Vazio, uma imensidão de puro nada, tão vasto, mas tão cheio; cheio de ódio e fome, tão frio como o universo e tão fervente como o inferno; tão calmo e tão desesperador. Algo tão espiritual e também mortal.
Não sinto o meu corpo, parece que estou afundando em meio a um lago tão calmo e sufocante, parece que descanso em meio às nuvens, mas sinto o peso de mil baleias pressionarem o meu corpo em todas as direções possíveis; está tudo tão calmo, mas tão caótico.
De repente, aquele breu infinito foi clareado por um enorme par de olhos verde água, tão brilhantes e mortais como o sol, aquilo era o tudo, mas também era o nada. Aqueles enormes olhos animalescos de uma fera que não se alimentam a milénios olham em direção do meu corpo, o fitando como um belo pedaço de carne; eu preciso fugir daqui, eu quero fugir daqui. Mas não tem como fugir, aquela imensidão de nada era aquela criatura animalesca.
Quanto mais olho nos seus olhos, mais sinto o ódio no seu olhar, presencio a fome que ele está sentindo, percebo o quão melhor seria morrer a continuar olhando para aquilo.
Por um segundo, sinto aquele universo tremer enquanto aqueles olhos ficam maiores e me engolem com aquele olhar infernal como um tsunami engole uma praia. Um grito demoníaco ecoa por aquela imensidão que agora era verde brilhante como os olhos. Agora, aquela pressão sufocante tornou-se uma queimação, um ardente percorrendo meu corpo inteiro devido a uma chuva de cristais pontiagudos cortando ele em todas as direções possíveis, até que sinto um atingir exatamente no meu coração.
- NÃÃÃO!
Dos lábios de uma garota que acabara de despertar, um grito desesperador escapa de forma involuntária; acordando, sem querer, alguns pequenos animais que dormiam junto a ela no seu enorme e confortável ninho. Com o barulho repentino, uma preguiça que dormia em galhos acima da menina, caiu no seu colo; os ouricinhos-cacheiros e os tapitizinhos que dormiam entre as suas pernas pularam de susto.
Os curtos e encaracolados cabelos roxos da menina estavam de pé, como se ela tivesse levado um choque. O seu coração estava acelerado e a sua pele, escura como ébano, estava mais clara devido ao susto; o seu olho vermelho como rubi estava arregalado e as suas unhas estavam fincadas no feno do ninho.
— o que foi, minha Alase¹?
A preguiça bocejou preguiçosamente, despertando lentamente de seu sono profundo enquanto a menina ainda ofegava, tentando recuperar o fôlego após a intensidade do pesadelo que a assolara. Seu olho estava fixo em um ponto distante, ainda processando as imagens assustadoras que assombravam sua mente. O formigamento em sua cabeça era como pequenas agulhas picando sua pele, um lembrete vívido do terror que acabara de experimentar. Cada pensamento era uma luta para distinguir a realidade da ilusão, e levou alguns preciosos minutos para que a névoa do pesadelo finalmente se dissipasse, revelando o conforto reconfortante da segurança.
Quando a menina finalmente percebeu que tudo não passara de um sonho terrível, um suspiro de alívio escapou de seus lábios trêmulos. Ela olhou para a preguiça em seus braços, seu olho se encontrando com os dela em um momento de entendimento silencioso. Com um sorriso meigo, ela acariciou suavemente o pelo macio da preguiça, sentindo a calma e a serenidade retornarem a seu coração. Apesar do susto, ela sabia que estava segura agora, envolta pelo calor reconfortante da realidade.
— não foi nada, senhora segnities, mo ji²
A preguiça bocejou e arrastou-se, assim, saindo do colo da menina e deitando no ninho. A garota levanta lentamente, sentindo os músculos esticarem-se preguiçosamente após uma noite de sono profundo. Seus braços se erguem acima da cabeça em um longo e luxuoso bocejo, enquanto os raios dourados do sol da manhã filtram-se através das folhas do salgueiro-chorão, pintando padrões de luz e sombra em sua pele nua.
Cada raio de sol acariciava delicadamente sua pele, trazendo consigo uma sensação de calor reconfortante e renovação. Ela fecha o olho por um momento, absorvendo a energia revitalizante da manhã enquanto se alonga em direção ao céu azul claro acima dela.
Os delicados sons da natureza enchem o ar ao seu redor – o canto suave dos pássaros, o farfalhar suave das folhas dançando ao vento, o murmúrio tranquilizador do riacho nas proximidades. É como se o próprio mundo estivesse despertando junto com ela.
— o ìgbà òtútù³ já acabou? A ìgba riru ewe⁴ chegou?
A menina levanta-se do ninho com um suspiro de contentamento, sentindo-se revigorada pelo calor reconfortante do sol da manhã. Seus pés descalços pressionam suavemente a terra úmida enquanto ela se aproxima da cortina de folhas que cobre a entrada, ansiosa para ver o que o novo dia tem a oferecer.
Com um movimento cuidadoso, ela separa as folhas, revelando o mundo exterior transformado pela chegada da primavera. O que antes era um manto de neve imaculado agora se transformou em um cenário de transição, com poças de água brilhando sob os raios solares dispersos. Cada poça era espelho líquido, refletindo o céu azul e as nuvens fofas que flutuam preguiçosamente acima.
A menina observa maravilhada os pequenos redemoinhos de folhas e galhos que dançam na superfície das poças, criando padrões hipnotizantes de movimento e cor. Apesar do sol brilhante, o ar ainda carrega o frescor do inverno recente, fazendo a menina estremecer ligeiramente ao sentir a brisa gelada acariciar sua pele. Ela se abraça, envolvendo-se em seu próprio calor enquanto observa os primeiros sinais de vida despontando ao seu redor.
— E káàró⁵, meu salgueiro!
As enormes folhas douradas daquela árvore balançam junto ao vento, como resposta ao bom dia da menina, que logo sorri e esfrega o seu olho enquanto caminhava em direção ao riacho que havia ao lado do salgueiro-chorão. Ela sentia a grama gélida e úmida nos seus pés, o que a dava uma sensação confortante, a garota agacha e junta as suas mãos para pegar um pouco daquela água congelante, assim, a jogando no seu rosto para ajuda-la a despertar.
- Aaahh! Mo ji, mo ji.
O bocejo preguiçoso da garota ecoou suavemente pela quietude da manhã, seus lábios se curvando em um sorriso sonolento enquanto ela murmurava repetidamente para si mesma que havia despertado. Com passos cuidadosos e tranquilos, ela se dirigiu à sua árvore, cujo tronco sinuoso se estendia em direção ao céu, sendo um antigo lar e um guardião protetor.
Cada movimento era executado com uma graça natural, como se ela e a árvore estivessem em perfeita harmonia. Ao alcançar o ninho no alto, ela se viu cercada por uma sinfonia de respirações suaves e sussurros animais, os moradores adormecidos do seu santuário de ramos e folhas.
Com destreza habilidosa, a garota pegou suas roupas cuidadosamente dispostas no ninho. O tecido feito de camadas de teia de viúva-negra era suave ao toque, mas robusto o suficiente para resistir aos rigores da vida na floresta. As placas de quartzo branco, adornando as partes mais íntimas de suas vestes, reluziam suavemente à luz do sol nascente, emitindo uma aura de proteção e poder.
Vestida e pronta para o dia que se desenrolava diante dela, a garota assobiou uma melodia suave, ecoando através dos galhos da floresta. Em resposta ao seu chamado, um tucano colorido apareceu de entre as árvores, voando graciosamente em sua direção e pousando delicadamente em seu ombro.
Companheiro confiável ao seu lado, a garota começou a jornada matinal pela floresta, com seus passos leves ecoando entre a natureza.
— E káàró, Aren! Quais os acontecimentos de hoje?
A garota sorriu animadamente para o tucano, seu olho brilhando com a promessa de uma nova conversa com seu amigo alado. Antes que ele começasse a falar, ela se agachou graciosamente entre os arbustos, os raios de sol filtrando-se através das folhas e pintando padrões dourados em sua pele.
Com dedos habilidosos, ela colheu cuidadosamente os cambuís maduros que pendiam dos galhos, sentindo o suave toque das frutas em suas mãos. O aroma adocicado e fresco das frutas matinais encheu o ar ao seu redor, despertando seus sentidos enquanto agradecia mentalmente a natureza por aquela oferenda tão saborosa.
