O carro preto e reluzente acelerava pelas ruas silenciosas e acinzentadas da cidade, já passava da meia-noite e poucas luzes estavam acesas ainda, além disso, o asfalto parecia ainda encharcado pela tempestade que caíra horas atrás. Elui ajeitara o terno cinza feito sob medida durante uma pequena parada no farol, a janela entreaberta deixando uma rajada de ar frio penetrar o conforto do carro. Ele suspirou fundo enquanto milhares de preocupações o inundavam.
A agência imobiliária da sua família não ia bem, e embora Elui trabalhasse dia e noite para dar mais resultados, trazendo mais clientes, casas e vendas; nada parecia dar certo, nenhum negócio significativo era fechado. Quando seu pai o nomeara CEO da empresa e se retirara para longas férias na Itália com sua nova esposa, ele imaginara que poderia entregar resultados tão bons na reunião de fim de ano que enfim seu pai deixaria de ligar perguntando das vendas, mas de cá para lá, as coisas só pioraram e consequentemente, as ligações apenas aumentaram. A última coisa que ele queria era que seu pai cancelasse a viagem por sua causa, afinal, isso só provaria o quão inútil ele era.
Falando no diabo, o celular jogado no banco do carona brilhou, exibindo a foto que Elui tirou com o pai no último feriado antes da viagem. Ambos sorriam, felizes e animados com o futuro que não chegou. Elui não queria falar com ele agora, não quando acabara de perder uma mansão de 139 milhões e uma comissão recheada para uma das agentes novatas de uma concorrente...
O celular apagou e Elui respirou fundo. “Ligo amanhã cedo” pensou, piscando para afastar o sono que ameaçava invadi-lo. No entanto, uma luz branca e brilhante veio em sua direção, cegando-o. Elui tentou colocar o braço na frente para ver, mas quando finalmente chegou próximo o suficiente para que ele pudesse ver, o caminhão o atingira em cheio, estilhaçando o pequeno e rutilante carro.
Anna havia finalmente terminado de limpar o apertado estúdio alugado. O colchão sem suporte havia sido colocado sobre uma pequena pilha de papelões para não ficar no chão e as roupas que usaria amanhã para procurar emprego, estavam organizadamente separadas em cima da mala vermelha e surrada. A garota se sentou no chão frio de piso bege claro e respirou fundo, apreciando o silêncio e a liberdade que pairavam no ar.
A garota se sentia verdadeiramente alegre, como se uma onda de energia da ponta dos pés ao último fio de cabelo. Não tinha trabalho, mas podia recomeçar em uma nova cidade, e por enquanto, a possibilidade lhe bastava.
Animada demais para simplesmente deitar e dormir, Anna decide caminhar e conhecer seu novo bairro. O ar estava frio, mas mesmo assim, a garota decidiu andar até uma cafeteria que havia visto à algumas quadras dali. Enquanto isso, Anna se permitiu apreciar os prédios, o ar puro; e até mesmo os vizinhos, que gritavam um para o outro em uma conversa animada pela janela.
O céu exibia suas estrelas como uma joalheira, até que o barulho amedrontador de um acidente assustou a garota. O automóvel diminuto havia sido praticamente soterrado pelo caminhão, as cordas que seguravam longos e grossos caules partiam-se, quase em slow motion, pendendo na direção do carro.
Imediatamente, a garota correu até o mesmo para tentar ajudar; os braços finos e expostos lutando para abrir a porta do motorista, onde Elui estava desmaiado. Tateando, Anna viu que uma das toras havia escorregado e prendido o encaixe do cinto, impossibilitando-a de soltá-lo.
Por fim, o capô do carro liberava uma fumaça escura que transformou se em pequenas chamas, alertando Anna, que, desesperada, agarrou um estilhaço longo do vidro quebrado e, mesmo que estivesse cortando a própria mão no processo, batalhou contra o tecido do cinto, que enfim cedeu.
Anna retirou Elui de perto do carro aos tropeços, e enfim conseguiu afastá-lo o suficiente para ligar para uma ambulância.
— Ei! — ela chamou-o, balançando levemente seus ombros em busca de um sinal de consciência.
Usando todas as forças que lhe restavam, Elui abriu os olhos para respondê-la, mas incapaz, tornou a desmaiar.
Anna fitava o chão claro e liso do hospital com o olhar perdido.
— Você é a acompanhante de Elui Tomanzini? — uma enfermeira baixa se aproxima e pergunta a Anna, que a observa confusa.
