamento amoroso.
— Por que?
— Pense bem, você tem ligação com os dois mundos. E nesse mundo existem espiritos dos quais não vai gostar de encontrar, porém é inevitável. Eles não podem te fazer mal, não tão facilmente, mas são cheios de artimanhas e vão querer arrancar de você alguma coisa, sendo assim, podem usar pessoas indefesas próximas a você.
Me peguei pensativa diante de suas palavras.
— Você quer dizer que... — Caminhei pela sala, indo até a janela onde me apoiei, buscando forças para suportar aquele sentimento que crescia em meu peito. — Meu pai não voltou para proteger a mim e minha mãe?
— Não faça isso. — Seu tom era de alerta.
— O quê? — Funguei, sentindo uma lágrima rolar por meu rosto.
— Ficar triste, chorar...
— É inevitável. — Tentei secar a lágrima com as costas da mão. — Até parece que se importa. Você é a causa disso tudo!
— Eu de fato não me importo. Porém, posso sentir tudo o que está sentindo agora — explicou. — E garanto que é um dos piores sentimentos humanos.
Só então virei para encara-la.
— Você... Sente? Como?
— Sentindo — falou, indo até o aparador no canto da sala, onde encheu novamente a taça. — Explicando melhor, eu sou como uma esponja de sentimentos. Quando uma alma está prestes a fazer a passagem absorvo dela todas as dores, todos os sentimentos que poderiam vir a interferir naquele momento e na outra vida.
— Isso parece ruim.
— Não é o que vocês chamariam de bom, mas é rápido. Logo tudo se desfaz. Quando estou diante de você, uma humana, posso sentir tudo o que sente. Alegria, dor, entre tantos outros. Isso sim é bem pior, porque seres humanos carregam sentimentos constantemente. Eles não dão uma trégua. Por isso me mantenho o mais longe possível. Nesse exato momento você está tão concentrada no que digo, mas ainda sinto sua tristeza. E acredite, seu pai passou longos anos carregando dor dentro de si. Não foi agradável tê-lo por perto, até que finalmente estivesse disposto a se livrar disso.
— Eu-eu sinto muito.
— Por que?
— Porque isso parece horrível. Eu sequer consigo lidar com meus próprios sentimentos, imagina só ter que suportar também o dos outros.
— Bom, pelo menos eu não os tenho.
— Como assim?
— Eu não sou humana, Alice. Então, não tenho sentimentos. Simples.
Parecia simples ouvindo, mas ainda não me parecia nada bom.
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