Com um gesto delicado, ela descascou com as unhas a casca fina e revelou a polpa suculenta dentro de cada cambuí, seu suco escorrendo pelos seus dedos e tingindo-os de um alaranjado vibrante. Com um leve enrugamento do nariz, ela provou a fruta, uma mistura de doçura e acidez que a fez franzir a testa em surpresa. O tucano observou com interesse, emitindo uma risadinha suave quando viu a careta divertida da garota.
— E káàró, minha Alase Ghottic. Hoje, a Igba Riru Ewe começou bem, as cutias foram as primeiras a despertar e há novas araras voando no céu, um filhote de mico acidentalmente sentou num ouriço-cacheiro, mas não teve feridas graves. Deixe-me ver mais...
O pássaro pareceu pensativo por um momento, inclinando a cabeça para o lado enquanto uma expressão de concentração se formava em seu bico colorido. Parecia como se estivesse buscando alguma lembrança distante, perdida nas profundezas de sua memória alada. No entanto, antes que pudesse dizer qualquer coisa, ele foi interrompido pela oferta de Ghottic.
Com um gesto gracioso, ela estendeu um cambuí em direção ao tucano, oferecendo-lhe a fruta com um sorriso caloroso. O pássaro não hesitou em aceitar, inclinando-se para pegar com seu bico curvo. Um brilho de curiosidade dançou em seus olhos enquanto ele a saboreava, suas penas vibrando ligeiramente com a intensidade do sabor.
Ao sentir o gosto forte do cambuí, o pássaro piscou algumas vezes, parecendo surpreso com a explosão de sabores em sua boca. Seu bico se contorceu ligeiramente, mas logo ele se recuperou, emitindo um som de aprovação misturado com um leve ruído de surpresa.
- Ah sim! Os filhotes da lobete Dayo e do seu companheiro Akin para nascer ao pôr do sol. São a primeira ninhada da estação, isso significa que a Ostara é hoje e vossa alase está atrasada! - exclamou Aren, com um leve tom de preocupação em sua voz melodiosa.
Ghottic, por outro lado, estava relaxada, encostada em uma árvore antiga, parecendo indiferente ao chamado urgente de Aren. Ela respondeu com calma: - Ora, Aren! O sol mal despertou! Farei as flores desabrocharem a tempo, prometo!
Aren suspirou, balançando a cabeça com uma expressão de resignação - Ora, Ghottic! Já se fazem trinta e três anos que tenho que lhe dizer para transformar as estações pontualmente!
Ghottic riu suavemente, guardando a frustração no mais profundo canto de seu ser, ela revira o olho e respira fundo, quase o respondendo com um tom de deboche – E já faz trinta e três anos que eu faço tudo certinho! Relaxa, Aren! Deixe-me descansar um pouco hoje, afinal, já tenho 268 anos! - A menina cruzou os braços e virou o rosto em protesto, o tucano voou do seu ombro e pousou num galho próximo à garota.
— você só faz 268 anos na próxima lua cheia, bruxinha! Ainda é uma pequena flor além disso, Alika fez os meus ancestrais prometerem que iam ficar de olho em você até os seus 300 anos de idade!
A bruxa suspirou profundamente, deixando escapar um lamento cansado enquanto se sentava numa rocha próxima. Com as mãos apoiadas no rosto, ela mergulhou em seus pensamentos, sentindo o peso das responsabilidades sobre seus ombros.
O pássaro, notando a aflição da bruxa, voou até seu colo e a encarou nos olhos com uma expressão de compaixão. Com um suspiro suave, como se compreendesse o fardo que ela carregava, o pássaro emitiu um som reconfortante, quase como se estivesse oferecendo palavras de consolo.
— eu só queria ver o mundo lá fora, além da floresta, você já voou além desses morros, to cansada de ver a praia de longe! Quero sentir a areia e sentir o cheiro do mar! Eu me sinto muito sozinha desde que a...hum...
— ah...antes de tudo aquilo, eu sei, eu sei. Mas é muito perigoso você sair da floresta, os humanos lá fora são maus! Foram eles que levaram Alika e todos embora.
— mas eu não entendo! Eu estou sempre observando a praia e não há um movimento lá, você diz que eles matam as árvores e possuem armas de fogo barulhentas, mas nunca vi nada nesses últimos trinta e três anos! Com certeza depois daquilo eles foram embora!
Exclamou a menina incrédula e um pouco irritada com tamanha injustiça, afinal, Aren ainda a tratava como se tivesse 110 anos de idade.
— eles estão escondidos entre as matas perto da praia, Ghottic, é seu dever cuidar dessa floresta até que os celtianos voltem.
— e quando eles vão voltar?! Desde aquela época não vi uma fada, uma sereia, nem mesmo um gnomo! Pelo que eu saiba os celtianos não brotam do chão do nada! Eu vou ficar aqui para sempre fazendo a mesma coisa sempre!
O pássaro soltou um grande suspiro e com a voz trémula levou a sua asa direita até o rosto da garota, que estava com o olho cheio d’água.
— olha bruxinha, eu prometo que no seu aniversário de 270 anos eu vou leva-la a uma aldeia de humanos que fica próxima à aqui.
A bruxa levou o seu punho até o seu olho e secou uma lágrima que queria escorrer pelo seu rosto, logo, dando um sorriso de canto.
— promete?
— que eu vire sopa de tucano se não cumprir, agora, vamos começar a ostara.
Ghottic sorriu levemente, agora se sentindo mais calma levantou da rocha, assim, levando a sua mão esquerda até o seu busto, onde lá havia um cristal de ametista pendurado no seu colar. Ela fechou o olho e respirou fundo enquanto concentrava toda sua energia em sua mão.
- Asé⁶
O cristal brilhou em um tom magenta um volume começou a surgir das costas da menina, de forma indolor, ossos emergiram de sua pele, eles foram crescendo até ficarem no formato de asas; depois músculos, veias, tecido e por fim penas. As asas se abriram, eram o dobro do tamanho da garota, possuíam uma cor vermelha sangue por dentro, por fora a penugem era roxa como seu cabelo; extremidades de ossos pontiagudos cresceram nas extremidades das asas, deixando-as com aparência de asas de dragão. A bruxa num salto voou, o que fez o tucano tossir pois levantou folhas e poeira; lá do alto ela viu toda a floresta, que estava com boa parte das árvores ainda nuas.
- Asé!
O olho de Ghottic, profundo poço de magia, brilharam em uma tonalidade magenta que parecia conter segredos ancestrais. Suas mãos, movendo-se com uma graciosidade mística, traçaram padrões intricados no ar, convocando um redemoinho de nuvens negras que se formou como um véu entre o plano terreno e o espiritual. Um vento carregado de vida varreu a floresta, prenunciando a manifestação de forças além da compreensão humana.
Uma chuva morna começou a cair, mas não era apenas água; era um elixir da vida, cada gota contendo a promessa de uma metamorfose mágica. Ao tocar o solo, cada gota se transformava em uma planta única, emanando uma aura de energia. Nas árvores, a chuva se desdobrava em flores resplandecentes, folhas vibrantes e frutas carregadas de significado esotérico. Pedras antigas eram acariciadas pela chuva, transformando-se em musgo que pulsava com uma sabedoria ancestral.
Os animais, envolvidos pela chuva mágica, experimentavam uma cura profunda. Feridas desapareciam, e uma vitalidade renovada pulsava em seus seres. Naquele momento, a própria essência da floresta estava fluindo através deles, fortalecendo-os para os desafios que aguardavam.
Ghottic, com suas mãos imbuídas da energia magenta, ergueu o olho para as nuvens reluzentes. Absorvendo os relâmpagos verdes e rosas, canalizou essa sinfonia cintilante em uma bolha de energia densa. Com um gesto cerimonial, lançou-a na cachoeira Iyá, local sagrado que ecoava com os murmúrios dos espíritos da natureza.
A cachoeira, agora imbuída com a magia cósmica, desencadeou uma cascata de eventos místicos. Águas gélidas refletiam os relâmpagos em tons etéreos, criando um arco-íris que transcendia o espectro visível. A montanha Ilé oba, testemunha silente do oculto, ecoou com a ressonância da celebração, marcando o início da primavera não apenas como uma estação, mas como uma passagem transcendental no ciclo eterno da vida na floresta encantada.
