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A Garota Do Lago

A CACHOEIRA DO SOL DA MANHÃ

17 de fevereiro de 2012

A ocasião de sua morte

A NOITE DE INVERNO CAIU NO EXATO MOMENTO EM QUE Becca

Eckersley deixou o café. Caminhando pelas ruas escuras de Summit Lake, ela

enrolou o cachecol em torno do pescoço para se proteger do frio. Sentia-se bem

depois de finalmente ter falado com alguém, pois tornou aquilo real. A revelação

de seu segredo de longa data aliviou a pressão, permitindo-lhe relaxar um pouco.

Enfim, Becca acreditou que tudo daria certo.

No lago, o cais rangeu sob seus pés até ela alcançar o terraço que circundava a

casa à beira do lago de seus pais. Despreocupada após o tempo passado no Café

Millie, Becca não sentiu a presença dele. Não o notou nas sombras, oculto na

escuridão. Ela abriu a porta lateral e a trancou atrás de si. Em seguida, na

antessala tirou o cachecol e se livrou do casaco pesado. Ligou o alarme e se

dirigiu ao banheiro. Ali, colocou-se sob a ducha de água quente e deixou o

estresse para trás.

A confissão no café foi um teste. Prático. No último ano, Becca guardara

muitos segredos — e aquele era o maior e o mais insensato de todos. Os outros

podiam ser atribuídos à juventude, à inexperiência. No entanto, esconder essa

última parte de sua existência era pura imaturidade, explicada apenas pelo medo

e pela ingenuidade. O alívio que sentiu ao enfim contar para alguém confirmou

sua decisão. Seus pais precisavam saber. Já era hora.

Exausta por causa da pós-graduação em direito e do ritmo frenético de sua

vida, ficava fácil imaginar-se indo para debaixo das cobertas e dormindo até de entrar nos eixos novamente. Dormir não era uma opção, portanto. Assim, ela

levou dez minutos para secar os cabelos, vestir um agasalho esportivo confortável

e meias grossas de lã. Na bancada da cozinha, ligou o iPod, abriu o livro, ajeitou

as anotações e o laptop, e começou a estudar.

Antes, o chuveiro e o secador de cabelos encobriram o ruído da maçaneta da

porta e dos dois fortes golpes de ombro testando a resistência da fechadura. No

entanto, naquele momento, após estudar direito constitucional durante uma

hora, Becca escutou: uma pancada ou vibração na porta.

Becca reduziu o volume do iPod e apurou a audição. Meio minuto de silêncio

se passou, e então um golpe estridente na madeira. Três batidas sonoras que a

assustaram. Ela consultou o relógio e se espantou — ele só deveria chegar no dia

seguinte. A menos que quisesse fazer uma surpresa, o que costumava acontecer.

Becca correu até a antessala e puxou a cortina para o lado. Ficou confusa com

o que viu. Nessa confusão, seus pensamentos se perderam. Sentiu um frio na

barriga e um arrepio na espinha. Com a mente pouco clara, nenhum pensamento

se sobressaiu para fazê-la refletir. Lágrimas brotaram nos olhos e, ao mesmo

tempo, um sorriso se manifestou. Ela desligou o alarme, com a luz vermelha se

convertendo em verde. Em seguida, destrancou a porta e girou a maçaneta.

Espantou-se quando ele forçou a entrada e, como água acumulada contra um

dique, projetou-se na direção da antessala. Mais surpreendente ainda foi a

agressão.

Despreparada para o ataque dele, Becca sentiu os calcanhares serem

arrastados por sobre o piso de ladrilhos. Então, ele a empurrou com força contra

a parede. Agarrando-a pelos ombros e pelos cabelos, arrastou-a até a cozinha. O

pânico esvaziou a mente de Becca. Naquele momento, todas as ideias e imagens

que tinham estado ali até alguns segundos atrás desapareceram, dando lugar aos

seus instintos mais primitivos. Becca Eckersley passou a lutar por sua vida.