— O moço que sofreu o acidente de carro? — diz, e a garota confirma rapidamente com a cabeça, bocejando.
— Como ele está? — pergunta ela.
— Estável. — respondeu automaticamente — você pode vir comigo para assinar sua saída?
— Alguém já chegou para acompanhar ele? — questiona Anna.
— Um familiar já está a caminho — ela explica, a cara fechada e impaciente.
Anna deu um meio sorriso e assentiu quanto à saída, seguindo a enfermeira até o quarto de Elui, onde uma suíte com paredes de vidro e persianas do chão ao teto são a primeira coisa em que repara.
— Uau — ela se entrega — Viva o dinheiro — brinca.
Ao lado de Anna, a enfermeira a observa desconfiada enquanto estica o braço entregando uma prancheta e uma caneta com a logo do hospital. Ela assina rapidamente e a mulher confere os papéis.
— Só um minuto — retruca, saindo em disparada pela porta reclamando a falta de algum papel.
Anna observa Elui e se aproxima. “Mesmo desmaiado ainda consegue parecer modelo de cueca”, pensa ela, e logo, uma ardência em sua mão a lembra do machucado. Ela respira fundo e anda em direção à porta, parando para vê-lo mais uma vez, quando dá de cara com a enfermeira e levanta a mão, adiantando-se:
— Tem como fazer um curativo grátis? — ela sorri sem graça, e a enfermeira bufa, pedindo para que Anna a seguisse.
Elui sabia que havia ficado inconsciente por horas, ele sentia como se seu cérebro tivesse reiniciado depois de muito tempo e os processos ainda estivessem lentos, numa tentativa de retomar o controle das coisas; ainda assim, ele não imaginou que tudo estaria tão escuro.
Elui abriu e fechou os olhos com certa dificuldade, pois doíam, mas continuava escuro. Imaginou então serem curativos exagerados por conta do acidente e não se preocupou em levantar as mãos, cujos braços estavam doloridos e manchados de hematomas.
Subitamente, a porta se abriu com um ranger baixo e saltos adentraram o cômodo.
— Elui? — uma voz trêmula e familiar o chamou, observando-o de longe.
— Enfermeira? — ele disse, sua voz ansiando por alguém que pudesse o ajudar.
— Catharina, na verdade — ela falou gentilmente, escondendo uma careta azeda.
— Ah, Cath, oi. — Ele responde, desanimado.
— Como você está? — perguntou ela.
— Dolorido, esses curativos estão me deixando louco! — disse, dando um sorriso nervoso — pode pedir que alguém venha tirar, por favor? — pediu, mas Catharina não se moveu.
— Quais, querido? — ela questiona, confusa, aproximando-se dele. Catharina o observava com cuidado, tanto que ele podia sentir o olhar dela sobre ele.
— Dos meus olhos, Catharina, não é óbvio? — perguntou, e a respiração da mulher acelerou-se como quem estava prestes a começar a chorar.
— Elui... — ela começa, o tom se embriagando de lágrimas — não há nenhum curativo nos seus olhos. — diz, engolindo o choro — Vou chamar o médico — solta, mas Elui não se move.
Ele se mantém em silêncio, reproduzindo em sua mente as belas cores, casas e paisagens que já havia visto, os punhos fecham-se irritados ao lado do corpo, agarrando com força o colchão. Então lágrimas começam a escorrer em uma torrente automática de tristeza e desespero.
Anna aguardava qualquer lugar em que ela havia entregado currículos na última semana ligarem e mantinha-se grudada ao telefone; quando três batidas fortes balançaram sua porta e ecoaram pelas paredes.
Olhando novamente o aparelho em sua mão, viu que já passavam das onze da noite; além disso, o pijama de coelhinhos rosas deixava claro que ela não esperava visitas.
Julgando ser algum vendedor de doces que tinha permissão de entrar no prédio ou algo do gênero, ela abriu a porta, já falando:
— Não estou interessada, mas obrigada, viu? — e fechando a porta em seguida, se não fosse pelo pé que a parou no meio do caminho.
Anna levantou o olhar do pé para a cara do homem. Sua pele era extremamente pálida, os olhos verdes e o cabelo escuro comprido penteado para trás alongava-se além dos ombros.
— Sim? - ela pergunta, a sobrancelha levantada estranhando toda aquela situação.
— Você é Anna Leniev? — ele perguntou, a expressão impassível olhando-a de cima a baixo, o tom de voz gentil destoando-se completamente da face séria e fria.