Ghottic, exausta após canalizar tamanha energia, permitiu-se repousar em uma nuvem etérea que pairava suavemente abaixo dela. Seu olho, normalmente radiantes com a magia da natureza, agora refletiam uma melancolia sutil. Cada movimento, antes cheio de graça, revelava agora um cansaço profundo, como se a conexão com as forças cósmicas tivesse extraído parte de sua própria essência.
Sentada em contemplação, Ghottic dirigiu seu olhar desanimado para o mundo que se desdobrava abaixo. A renovação mágica, embora esplêndida, pesava em seus ombros como um fardo invisível. A magnitude do esforço para rejuvenescer a floresta agora se manifestava nos traços de sua expressão, onde antes havia determinação, agora existia uma sombra de cansaço.
A nuvem, suave como um divã celeste, oferecia um refúgio momentâneo para a alma fatigada de Ghottic. Seus pensamentos flutuavam entre os ecos dos feitos místicos realizados e a compreensão silenciosa de que o preço da magia não era apenas pago em relâmpagos e arco-íris, mas também nas fibras mais profundas de seu ser.
Enquanto observava o mundo transformado lá embaixo, a desilusão momentânea era acompanhada por uma sensação de realização. Era como se cada gota de esforço deixada no céu se traduzisse em uma lágrima de exaustão, mas também em um sorriso sereno diante da beleza recriada. Ghottic, nesse momento de quietude celestial, encontrou uma paz efêmera, sabendo que, apesar da fadiga, seu propósito místico havia sido cumprido.
- feliz ostara...
Não muito distante dali, um jovem de pele amarelada e cabelos ruivos, enquanto escalava a imponente pedra da Gávea, foi surpreendido pelos seus olhos verdes, tão profundos quanto jades, ao testemunhar o desdobrar de um arco-íris imponente e vigoroso proveniente de uma cachoeira próxima. O espetáculo da natureza o cativou, instigando-o a subir rapidamente e encontrar abrigo em uma fenda estrategicamente posicionada, um refúgio na rocha que o protegia do desconhecido que se desdobrava.
Ofegante, ele se permitiu descansar, observando a transformação que ocorria na paisagem abaixo. A floresta ganhava vida de maneira exuberante, florescendo diante de seus olhos como se a magia que presenciara tivesse se estendido por todo o ecossistema.
- que porra é essa?!
Sua exclamação, carregada de perplexidade e adrenalina, ecoou na vastidão silenciosa ao redor. Ao encostar a cabeça na fria parede de pedra, um misto de cansaço e fascínio se revelou em sua expressão. A pergunta lançada ao vento refletia não apenas uma busca por respostas, mas também uma conexão emocional com o extraordinário.
Seus olhos curiosos, varrendo o horizonte, capturaram algo peculiar além da cortina de água da cachoeira. A visão de uma caverna de ametista, cintilando como estrelas roxas em uma noite mágica, o envolveu em uma aura de mistério. Uma chamada silenciosa parecia ecoar dessa caverna, convidando-o a desvendar os segredos que se escondiam em seus recessos.
- o que é isso?
A hesitação e a atração se misturavam nos pensamentos do jovem, enquanto ele se via diante de escolhas desconhecidas. Seus olhos verdes, agora refletindo a dança das cores do arco-íris e a luminescência da caverna, expressavam uma curiosidade profunda e uma ponta de apreensão diante do desconhecido que se desdobrava diante dele.
...•Dicionário celtiano•
...
...Alase: guardião, pessoa que possui autoridade
...
...Mo ji: eu acordei
...
...Ìgbà òtútù: inverno
...
...Ìgba riru ewe: primavera
...
...E káàró: bom dia
...
...Asé: que assim seja
...
À medida que seus olhos se fixavam na entrada cintilante da caverna de ametista, uma irresistível onda de fascínio envolvia o rapaz. Uma força sutil, mas inegável, o impelia na direção daquela escuridão reluzente. A curiosidade dançava em seus olhos, traduzindo-se em uma expressão de encantamento e anseio.
Sem desviar o olhar, ele iniciou uma jornada hesitante, um passo de cada vez, como se estivesse prestes a desvendar segredos cósmicos há muito tempo guardados. A cada passo, a atração aumentava, e a entrada da caverna se aproximava como um portal para o desconhecido.
Ao atravessar o limiar, uma sensação única o envolveu. O solo frio sob seus pés oferecia uma realidade palpável, contrastando com a luminosidade celeste das paredes de ametista. A dualidade de sensações era hipnotizante, um convite para explorar o universo encapsulado naquelas pedras preciosas.
O toque gélido da rocha reverberava em suas solas, enquanto a luminosidade roxa envolvia seu ser. Cada detalhe da caverna parecia sussurrar segredos antigos, chamando-o para uma jornada interior. A profundidade das emoções se misturava com a atmosfera mágica, transformando o frio da rocha em uma carícia celestial.
A cada passo adiante, o rapaz sentia uma conexão inexplicável com o cosmos contido naquele espaço sagrado. A caverna não era apenas um refúgio físico; era um mergulho nos recônditos de sua própria alma. A incerteza inicial se transformava em uma entrega gradual à maravilha que o cercava, como se estivesse prestes a desvendar os mistérios entrelaçados na luz pulsante da ametista.
A cada respiração, o garoto absorvia não apenas o ar frio da caverna, mas também a essência transcendental que permeava o ambiente. Um eco de admiração e reverência preenchia seu coração, enquanto ele se via imerso na magia indescritível da caverna de ametista, um lugar onde o universo e a alma se entrelaçavam numa dança mística e inesquecível.
— uau, é uma bela caverna, o que será que tem no final?
De repente, o chão sob seus pés cedeu repentinamente, como se toda a terra estivesse conspirando contra ele. Seus gritos ecoaram pela caverna enquanto ele era arrastado para baixo, em meio à escuridão que o engolia vorazmente. A sensação de queda livre o deixou desorientado, incapaz de distinguir entre cima e baixo na escuridão opressiva que o envolvia. Rochas ásperas roçavam sua pele enquanto ele descia cada vez mais fundo na escuridão impenetrável da caverna.
O ar úmido e pesado o envolvia, sufocando seus gritos e tornando cada respiração um esforço árduo. A sensação de desamparo era avassaladora, como se ele estivesse sendo consumido pelas próprias trevas que o cercavam. Enquanto continuava sua queda descontrolada, o som ensurdecedor do seu coração batendo ecoava em seus ouvidos, uma sinfonia de medo e desespero que ameaçava consumi-lo por completo.
Na floresta, Ghottic caminhava tranquilamente, sentindo a úmida grama acariciar seus pés nús, a brisa fresca daquele céu azulado a convidava a se aproximar de seu destino.
— Bem… onde estão os lobetes que nasceram?
Ghottic subiu com determinação até o ponto mais alto do bosque, onde os raios de sol se filtravam através das folhas verdes, criando uma aura mágica ao redor das copas das árvores. Lá, sob o majestoso ipê de flores brancas, repousavam os dois lobetes, Dayo e Akin, em meio a um mar de pétalas perfumadas.
O perfume do ipê misturava-se ao ar fresco do entardecer, criando uma atmosfera serena e acolhedora. Os lobetes, com seus olhos gentis e atentos, observavam Ghottic se aproximar, sabendo que ele trazia consigo a sabedoria ancestral que os ajudaria no momento sagrado do nascimento de sua ninhada.
À medida que Ghottic se aproximava, os lobetes erguiam suas cabeças em saudação, reconhecendo a presença daquele que tinha o dom de fazer as flores desabrocharem e os campos florescerem. Era um momento de grande expectativa e reverência, pois o nascimento dos filhotes representava não apenas a continuidade da vida na floresta, mas também a renovação constante do ciclo da natureza.
— olá minha Alase
Ghottic sentiu-se honrada com a reverência do lobete Akin, reconhecendo a importância daquele momento para toda a comunidade da floresta. Com um sorriso suave nos lábios, ela retribuiu a saudação, mostrando respeito pela sabedoria e pela natureza dos lobetes.