A agressão prosseguiu na cozinha, com Becca agarrando e chutando qualquer

coisa que fosse capaz de ajudá-la. Depois de o livro e o laptop caírem no chão, ela

procurou tracionar os pés com meias de lã nos ladrilhos frios. Enquanto ele a

puxava pelo recinto, ela agitava as pernas freneticamente. Foi quando desferiu

um pontapé enfurecido contra a cristaleira, despedaçando toda a louça e

espalhando os cacos pelo piso. Com o caos na cozinha ainda instalado, incluindo

tigelas rolando e banquetas se chocando, Becca conseguiu pisar no tapete da sala,

O que lhe deu força e tração. Ela tirou proveito disso para buscar se libertar do

domínio do oponente, mas sua resistência só aumentou a fúria dele, que passou a

puxar a sua cabeça para trás com força, arrancando uma mecha de cabelos e

fazendo-a cair de uma vez. Ao pousar, Becca bateu a cabeça contra a estrutura de

madeira do sofá. Então, ele se arremessou sobre ela.

A dor era lancinante. A visão de Becca ficou embaçada, e a audição,

comprometida. Foi quando ele enfiou as mãos frias sob a calça do agasalho

esportivo dela. Nesse momento, Becca recobrou a plena atenção. Apesar de estar

imobilizada sob o peso do corpo dele, ela o esmurrou e o arranhou ao ponto de

deslocar alguns dedos e de as unhas ficarem cobertas de pele e sangue.

Ao sentir a calcinha ser rasgada, Becca soltou um grito agudo, estridente, que

durou apenas alguns segundos, pois as mãos dele logo apertaram seu pescoço,

sufocando-a. Ela arfou, buscando ar, mas sem sucesso. Embora seu corpo não

conseguisse mais reagir aos apelos aterrorizados de sua mente, Becca ainda

resistia, nunca perdendo o contato visual com o agressor. Até que sua visão se

desvaneceu como sua voz.

Ferida e sangrando, Becca ficou ali, desfalecida, acordando cada vez que ele a

maltratava em ondas coléricas, violentas. A impressão foi de que se passou uma

eternidade antes de o homem decidir abandoná-la. Antes de ele escapar pela

porta corrediça de vidro da sala, largando-a aberta e deixando que o ar frio da

noite penetrasse pelo recinto e atingisse o seu corpo despido.

Ela sentia as pálpebras pesadas. Naquele momento, tudo o que Becca

conseguia ver era a luz branca emitida pela lâmpada no batente, um brilho

contra a escuridão da noite. Ela permanecia imóvel, incapaz de piscar ou desviar

o olhar. Era estranho, mas a paralisia não a incomodava. As lágrimas rolaram

pelo rosto e gotejaram silenciosamente no piso. O pior tinha passado. A dor

desaparecera. Becca não mais recebia socos, nem estava mais sendo sufocada.

Finalmente, livrara-se do domínio dele. Não sentia mais aquele hálito quente no

rosto. Ele não estava mais sobre ela. A ausência dele era toda a liberdade que ela

queria.

No chão, com as pernas estendidas e os braços como dois galhos de árvore

quebrados ligados às suas laterais, ela encarava a porta escancarada do pátio. O

farol distante, com sua luz brilhante orientando os barcos perdidos na noite, era

tudo que ela percebia e tudo que ela queria. Era vida, e Becca se agarrou à sua imagem oscilante.

Ao longe, uma sirene ecoou na noite, baixinha no início, e depois, mais alta.

A ajuda estava chegando, embora ela soubesse que era muito tarde. No entanto,

Becca saudou a sirene e o auxílio que traria. Não era mais para si que ela esperava

a ajuda.

2 1º de março de 2012 Duas semanas depois da morte de becca

O RETORNO DE KELSEY CASTLE AO TRABALHO FOI TRANQUILO e sem

cerimônia, do jeito que ela queria. Kelsey parou o carro no estacionamento dos

fundos; assim, ninguém notaria seu veículo. Em vez de se arriscar no elevador,

entrou furtivamente pela porta de trás e subiu pela escada. Era muito cedo ainda,

e a maioria dos funcionários estava enfrentando a hora do rush ou tentando

ganhar mais alguns minutos de sono. Ela não poderia permanecer invisível para

sempre. Teria de conversar com alguém. No entanto, esperava manter a porta de

seu escritório fechada e correr atrás do prejuízo por algumas horas, sem ser

interrompida por sorrisos tristes e expressões do tipo "Como você está?".