— Do que se trata? — ela retrucou, afinal, ela morava sozinha, não havia ninguém para quem gritar ajuda, enrolar o homem era a melhor opção que tinha.
— Seu pai — ele disse, já impaciente, e todos os pensamentos da garota foram para a ausente e violenta figura paterna, que a abandonara anos atrás.
Anna sentia os pelos do corpo arrepiados, e não parava de esfregar as mãos uma na outra durante todo o trajeto. Chaves, que Anna descobriu ser o apelido do homem que tocou sua campainha, abrira a porta do carro para ela com um sorriso gentil e tranquilo. Desconfiada, Anna desceu, ainda trajando o pijama de coelhos, embora com o cabelo menos desgrenhado e o sobretudo preto de Chaves, uma cortesia bem-vinda.
Uma fila de homens aguardava, não tão pacientemente, a entrada na boate Pandalli, onde Anna e Chaves entraram, liberados por um alto e forte segurança. O lugar estava cheio, mas para onde olhasse, Anna apenas via mulheres.
— Porque só tem mulher aqui? — ela perguntou a Chaves, que andava na sua frente, liberando o caminho, mas ele ou a ignorou, ou não havia ouvido o que a garota dissera.
Luzes rosas e violetas atravessavam o salão rapidamente, lasers coloridos formavam um desenho no teto de um brasão com uma adaga atravessando a lua, que deixara Anna curiosa, mas não o suficiente para esquecer de Chaves, que subia uma escada coberta de veludo rosa e um corrimão de vidro que permitia uma visão da pista de dança. Já no segundo lance de escadas, a música parecia distante e abafada, sumindo a cada degrau; e quando Chaves abriu uma porta preta quase invisível, Anna não se recusou a entrar. Em sua frente, um jovem estava sentado numa poltrona de couro, um pequeno cobertor de veludo preto sobre os ombros, escondendo uma parte do blazer azul pastel. Assim que Anna caminhou em sua direção, seus olhos azuis brilharam sobre ela como duas joias exuberantes, e sem tirar os olhos dela, ele jogou os cabelos prateados que caíam em seu rosto para trás.
— A filha — ele disse, pegando uma pequena bola antiestresse vermelha sobre a mesa e apertando-a em movimentos repetidos — Você sabe porque está aqui? — ele questionou-a, a voz arranhada e rouca de quem fumava há anos, o olhar penetrante avaliando-a de cima a baixo.
— Chaves disse que tem a ver com meu pai, mas eu sinceramente não tenho interesse algum — ela retrucou.
Ao ouvir o apelido de seu parceiro chamado com tanta naturalidade, o jovem não conseguiu segurar uma risada exacerbada.
— Chaves está certo — falou ele, limpando uma lágrima pela risada que escorrera livremente. — Meu nome é Shui — ele disse, levantando-se e se aproximando da garota, que encolhera os ombros sob a altura do homem. — E você vai querer o que seu pai te deixou, ou... — interrompeu-se, pegando um pequeno controle no bolso das calças, que ele apertou sem hesitação. — Bom... Você pode ficar aqui comigo e minhas garotas...
Imediatamente, a cor das paredes pareceu escorrer como tinta diante de seus olhos, formando um degradê com o vidro temperado. Jovens de todos os tipos preenchiam as paredes, presas em cubículos, nuas, portando apenas uma fina coleira de couro sintético branco.
— O-O que você quer? — ela subitamente perguntou, afastando-se dois passos de Shui, as pernas lutando para mantê-la firme.
— Seu pai me deve, e eu só quero meu dinheiro — ele simplesmente soltou, rodopiando em seus calcanhares, lançando o pequeno cobertor que cobria seus ombros pelos ares. — Não é tão difícil assim, não é Anna? — ele buscou nos bolsos internos do blazer um mini caderno de capa preta e abriu-o, procurando o pai de Anna. — Aqui, são 937 mil. — falou, olhando para ela com o sorriso gentil de um vendedor de sorvetes, ao que os olhos da garota se arregalaram. - Ou, como eu disse, você pode ficar aqui comigo, e me deixar cuidar de você. - Ele sussurrou, aproximando-se e colocando a mão na base do cabelo de Anna. A garota se sentia traída de diversas formas, mas reuniu coragem e em um sussurro, selou seu destino:
— Eu vou pagar a dívida. - Engoliu em seco, afastando-se dele..
Para mais, baixe o APP de MangaToon!