Conforme os filhotes começavam a nascer, Ghottic envolveu Dayo com uma aura suave de energia mágica, canalizando as forças da natureza para acalmar e fortalecer a lobete durante o parto. Sua magia pulsava em harmonia com o ritmo da respiração de Dayo, criando um ambiente tranquilo e protetor ao seu redor.
Com um toque delicado, Ghottic guiou o fluxo de energia vital através do corpo de Dayo, aliviando qualquer desconforto e acelerando o processo de parto. Luzes cintilantes dançavam ao redor deles, refletindo a magia da vida que estava sendo trazida ao mundo naquele momento sagrado.
À medida que cada filhote nascia, Ghottic enviava uma bênção de boas-vindas, garantindo-lhes uma jornada segura e cheia de prosperidade na floresta. Sua magia fluía em sincronia com o ciclo da natureza, fortalecendo os laços entre os lobetes e o mundo ao seu redor. Ao final do parto, Dayo olhou para Ghottic com gratidão em seus olhos, reconhecendo o poder e a bondade que ela havia compartilhado com ela e sua ninhada.
— seria uma honra se a minha Alase desse o oruko¹ aos meus omodes²
Ghottic, com um sorriso sereno, concordou com o pedido da lobete. A atmosfera ao redor tornou-se impregnada de uma ternura palpável, enquanto os outros lobetes da alcateia, guiados pela aura tranquila de Ghottic, se aproximaram e formaram um círculo ao redor da garota.
Dayo, com olhos brilhantes, observava com admiração enquanto Ghottic nomeava cada filhote com palavras antigas carregadas de significado. Os lobetes, mesmo tão jovens, pareciam compreender a importância de seus nomes, balançando as caudas em aprovação enquanto eram apresentados à sua nova família.
— Deixe-me ver... — Ghottic começou, seu olhar refletindo a profundidade de sua intuição mística. — Esta animadinha se chamará Abayomi, uma promessa de alegria e vitalidade. Este fortezinho será Adeagbo, destinado a ser um líder valente e forte. Ah, e esta que está dormindo terá o nome Aiyetoro, uma paz serena que embalará a alcateia. Por fim, a que está mordendo a cauda da Abayomi será Ajagbe, uma futura caçadora astuta e ágil.
Os lobos, sintonizados com as palavras de Ghottic, uivaram em harmonia, expressando uma alegria ancestral pela chegada dos novos membros. Dayo e Akin, tocando seus focinhos, trocavam olhares cheios de felicidade e gratidão. As palavras proféticas de Ghottic traçaram o tecido do destino de cada filhote, e a alcateia se unia em celebração pela promessa de liderança e caça que se desenrolava diante deles.
Não demorou muito para os outros animais chegarem, com isso, a comemoração começou. Ghottic acendeu uma enorme fogueira cintilante como sol, os grilos começaram a tocar uma alegre sinfonia com os pássaros, a comida era abundante para os novos pais daquele lugar, haviam diversas frutas e ervas, os animais mais velhos se ofereceram para servir de futuro alimento para as crias, então, fizeram questão de se esbaldar naquela última festa das suas vidas. A bruxa, saltitava e rodava diante daquele fogo, a mesma já estava um pouco tonta, devido ao vinho de jabuticaba que a mesma havia feito antes da primavera começar. Ela usava uma coroa de flores na sua cabeça, assim como todas as fêmeas do local, os vaga-lumes lentamente começaram a ficar mais nítidos naquele céu alaranjado, iluminando ainda mais o topo daquele local, a alegria dominava o mundo de Ghottic.
O lobo Akin rodeou a fogueira, tentando falar com a bruxa, que dançava sem parar.
- minha Alase, faltam poucos pedaços de céu até a lua chegar ao seu ápice, por favor não beba tanto vinho, preciso que a lua abençoe os meus omodes.
A atmosfera ao redor do fogo era uma dança de sombras e luz, enquanto a garota, envolta em risos e movimentos desajeitados, dançava próximo às chamas crepitantes. O calor do fogo contrastava com a leve brisa da noite, criando uma sensação aconchegante no local. Às vezes, um gole desajeitado de sua bebida escapava, mergulhando no fogo e fazendo-o estalar e brilhar com efervescência devido ao álcool inflamável.
- minha Alase?
Akin, se sentiu um pouco frustrado ao perceber que Ghottic não prestou atenção nele, aproximando-se com uma expressão mesclada de preocupação e irritação, tentava instigar um pouco de sobriedade na garota. Seu olho, refletindo a luz dançante do fogo, buscava um entendimento entre o desejo de diversão e a necessidade de responsabilidade.
- aaah Akin, relaaxa, eu me controlo
A resposta da garota, sua voz arrastada e gargalhadas desordenadas, revelavam o efeito já perceptível da bebida. Sua coroa de flores, agora torta, adicionava um toque peculiar à sua imagem enquanto ela dançava despretensiosamente.
Com um rugido baixo, Akin dirigiu um olhar furioso para Aren, o tucano, cujas penas se eriçaram em resposta ao arrepio de medo. Os olhos do lobete faiscavam com uma intensidade que ecoava sua irritação, enquanto ele mantinha sua postura de protetor da alcateia diante da aparente negligência de Aren. O tucano, nervoso, bateu as asas rapidamente e voou em direção à garota, buscando refúgio em seus ombros como se buscasse proteção contra a fúria contida de Akin. Seu bico se abriu e fechou em uma série de estalidos ansiosos, enquanto ele buscava explicar-se diante do olhar acusador do lobete.
- a-aham, minha Alase, que tal você deitar um pouco no grande ipê junto com as outras fêmeas?
A sugestão de descansar sob o grande ipê, junto com as outras fêmeas, era uma tentativa de orientar a energia descontrolada da garota para um repouso merecido. Aren, sério em sua abordagem, empurrou-a delicadamente em direção à árvore, onde as fêmeas da região desfrutavam do banquete e cuidavam de seus filhotes recém-nascidos.
— ah, Aren! Eu bebi só só um pouquiiinho pouco assim ó
A resposta alegre e levemente alterada de Ghottic, acompanhada pela exibição de sua garrafa de cristal quase vazia, trouxe um sorriso indulgente ao rosto de Akin. No entanto, Aren, o tucano, olhou para ela com seriedade enquanto insistia para que ela se deitasse.
— deite-se, Ghottic. Ai ai, irei buscar um pouco de gengibre e mel para ver se você melhora.
A garota, agora deitada próxima à beira do penhasco, soluçava entre risadas. O tucano voou para longe em busca de remédios naturais. Ghottic, por sua vez, expressava sua frustração em relação à condição de ser uma Alase, jogando a sua garrafa de cristal com um misto de raiva e descontentamento. O líquido se perdeu na escuridão junto com a garrafa, enquanto a garota murmurava seu desgosto pelo fardo que carregava.
— aaah como eu odeio ser uma alase
A bruxa suspirou profundamente, sentindo o peso do mundo sobre seus ombros enquanto encarava um ponto fixo no meio do nada. Seu olhar perdido refletia uma mente inquieta, repleta de pensamentos que dançavam em torno dela como sombras fugazes.
O vento sussurrava entre as folhas das árvores, trazendo consigo fragmentos de memórias e desejos não realizados. Ela ansiava por um momento de paz, onde pudesse deixar para trás as preocupações e mergulhar em devaneios tranquilos, longe das pressões daquele mundo mágico.
Cada suspiro de alívio era uma tentativa de liberar a tensão que se acumulava em seus ombros. Ela fechou o olho por um instante, buscando encontrar a serenidade no vazio da mente, mas os pensamentos teimosos persistiam, como murmúrios indesejados que se recusavam a desaparecer.
No entanto, mesmo diante da tumultuada torrente de pensamentos, a bruxa permanecia firme em sua determinação de encontrar paz interior. Ela sabia que, com o tempo e a prática, seria capaz de domar a tempestade que rugia dentro de si e encontrar o equilíbrio tão almejado.
Enquanto isso, não muito distante dali, o garoto ruivo ainda despencava na imensidão daquela caverna.
— aaaaaahh...aí!