Ao deixar a escada, percebeu as estações de trabalho vazias. Com passos

firmes, percorreu o corredor, mantendo os olhos fixos na porta de seu escritório,

como se fosse um cavalo de corrida como tapa-olhos para as laterais. A porta do

escritório de seu editor se encontrava aberta, com as luzes brilhando. Kelsey

sabia que não o venceria, jamais. Após mais alguns passos, alcançou seu

escritório, entrou e rapidamente fechou a porta a trás de si.

— O que você está fazendo aqui? — Penn Courtney perguntou com uma

expressão de desaprovação. — Achei que só voltaria dentro de duas semanas.

Penn, sentado no sofá dela, com os pés sobre a mesa de centro, folheava os

rascunhos dos artigos que seriam publicados na edição daquela semana.

Kelsey respirou fundo.

— Por que você está em meu escritório? Por que sempre que precisa de algo,

você espera aqui?

— É sempre um prazer vê-la.

Kelsey caminhou até sua mesa e guardou a bolsa na gaveta inferior.

— Desculpe. — Ela voltou a respirar fundo e sorriu. — É sempre um prazer

vê-lo também, Penn. E obrigada por tudo o que você fez por mim.

— Por nada.

— Você é um bom amigo.

— Como você está?

— Meu Deus, mal passo pela porta e tenho de escutar isso. Já conversamos a

respeito. Não quero as pessoas aparecendo aqui e querendo saber como estou a

cada minuto do dia.

— Por isso o retorno discreto antes da chegada da tropa? Deixe-me

adivinhar: você subiu pela escada?

— Preciso de exercício físico.

— E parou o carro no estacionamento dos fundos?

Mantendo-se calada, Kelsey simplesmente o encarou.

— Não pode se esconder de todos, Kelsey. As pessoas estão preocupadas com

você.

— Eu entendo. Só não quero pieguice, sabe?

— Não queria perguntar de novo — Penn afirmou, organizando os papéis a

sua frente em pilhas perfeitas para manter as mãos ocupadas. — Mas, sério, o que

você está fazendo aqui?

— Ficar em casa está me deixando doida. Seis semanas de licença é muita

coisa. Já fiquei um mês. É o máximo que aguento. Assim, voltemos a minha

pergunta original: por que você está em meu escritório?

Penn se levantou do sofá, com a pilha de papéis nas mãos, e caminhou até a

frente da escrivaninha.

— Eu ia fazer isso daqui a duas semanas, mas acho que posso lhe perguntar

agora.

Kelsey sentou-se à mesa. A tela do computador já capturava sua atenção.

— Veja todos esses e-mails. São centenas. Entendeu? Por isso tenho de fazer

algum trabalho em casa.

— Esqueça os e-mails. São todos lixo. — Penn deixou que ela lesse por um

minuto antes de continuar; — Ficou sabendo de Summit Lake?

— Não. O que houve?

É uma cidadezinha nas montanhas Blue Ridge. Singular. Aconchegante.

Cheia de forasteiros que passam o tempo em casas de veraneio. Esportes

aquáticos no verão; pistas de esqui e passeios em motos de neve no inverno.

Kelsey lançou um olhar para ele e, depois, de volta para o computador.

— Você precisa de Finasterida?

— O remédio para calvície?

— Sim. São quase cinquenta e-mails de ofertas.

— Acho que é muito tarde para isso. — Penn passou a mão sobre a cabeça

totalmente lisa.

— Viagra? Será que esses idiotas sabem que sou uma mulher? Sim, a maioria

dos e-mails é lixo.

— Quero que você vá até lá. — Penn colocou a pilha de papéis sobre a mesa

dela.

Kelsey desviou o olhar da tela, moveu-o para a pilha de papéis e, em seguida,

dirigiu-o na direção de Penn.

— Ir aonde?

— Summit Lake.

— Para quê?

— Uma história.

— Não comece, Penn. Acabei de lhe dizer.

— Não estou começando nada. Há uma história ali, e quero que você cuide

dela.

— Que história pode existir numa cidadezinha turística?

— Uma história importante.

— Resposta horrível. Você está querendo se livrar de mim porque acha que

não estou pronta para voltar.

— Não é verdade. — Penn fez uma pausa. — Estou querendo me livrar de

você porque acho que você precisa disso.

— Droga, Penn! — Kelsey ficou de pé. — É assim que as coisas vão ser de

agora em diante? Vai me tratar como se eu fosse uma boneca de porcelana, me

dando artigos sem importância para fazer e me mandando de férias porque você

acha que não consigo lidar com meu trabalho?

— Para ser honesto, creio que neste momento você não consegue. Você não

devia voltar tão cedo. E não é assim que as coisas vão ser de agora em diante.

Então, Penn apoiou as mãos na mesa, se inclinou na direção de Kelsey e a

encarou. Com o dobro da idade dela, dois filhos e uma vasectomia bemsucedida,

Penn a tratava como se ela fosse a filha que ele nunca teve. — Mas é

assim que serão neste momento. Há uma história em Summit Lake. Quero que

você a investigue. É mero acaso que a cidade tenha uma visão maravilhosa das

montanhas e um belo lago azul? Não. A revista normalmente a colocaria num

hotel cinco estrelas com todas as despesas pagas? Claro que não. Mas eu sou o

dono, você ajudou a revista a crescer, e quero um artigo de primeira. Estou

mandando você para Summit Lake pelo tempo que for necessário para que

descubra tudo. — Sentou-se numa cadeira em frente à mesa de Kelsey e suspirou.

Kelsey fechou os olhos e se acomodou também.

— Descobrir o quê? Qual é a história?

— Uma garota morta.

Kelsey ergueu as sobrancelhas, em interrogação, e o encarou com seus

grandes olhos castanhos.

— Continue.

— É o único homicídio documentado da história de Summit Lake. Hoje, é

assunto de muita discussão ali. Aconteceu duas semanas atrás, e está começando

a ganhar repercussão nacional. O pai da garota é um advogado importante. A

família é rica. A polícia ainda não tem pistas. Nenhum suspeito. Apenas uma

garota que estava viva um dia e morta no dia seguinte. Algo que não faz sentido.

Quero que você cutuque e bisbilhote. Descubra o que todo o mundo está

deixando escapar. Aí, me dê um artigo que as pessoas queiram ler. Vou pôr o

rosto dessa garota infeliz na capa da Events, não só com uma história a respeito

de sua morte, mas com a verdade. E quero fazer isso antes que outros abutres

sintam o cheiro e saiam voando para Summit Lake. Depois que a cidadezinha se

encher de jornalistas e tabloides, ninguém mais vai abrir o bico.

Kelsey pegou os papéis que Penn colocou sobre sua mesa e os folheou.

— Não tão sem importância quanto eu pensei.

Penn fez cara feia.

— Acha que eu mandaria minha melhor repórter investigativa para escrever

a respeito de lojas e galerias de arte modernosas? — Ele se ergueu. — Fique dois

dias aqui para fazer sua pesquisa, e depois vá para lá. Descubra se há alguma

história ali. Em caso positivo, escreva uma bela matéria. Não espero você de volta

Tão cedo. Quero isso para a edição de maio, o que significa que, mesmo se você

conseguir essa história no dia de sua chegada, terá o hotel por um mês.

— Obrigada, Penn — Kelsey respondeu com um sorriso.

3 Becca Eckersley Universidade George Washington 30 de novembro de 2010 ...

BECCA ECKERSLEY ESTAVA REUNIDA COM TRÊS AMIGOS NA biblioteca

da universidade. Pequenas luminárias conferiam luz à mesa ocupada por eles,

bem como aos livros, aos papéis e aos seus rostos. Três anos antes, Becca chegara

ao câmpus sem nenhuma de suas amizades do colégio, mas não teve problema

algum para se adaptar à faculdade de direito. No primeiro ano, ela dividiu um

quarto com Gail Moss, com quem desenvolveu uma boa amizade — bem como

com Jack e Brad, também colegas de curso. Todos eles estudavam juntos com

regularidade e formavam um quarteto incomum.