O grito rasgou o ar quando o rapaz se encontrou abruptamente de frente com a áspera grama do chão. Seus olhos, ainda arregalados pela surpresa, piscavam diante do inesperado mergulho. Ofegante, ele se sentou, a expressão de incredulidade transformada em um olhar atônito ao encarar a enorme parede de pedras que envolvia o buraco recém-formado pela sua queda. A entrada da caverna revelava uma paisagem em constante movimento, com a terra deslizando como uma vasta rampa natural, adicionando uma camada de imprevisibilidade à sua exploração inusitada.
- Eu caí por onze horas?! - A exclamação sobre a duração do tombo, era uma mistura de choque e exaltação. O humor não abandonava o rapaz, que, mesmo em meio à surpresa eminente – isso foi mais bizarro que o insano do praia parque, mas pelo menos foi de graça haha
No entanto, a euforia inicial cedeu espaço à realidade implacável. Ao sentir a ardência em várias partes de seu corpo, ele se conscientizou da sujeira e dos arranhões, resultado do encontro com a grama e os cristais de ametista. O suspiro que escapou dele denotava não apenas a aceitação do desconforto físico, mas também uma reflexão sobre as consequências de sua aventura inesperada.
Ao tentar se levantar, o gemido de dor indicou que não escapara ileso. O pulso machucado adicionava um toque de desafio à situação. A caverna, antes carregada de mistério, agora assumia uma atmosfera mais crua, onde os riscos da exploração eram evidentes. O ambiente ao seu redor, antes marcado pela magia da ametista, agora ganhava uma nova perspectiva, uma mistura de beleza e perigo que permeava a experiência do rapaz.
— aah ah okay... o meu pulso tá molinho e dormente, tá feio... tá bem feio, inchado e doendo muito, eu tô no meio do nada, todo cagado de terra, machucado e quebrado, meu Deus o que eu faço...okay não se desespere, tá tudo bem, tá tudo bem!
O rapaz, consciente da coloração arroxeada de seu pulso, que pulsava pela lesão, tomou uma decisão sábia ao evitar o olhar constante, reconhecendo que cada observação podia ser uma pontada extra de dor. Optando por desviar seu foco do desconforto físico, sua mente se tornou um campo de estratégias, procurando soluções para enfrentar a situação desafiadora em que se encontrava.
— ah que benção! O meu celular tá sem área! Okay Isaac, se acalma...você sabe muito bem que em parques florestais assim tem sempre um guarda-florestal, tudo bem, já assisti todas as temporadas de a sobrevivência de tudo e não sou burro para entrar numa cabana abandonada ou seguir algum som estranho.
O rapaz respirou fundo, sentindo o ar fresco e puro encher seus pulmões enquanto começava a caminhar em direção oposta à caverna. Seus passos ecoavam suavemente pelo chão irregular, ecoando pela vastidão silenciosa da floresta. Cada som da natureza ao seu redor era uma sinfonia serena, uma melodia que o acolhia em meio à solidão.
Ele se viu imerso na escuridão encantadora da floresta, onde a luz da lua mal conseguia penetrar entre as densas copas das árvores. Os galhos retorcidos e as folhas sussurrantes pareciam envolvê-lo em um abraço acolhedor, convidando-o a explorar os segredos ocultos da mata.
Enquanto avançava com determinação, seus sentidos estavam alerta, captando cada pequeno ruído que ecoava na floresta. Ele prestava atenção aos sons da vida selvagem, à suave correnteza de um riacho distante ou a qualquer sinal de presença humana nas proximidades.
— pelo que o moço do sobrevivência a tudo disse, um rio da a dois caminhos, ao mar e a uma cidade, em algum deles tenho que chegar.
O rapaz avançava pela mata, uma trilha sombreada que se aprofundava lentamente na escuridão crescente. Ansiedade palpitava em seu peito, cada passo era um eco de incerteza, suas pernas, apesar de tremulas, teimavam em resistir ao impulso de correr para longe. O ambiente, agora mergulhado em sombras, parecia fechar-se ao seu redor, aumentando a sensação de isolamento.
Seus sentidos estavam aguçados, cada som, cada ruído da floresta, era uma nota na sinfonia do desconhecido. O farfalhar das folhas, o sussurro do vento entre os galhos e até mesmo os mínimos estalos sob seus pés eram captados por seus ouvidos atentos. Seus olhos, vasculhando o ambiente em busca de qualquer movimento, estavam aflitos por antecipação.
Cada sombra, cada forma na penumbra, provocava um leve estremecimento em sua espinha. A escuridão, agora densa, parecia esconder segredos insondáveis, e o rapaz ansiava por uma sensação de segurança. Cada passo era uma jornada na busca por um refúgio, uma fuga do desconhecido que o envolvia.
CRECK! Foi o som que a garrafa de Ghottic fez ao cair a centímetros de distância do corpo do rapaz, que na hora gritou como uma gralha.
- aaaaaaaah!
O coração do rapaz batia descompassado, como um tambor selvagem ecoando na noite sombria da floresta. Seus pés batiam o chão com urgência, chutando folhas e galhos enquanto ele corria sem direção, guiado apenas pelo puro instinto de sobrevivência.
A escuridão ao seu redor parecia abraçá-lo suavemente, como um buraco negro abraçando a luz aos seus redor, cada som se transformando em um sussurro desconfortável em seus ouvidos já atentos. Seus olhos, brilhantes pela adrenalina, escaneavam o horizonte escuro em busca do perigo eminente.
Então, como uma cena de uma comédia irônica, uma jabuticabeira surgiu em sua trajetória, uma massa escura no meio da noite serena. O impacto foi como um abraço desajeitado, sacudindo seu corpo com uma risada surpresa e despretensiosa.
O rosto do rapaz contorceu-se em dor quando sentiu seu nariz fazendo contato com um galho mais baixo, uma batida tão forte quanto um trovão fez ele cair para trás. O calor do sangue começou a escorrer por suas narinas, preenchendo seus lábios com o gosto metálico do líquido.
Ele tentou se erguer, balançando a cabeça para afastar a tontura momentânea, suas pernas movendo-se desengonçadamente como se dançassem uma coreografia improvisada. Cada movimento era tão doloroso que apenas de respirar seus olhos lacrimejavam, cada respiração uma nota em uma sinfonia de seu desespero.
E então, em um último suspiro de dor, sua visão turva cedeu à escuridão, seu corpo desabando no chão macio e acolhedor da floresta. O silêncio da noite envolveu seu desmaio, fazendo a floresta ficar silenciosa novamente
Ainda deitada na grama, Ghottic ergueu sua cabeça ao ouvir barulhos altos vindos da floresta abaixo daquele penhasco
— ouviram isso?
Perguntou Dayo com as orelhas levantadas, Ghottic fez o mesmo e ergueu o suas orelhas pontudas.
— parece que uma gralha se machucou
Disse Zuri, uma morcego-beija-flor que estava pendurada no ipê, bebendo o néctar das flores com seus filhotes.
— vou dar uma olhada, se algum animal se machucou, ele é minha responsabilidade
Disse Ghottic, animada pois teria uma desculpa para sair de seus deveres naquela celebração
— mas Aren disse para a nossa Alase ficar aqui, ele já deve estar voltando com o seu chá.
Respondeu Dayo, com um olhar que possuía uma mistura de preocupação e desaprovação, Ghottic bufou, determinada a fazer o que ela queria naquele momento e levantou daquela grama úmida.
— eu vou voltar antes dele, prometo. Asé!
De pé, suas asas voltaram a se formar nas suas costas, Ghottic pulou daquele penhasco e começou a voar em direção ao som.
— espero não ter machucado nenhum animal com a garrafa.
Não demorou muito para ghottic chegar ao local, porém já estava um pouco mais escuro quando pousou, com isso, a sua visão foi prejudicada.
— Asé!
O colar de Ghottic, normalmente sereno, irradiou uma luz vívida que cortou a penumbra ao seu redor. A magia contida na joia começou a se entrelaçar com a carne delicada ao redor de seu olho, desencadeando uma metamorfose.
A luz emanada do colar banhou cada detalhe do rosto de Ghottic, criando uma atmosfera onde o ordinário se curvava à influência do sobrenatural. A carne ao redor de seu olho tornou-se o palco dessa transformação, cada contorno, cada sombra ganhando vida sob o toque mágico.
Os primeiros sinais da metamorfose revelaram-se, a textura da pele alterando-se sutilmente, como se as linhas da realidade estivessem sendo reescritas. A luz intensificou-se à medida que a forma do olho começou a se modificar. O globo ocular, antes humanoide, transformava-se em algo que transcendia a natureza convencional, assumindo as características marcantes de um olho de lobete.
Cada fase da metamorfose era uma fusão de delicadeza e poder, a magia moldando a anatomia de Ghottic de maneiras além da explicação científica. A íris do olho de lobete ganhava uma luminosidade única, como se capturasse a essência da noite em sua profundidade.
Ao final da transformação, o olho de lobete de Ghottic emanava uma luz suave, como um farol lunar que revelava os segredos ocultos na escuridão. O brilho do colar diminuiu, deixando para trás uma testemunha silenciosa da alquimia entre magia e carne, transformando a visão de Ghottic em algo além do humanoide, um presente extraordinário concedido pela metamorfose mágica.
— Enle-o³? Tem alguém aí?
A garota olhava por todos os lados, mas não via nada de diferente, até que percebeu que pisou em algo estranho.
— a minha garrafa...
Ao olhar para baixo viu que a garrafa de cristal estava estilhaçada e acidentalmente ela havia pisado nos cacos, mas nada como um pouco de ardência nos pés para lhe dar uma motivação extra a explorar o local do acidente.
— Enle-o?! Tem alguém aí?!
Disse a bruxa mais alto, enquanto andava lentamente pelo local.
— a-ai...minha cabeça...
Resmungou o rapaz botando a mão no rosto, lentamente ele levantou e ao ficar de joelhos no chão, o mesmo gelou ao ver um brilhante olho amarelado andando perto dele.
— merda...
Sussurrou o rapaz, congelando no mesmo momento, ele estava confuso e assustado, mal lembrava de onde estava, sentia fome, frio e não sabia se aquilo era um animal ou um monstro, ou pior, se aquilo era o ET Bilu prestes a lhe dar um pouco de conhecimento, pois se fosse, ele teria a certeza de que havia pirado de vez.
— Enle-o? Enikan wa⁴?
O rapaz ouviu uma voz feminina perto do mesmo, ele não entendeu o que ela dizia, mas seu primeiro instinto foi gritar.
- Ei! Socorro! Eu tô aqui!
A bruxa ouviu alguém gritar, mas não sabia o que o ser havia falado, assim, olhou em direção do som e gritou ao ver o que era.
— Kàn⁵ ko-dara⁶! (Um humano!)
O rapaz gelou ao ouvir a garota gritando algo que ele não entendia, era como se tudo que ela falasse se embolava em sua mente, logo, sentiu o seu corpo estremecer ao perceber que aquele olho amarelo brilhante vinha dela, Aquilo deu um gatilho no vale da estranheza em sua mente, ao mesmo tempo que aquilo era humano, ao mesmo tempo não era e por isso a sensação de perigo fez sua mente formigar.
— aaaaah! Por favor, não me mata!
Ghottic se assustou ao ver aquele menino gritando algo que se embolava na sua mente, aquele menino deu um gatilho no vale da estranheza da bruxa, pois ao mesmo tempo que ele parecia um celtiano, também não parecia, seu alerta de perigo aumentou quando o viu se debatendo-se no chão, como uma barata tentando fugir do veneno, num grito de nojo e medo, ela apontou a sua mão para ele.
— Asé, Asé, Asé!
Ghottic gritou desesperada, seu olho brilhando com uma intensidade sobrenatural enquanto sua mão se iluminava em um tom magenta. Uma energia pulsante irradiava dela, formando pequenas esferas de luz vermelha que se assemelhavam a estrelas em miniatura.
As bolas de energia voaram em direção ao rapaz com uma velocidade impressionante, cortando o ar com um zumbido elétrico. Isaac tentou desviar, mas era como se as próprias estrelas estivessem determinadas a alcançá-lo.O brilho intenso das esferas iluminava o ambiente ao redor, criando uma cena surreal de beleza e perigo. O rapaz podia sentir o calor irradiando delas, uma sensação que o fazia tremer de medo e fascínio ao mesmo tempo.
— aaaaah!
Sua perna e ombro foram queimados. As pequenas estrelas marcaram a pele do ruivo como tatuagens cósmicas, ele caiu no chão como uma presa indefesa. Com as mãos trêmulas Ghottic prendeu o rapaz dentro de um domo de energia, com suas mãos brilhando, um brilho magenta encobriu o rapaz como uma enorme estrela oca.
— Eca! Eca! Eca!
A menina dava pulinhos e estremecia, com nojo do que estava na sua frente. Não demorou muito para a mesma ouvir sons de passos e asas atrás da mesma.
— o que houve minha Alase? Que gritaria foi essa?
Perguntou Aren, logo pousando no ombro da garota, os outros machos da floresta estavam atrás dele, caso precisassem atacar algo. Ghottic não disse nada, apenas apontou para o rapaz, que se contorcia de dor dentro daquele domo.
- Oh pela deusa! Um ko-dara!
Exclamou o tucano com suas penas arrepiadas, logo, os lobetes, em estado de alerta, começaram a rosnar, se preparando para atacar o rapaz.
- Ghottic! Precisamos oun-pa⁷!
Disse Akin já espumando, a garota, assustada, deu alguns passos para trás. Ghottic, envolta por uma mistura intensa de medo e curiosidade, contemplou o rapaz aprisionado no domo de energia. Ele era a personificação do desconhecido, o primeiro humano que ela havia visto, um enigma que pulsava com uma essência que desafiava as fronteiras do que ela conhecia.
Seu coração, como um tambor frenético, ecoava os batimentos da incerteza. Cada pulsação era uma dança entre o receio do desconhecido e a fascinação pelo humano à sua frente. Sua cabeça, formigando com uma mistura de adrenalina e intriga, era um turbilhão de pensamentos enquanto tentava decifrar o que se desdobrava diante dela.
As pernas de Ghottic, traídas pelo tremor da ansiedade, pareciam hesitar entre o recuo e o avanço. Era um dilema interno, uma dança delicada entre a precaução e a atração pelo mistério. Cada passo em direção ao domo era um confronto com o medo, enquanto a curiosidade persistente a puxava para mais perto.
A dualidade emocional se refletia em seus olhos, que oscilavam entre a cautela e o fascínio, como estrelas que brilham em meio à escuridão. O encontro com o humano tornara-se uma experiência avassaladora para Ghottic, uma jornada emocional onde o desconhecido se entrelaçava com a inquietação de sua alma.
Assim, diante do humano aprisionado, Ghottic experimentava a complexidade de sentimentos que a ligava a esse enigma vivente. Medo e curiosidade, duas forças opostas, dançavam no palco de suas emoções, criando uma sinfonia única que ecoava no cerne de sua existência bruxa.
— beko⁸! Ele está ferido, eu machuquei ele! Eu...eu quero ajuda-lo!
Sons de protesto foram ouvidos atrás dela, Aren olhou para Akin e o mesmo mostrou as suas presas para o pássaro, para o mesmo seguir obediente.
- a-ahm...minha alase, ele é um humano, ele nos faz mal, deixe que os lobetes cuidam dele, você não precisa fazer nada.
A bruxa fechou o olho e cerrou os punhos, ela não queria fazer aquilo, mesmo que fosse sua obrigação. Com raiva e com o coração batendo fortemente e como uma cachoeira cheia, lágrimas escorreram de seu olho.
— beko! Você sempre diz que devo proteger qualquer vida! Cuidar deste bosque é meu dever! Ele é uma vida e está no bosque! Por favor, deixe-me salva-lo e amanhã de manhã o mandarei embora! Por favor Aren!
O tucano suspirou e com os olhos fechados deixou a menina aproximar-se mais do rapaz, que estava indefeso como um animal preso em um zoológico.
— amanhã, quero vê-lo longe daqui e apague-o, não quero que ele saiba o caminho de sua casa.
Disse o pássaro rispidamente, Ghottic, apesar da aura de medo que permeava o ar, sorriu com uma expressão mista de compaixão e intriga. A distância entre ela e o rapaz diminuiu a meros centímetros, criando uma proximidade que contrastava com o temor visível ainda estampado em seu rosto, que gotejava com gotas de suor.