— As pessoas dizem isso o tempo todo — Gail afirmou.

— Que pessoas? — Brad quis saber. — Quem fala tanto da gente?

— Não sei — Gail respondeu. — Alguns caras. Algumas garotas.

— E qual é o problema deles?

— Acham que somos estranhos.

— Quem se importa com o que pensam? — Brad deu de ombros. — Falando

sério, acho que é tudo coisa da sua cabeça.

— Não é, não. — Gail respirou fundo. — Tudo bem, então vou fazer uma

pergunta que quero fazer faz tempo: por que somos amigos?

— Como assim? — Becca a fitou, surpresa. — Ora, porque gostamos uns dos

outros. Porque nos damos bem, temos coisas em comum. É por isso que as

pessoas se tornam amigas.

— Gail está se referindo a sexo, ou à falta dele, entre nós. — Brad falava

olhando para Gail. — Ela é muito tímida para externar isso dessa maneira. É melhor você achar um jeito de se expressar com mais clareza se quiser ser

advogada.

— Ótimo. — Gail fechou os olhos por um instante para evitar contato visual.

— Será que ninguém acha esquisito o fato de sermos amigos desde o primeiro

ano e não ter havido nenhuma transa, nenhuma suruba, nenhum drama?

— Você tinha um namorado quando nós a conhecemos — Jack lembrou. —

Qual era o nome dele?

— Gene.

Jack deu uma risada e apontou para Gail.

— Isso mesmo. Euge. Eu gostava daquele cara. Meio babaca, mas de um jeito

bacana.

Brad também riu.

— Tinha me esquecido dele. O cara detestava quando a gente o chamava de

Euge. "É só Gene", ele dizia. Vocês se lembram daquele fim de semana?

Naquele momento, Becca também achou graça.

— O fim de semana do "É só Gene". Ah, meu Deus, parece que faz muito

mais que três anos!

Gail tentou não rir.

— Sim, muito engraçado. Ele nunca voltou para Washington depois daquele

fim de semana.

— Euge terminou o namoro com você pouco depois, não foi?

— Sim, Jack, por causa daquele fim de semana.

— Fala sério! Só porque a gente o chamava de Euge?

— Esqueça, Jack — Gail pediu. — Minha conclusão é que nosso quarteto é

único. Duas garotas, dois caras. Bons amigos na faculdade, sem nenhuma

maluquice para balançar o coreto.

Jack fechou seu livro de direito comercial e deu um tapinha nas costas do

amigo.

— Brad será o senador mais poderoso do Congresso, vocês duas serão as

advogadas idiotas que vão trabalhar para ele, eu serei o lobista que conseguirá

todo o dinheiro necessário, e continuaremos sendo bons amigos. Quem se

importa se as outras pessoas não entendem? — Ele enfiou os livros em sua

mochila. — Para mim, já deu por hoje. Vamos beber uma cerveja.

— Amém! — Brad exclamou.

Os dois rapazes guardaram suas coisas e se levantaram para ir embora. Becca

olhou para Jack e perguntou:

— Ninguém está preocupado com o exame final do professor Morton?

— Eu estou — Jack respondeu. —Mas me encontro num processo de infusão

lenta, que permite que meu cérebro absorva suas aulas terrivelmente entediantes

em pequenas doses. Se meto tudo à força, a maior parte acaba vazando.

— Sim. — Becca sorriu. — É um grande plano para alguém que estuda

durante todo o semestre. Mas os demais precisamos rachar de estudar, e às

pressas. Rapazes, vão vocês. Gail e eu vamos ficar.

— Sem essa! Não sejam chatas. — Jack franziu a testa.

— O exame final é daqui a duas semanas — Becca o lembrou.

— Deem por encerrado o assunto por esta noite, e amanhã vamos investir

um tempo extra.