- Obrigada, Aren. Asé!
Agradeceu Ghottic, invocando novamente a magia contida em seu colar. A luminosidade que emanava dele intensificou-se, destacando a presença mágica da bruxa em toda sua esplêndida complexidade.
Com gestos precisos e confiantes, Ghottic recolheu um punhado de terra, sua aparência agora tingida por um brilho verde enigmático. Diante do domo de energia, ela abriu um portal, uma fissura entre o real e o místico, e despejou a terra brilhante no interior. Uma metamorfose rápida ocorreu, a terra se transformou em uma atmosfera carregada, envolvendo o rapaz ruivo em seu abraço.
Em poucos segundos, o cheiro forte da terra mágica fez com que o rapaz sucumbisse, desmaiando diante da potência sensorial da magia. Ghottic, agora com um sorriso intrigante, observou o efeito da sua magia, uma mistura de curiosidade e determinação moldando sua expressão enquanto o mistério ao redor do rapaz se aprofundava.
- amanhã o espantarei, prometo.
Sua mão brilhou e ela ergueu o domo o envolvendo com sua áurea magenta, a bruxa começou a caminhar para ir embora, mas Akin protestou.
— e os meus omodes? Eles não vão ser abençoados pela lua?
Ghottic suspirou e olhou para trás.
— eles vão ser abençoados pela lua comigo fazendo o ritual ou não, não sou eu que mando na lua, se quiser tanto assim um ritual peça para o ancião da alcateia uivar para a lua.
A bruxa disse num tom bravo e cansado, enquanto olhava com desprezo ao animal, a mesma já estava cansada de tantas responsabilidades, ela parecia mais uma empregada do que uma líder, agora era hora de fazer algo que ela queria. Com essa decisão, a mesma foi caminhando em direção ao seu salgueiro.
Akin, com uma seriedade cortante, se aproximou de Aren, seu olhar fixo no tucano como se pudesse discernir a verdade nos olhos da criatura alada.
- Como esse selvagem descobriu o caminho?
Indagou Akin, sua voz carregada de desconfiança e urgência.
- Eu não sei! Nenhum humano atravessou a caverna desde...desde aquele dia
Respondeu Aren, seu tom carregado de nervosismo, um nó na garganta denunciando a inquietação que o envolvia.
Akin, o líder da alcateia, mantinha seu rosto sério, como se cada palavra fosse um teste de lealdade.
- Certifique-se de que Ghottic não descubra a caverna. Se ela souber a verdade sobre a floresta, nossa segurança estará em risco.
O tucano engoliu em seco, sentindo o peso da responsabilidade em suas penas suadas.
- Ah, mas... não deve ser tão ruim assim se ela sair da floresta. Pode ser que tenha alguns celtianos pelo mundo afora e...
Akin não permitiu que Aren concluísse. Em um salto, o lobete investiu contra o tucano, sua expressão feroz e a baba raivosa pingando em suas penas.
- Ghottic nunca vai sair daqui! Alika fez a gente prometer isso! Se você não quer que nossa espécie seja destruída e que a magia morra, você vai trancá-la aqui, por bem ou por mal!
Após pisar nas asas do tucano, Akin se afastou, deixando Aren voar desorientado pelo céu escuro. Outros lobetes se aproximaram, observando a cena com uma tensão palpável no ar.
- O que faremos se ela sair da floresta junto com o humano?
Questionou outro lobete, sua voz rispidamente cortante.
Akin respondeu com frieza, seu olhar refletindo a dureza de uma decisão inevitável.
- Mate-os.
A tensão na alcateia atingiu um ápice, as palavras ecoando como trovões na escuridão da floresta. O dilema entre proteger o segredo mágico e enfrentar as consequências de uma revelação iminente pairava como uma sombra sobre todos, enquanto Akin, o líder, delineava as linhas de uma escolha cujas ramificações seriam profundas e irrevogáveis.
...•Dicionário celtiano•
...
...Oruko: nome
...
...Omode: filho, criança
...
...Enle-o: olá, oi
...
...Enikan wa: há alguem?
...
...Kàn: um
...
...Ko-dara: ruim
...
...Oun pá: mate-o
...
...Beko: não
...
A floresta, normalmente viva com o murmúrio da natureza, mergulhou em um silêncio incomum, como se cada árvore e criatura estivesse observando com atenção cada passo de Ghottic. O ar ficou pesado e denso, impregnado com uma energia carregada de tensão e antecipação, enquanto a escuridão da noite envolvia tudo ao seu redor.
À luz pálida da lua, os contornos das árvores se misturavam, criando sombras dançantes que pareciam se mover à medida que Ghottic avançava. O silêncio noturno era interrompido apenas pelo ocasional farfalhar das folhas ou pelo uivo distante de uma coruja, criando uma atmosfera ainda mais sinistra.
O brilho fraco das estrelas no céu noturno lançava uma luz espectral sobre a floresta, iluminando apenas o suficiente para revelar os contornos vagos do terreno irregular. Cada passo de Ghottic parecia ecoar pela densa vegetação, amplificado pela quietude opressiva da noite.
Dentro do domo de magia, Isaac permanecia inconsciente, envolto em um sono profundo e perturbador. Sua mente parecia distante, perdida em um mundo de sonhos turbulentos e sombrios, enquanto seu corpo jazia imóvel e vulnerável aos caprichos da bruxa.
- Ufa... só mais alguns passos...
Suspirou Ghottic, seus pés encontrando resistência na densidade do solo. O esforço físico combinado com a atmosfera silenciosa criava uma sensação de solidão que pairava no ar, acompanhando cada movimento dela naquele mundo escuro.
O silêncio predominante incomodava Ghottic, que sentia uma forte vontade de quebrar aquele vazio sonoro. A floresta, antes um coral de sons, tornara-se um eco quieto e perturbador. A bruxa considerou falar, mesmo que fosse consigo mesma, apenas para dissipar a opressão daquele silêncio que parecia penetrar cada parte da sua existência.
As árvores guardavam seus segredos naquela noite, e o mundo ao redor permanecia envolto em uma quietude que sussurrava mistérios e expectativas não ditas. O peso do silêncio, entrelaçado com a magia que Ghottic manipulava, transformava cada passo em uma jornada solitária através de uma floresta que observava com olhos silenciosos cada escolha da bruxa.
— Ufa! Finalmente...ilê¹
Ghottic respirou fundo, seus olhos fixados na majestosa árvore que suavemente balançava suas folhas douradas sob a brisa delicada da floresta. Cada folha dançava em harmonia com o vento, criando um espetáculo hipnotizante de luz e sombra sob o luar.O brilho prateado da lua derramava-se sobre as folhas da árvore, criando um jogo de luz e sombras que pintava padrões intrincados no chão coberto de musgo. O suave farfalhar das folhas era como uma melodia suave, ecoando pela floresta e enchendo o ar com uma sensação de tranquilidade.
- Ahm... salgueiro? Poderia ran mi lowo?
Murmurou a bruxa, suas palavras pareciam uma prece sussurrada à natureza ao seu redor. Os olhos de Ghottic se voltaram para o rapaz ao seu lado, uma figura suja e machucada que despertava nela uma dualidade de emoções, entre o nojo e a curiosidade.
As folhas do salgueiro-chorão, como bailarinas respondendo a uma melodia mágica, começaram a mover-se delicadamente em direção ao domo que envolvia o corpo do rapaz. Um manto de folhas envolveu suavemente o humano, transformando o domo em uma cama de vegetação que parecia brotar em resposta ao chamado da bruxa.
- Ẹ ṣe é o!
Expressou Ghottic, sua gratidão fluindo em palavras de agradecimento ao salgueiro. Observou as folhas da árvore erguerem o rapaz, conduzindo-o com gentileza até o ninho que ela chamava de lar. As folhas desceram novamente, abrindo-se como cortinas para a bruxa adentrar.
Dentro do ninho, um espetáculo mágico se desdobrava. Vaga-lumes dançavam em um balé de luz amarelada, iluminando cada canto com um fulgor encantador. O sorriso de Ghottic refletia sua sensação de pertencimento, um calor familiar que emanava do santuário natural.
Escalar o tronco retorcido da árvore não era um desafio para Ghottic, que chegou ao seu ninho com facilidade. O domo desfeito afastou-se, revelando o humano adormecido em uma cama improvisada de grama seca, pelos e penas. O ninho tornara-se um refúgio tranquilo e acolhedor, onde a magia entrelaçava-se com a beleza natural, a bruxa sentia-se em casa, envolta pela luz dos vaga-lumes e deixando a escuridão da floresta bem longe dali.
— como será que o deiyi⁴ aqui?
Perguntou em voz alta para ela mesma, sem saber se queria ou não uma resposta daquilo. O humano dormia profundamente, desejando de que tudo aquilo não passasse de um pesadelo bizarro, a sua respiração estava fraca e a face neutra; na sua mente ele sonhava com algo parecido com uma guerra nuclear entre sorveterias rivais. A bruxa senta ao lado do rapaz e suspira, ela sentia medo, mas queria ajuda-lo.
— Emi yoo um ọ larada⁵...
Sussurrou a bruxa no ouvido do rapaz, logo, se afastou e pulou da árvore, assim, correndo em direção a floresta.
Ghottic passou a madrugada inteira colhendo, amassando, cortando e cozinhando ervas medicinais, que diminuíssem os inchaços e queimaduras do rapaz, ela nunca trabalhou tanto, as suas mãos tremiam e a sua vista embaçava, ela já usara boa parte da sua magia naquele dia, se usasse mais poderia desmaiar ali mesmo por exaustão.
— Mo ti pari!⁶
Exclamou Ghottic após horas trabalhando, com o seu olho fundo ela olhou entre as folhas do salgueiro e viu que o céu estava aos poucos ficando azul-claro, com um longo suspiro ela jogou o seu corpo pesado no ninho, assim, deitando-se ao lado do humano, que estava coberto de curativos úmidos feitos com folhas e ervas, o seu corpo estava bem melhor visualmente, a bruxa sorriu, orgulhosa de si mesma, fechou os olhos e nem sentiu o sono chegar.
Não deu tempo de sonhar, Ghottic acordou sentindo algo se mexer ao lado dela, rapidamente, ela abriu o olho e viu o rapaz sentado, coçando os olhos enquanto bocejava. Quieta como uma onça, ela fez o mínimo movimento possível para sentar-se também, sem tirar o olho dele, o observando atentamente.
— a ai...minha cabeça...
Disse o humano enquanto coçava a testa, sem ele sentir os curativos caiam do seu corpo. Quanto mais ele acordava, mais percebia o ambiente estranho que ele estava, primeiro sentiu o ninho quando pôs a sua mão para baixo, depois percebeu as folhas acima da sua cabeça, como um enorme teto dourado, ele estava confuso.
Ghottic estava quieta e atenta, não falava nada, mas queria muito falar, ela não sabia o que fazer.
O garoto virou-se e arregalou aqueles enormes olhos verdes quando viu a bruxa, o seu corpo deu um pequeno pulo devido ao susto, por um momento seu coração acelerou e os seus pelos arrepiaram
— ah! Ah...meu Deus! Você me assustou! Ahm...isso aqui é algum tipo de acampamento? Não me lembro de ter chegado aqui noite passada.
Ghottic também se assustou ao ver que ele havia se assustado, ela o encarava, notando cada expressão facial que ele fazia ao falar.
— o ji! Iwa lero ti o dara? (você acordou! Sente-se bem?)
Exclamou Ghottic, animada, porém, ainda nervosa. O humano a olhou confuso e passou as mãos nos ouvidos, ele pensou que estava ouvindo tudo embolado por acabar de acordar.
— desculpe... não entendi pode repetir? Acho que ainda tô meio tonto por acordar rápido haha
Ele coça a nuca, enquanto sorria envergonhado, Ghottic suspira, percebendo que ele não havia entendido ela.
— o lero ti o dara? (sente-se bem?)
Disse Ghottic pausadamente, porém, ele ainda não entendia, fazendo novamente uma expressão confusa, que logo se transformou em raiva.
— isso é algum tipo de brincadeira? Ou código de escoteiros? É sério! Eu quero saber onde eu tô!
Sempre que dizia a palavra “eu” o garoto apontava as suas mãos em direção ao peito; a bruxa suspirou e gesticulou como ele.
— e-eu...eu...Temi ilê (minha casa)
Ela abre os braços e olha em volta, querendo mostrar que aquele salgueiro era sua casa, mas ele não entende e suspira, já um pouco sem paciência. Porém, ao olhar em volta percebe que lá haviam objetos parecidos com o que ele havia em casa, como o travesseiro e o cobertor de Ghottic, que eram feitos com penas e pelos.
— você...é alguma nativa ou algo do tipo? Eu só lembro de estar machucado na floresta e do nada acordei aqui!
Diz apontando para a bruxa, depois para ele e para o ninho, a expressão de raiva havia saído do seu rosto, agora, o humano expressava concentração.
— vo-você...
Ghottic apontou para o garoto da mesma forma que ele apontou para ela, a bruxa estava pensativa, tentando conectar aquelas palavras tão difíceis.
— você...estar machucado...eu chegado aqui...e acordar...
A bruxa corou, pois, se sentia uma boba, aquelas palavras não pareciam fazer sentido, ela tentava gesticular ao máximo, pois sabia que aquela comunicação seria difícil.
— humm...então...você me levou até a sua árvore e...cuidou de mim? É isso? Você me achou de noite e me trouxe até a sua tribo para me curar?
Ele apontou para a cabeça e para os braços, onde ainda tinha algumas folhas.
— eu...curar você.
A garota pegou um punhado de folhas ao seu lado, que ainda estavam com um pouco da pasta que ela havia feito para ser o remédio, assim, as mostrando ao rapaz.
— uau...obrigado!
O garoto sorri, Ghottic percebe que ele estava agradecido ou feliz por ver as folhas, então percebe que estava fazendo algo certo.
— orukọ mi ni Ghottic Kimyona. ( o meu nome é Ghottic kimyona)
Diz a bruxa apontando para ela mesma, o rapaz parece pensar um pouco, mas logo responde.
— ah! Prazer Ghottic! O meu nome é Isaac Kaji de Ramos, mas meus amigos me chamam de Iwa.
Diz apontando para ele mesmo e a bruxa aponta para ele.
— prazer...Isaac.
Ghottic sentada diante dele, curva o seu tronco até a altura do peitoral de Iwa, depois volta a postura, com a mão esticada ela leva a mesma até a pélvis e numa linha reta a bruxa traça um caminho até a própria testa, assim, passando e direcionando a ponta dos dedos para Iwa.
— temi laisi opin pade tire ( o meu infinito encontra o seu)
Iwa sorri e tenta imitar o que a bruxa fez, corado e envergonhado ele pronuncia o cumprimento.
— temi..laichi...opim...pade tire
Ghottic cora e solta uma leve risada, achando fofo aquele gesto inesperado. O humano, notando a reação dela, fica ainda mais vermelho, mas também ri, sentindo-se mais à vontade na presença da bruxa. Com um sorriso tímido, ele estende a mão em direção a ela, esperando por uma resposta.
A bruxa observa a mão estendida, seu coração batendo um pouco mais rápido do que o normal. Ela espera por um momento, até que gentilmente decide aceitar o gesto, tocando na mão estendida do humano. Um choque quente percorre pelo corpo dos dois, deixando-os ainda mais vermelhos, mas ao mesmo tempo, uma sensação reconfortante os envolve, como se uma conexão especial estivesse se formando entre eles.
Em um gesto impulsivo, o humano guia a mão da bruxa até a sua, entrelaçando seus dedos suavemente. Ambos sentem o calor da pele um do outro, criando uma ligação delicada e significativa que parecia transcender o momento. Era como se, naquele instante, o tempo se dilatasse e o mundo ao seu redor desaparecesse, deixando apenas os dois juntos.
— é um prazer te conhecer, Ghottic.
Ele sacode levemente a mão enquanto sorri gentilmente.
— é um prazer te conhecer, Isaac.
...•Dicionário celtiano•
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...Ilê: casa
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...Ran mi lowo: me ajudar
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...Ẹ ṣe é o: obrigada(o)
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...O deiyi: Você chegou
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...Emi yoo um ọ larada: Eu vou te curar / eu vou curar você
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...Mo ti pari: terminei/eu terminei
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