— Pessoal, Bradley Jefferson Reynolds tem a solução para os seus problemas.

— Brad arqueou as sobrancelhas. — Devia ser uma surpresa, mas vejo que todos

vocês têm de saber disso agora. Na próxima semana, conseguirei uma cópia do

exame final de direito comercial do professor Morton. Para ser usada e abusada,

se vocês julgarem conveniente.

— Papo-furado — Becca o desafiou.

— Não é, não. Tenho uma fonte, e isso é tudo que posso dizer por enquanto.

Então, vamos todos beber uma cerveja para celebrar.

Becca olhou para Jack, que encolheu os ombros, em sinal de desdém, e

afirmou:

— Quem somos nós para duvidar desse cara?

Com relutância, Becca guardou suas coisas e disse a Gail:

— Será como aquela vez em que ele, no primeiro ano, prometeu a todos nós

redações para o exame de história da Ásia. Ficamos acordados até as cinco da

manhã, terminando o trabalho, depois que Brad teve um chilique. Lembra-se

disso?

— Desta vez é diferente — Brad contrapôs.

— Claro que é. — Becca pendurou a mochila no ombro, agarrou Brad pelo

braço e pousou a cabeça no ombro dele, enquanto saíam da biblioteca. — Mas

gosto de você mesmo quando não cumpre o que promete. Ainda que eu tire uma

nota C e manche meu histórico acadêmico.

Nenhuma das faculdades de direito mais prestigiadas do país a aceitará

para pós-graduação com uma nota C em seu histórico. — Brad deu um tapinha

na cabeça de Becca enquanto caminhavam. — Parece que terei de cumprir o que

lhe prometi.

O 19th Bar, no bairro de Foggy Bottom, em Washington, tinha o público

normal de uma noite de terça-feira; ou seja, uma multidão de estudantes

universitários no auge de sua existência. A maioria vinha de famílias ricas da

costa leste e tinha planos associados a carreiras políticas ou direito. Alguns

queriam outras coisas, mas eram minoria.

Os amigos acharam uma mesa vazia junto à janela da frente, uma vidraça que

permitia que os transeuntes observassem o interior do bar, invejando a vida dos

jovens universitários a caminho do estrelato. Eles pediram cervejas e caíram em

sua rotina comum de discutir política.

Após alguns copos, Brad começou sua bravata recorrente e repleta de

maldições sobre nunca ter existido um presidente americano que viveu

realmente de acordo com seus princípios e, depois, governou da mesma maneira.

— Eles sempre se tornam vítimas da política de Washington, sempre cedem a

interesses específicos. Alguém pode citar um presidente que tinha mesmo o povo

em mente na maioria de suas decisões no poder? Nenhum tinha, e o atual

também não tem. É tudo uma questão de poder, manter o poder e repartir o

poder com aqueles que investem o dinheiro neles.

— E você vai pôr um fim nisso tudo, certo?

— Ou morrerei tentando, Becca. E vou começar com o escroque filho da puta

que se diz meu pai. — Brad tomou um gole de cerveja. — Assim que receber o

diploma.

— Eu buscaria contatos e apoio antes de atacar meu próprio pai — Becca

disse.

— Boa ideia. — Brad apontou para Becca, e em seguida tomou outro gole de

cerveja, como se estivesse num pub irlandês prestes a começar uma

briga. Limpou a boca com o antebraço, num gesto dramático, e encarou o teto do

bar.

Os outros começaram a rir ante o espetáculo.

Brad continuou:

— Precisa vir de repente, de modo totalmente insuspeito. Sim, vou criar

Uma coalizão, e quando meu pai achar que está numa boa, vou mandá-lo para

a prisão, como Giuliani fez com Teflon Don, aquele mafioso seboso.

— Nem foi ainda aceito para pós-graduação numa faculdade de

direito oficialmente reconhecida e já se compara com Rudy Giuliani. — Jack deu

uma risada. — Amo sua autoconfiança.

Becca e seus amigos adoravam as tiradas de Brad. Jack e Gail as escutavam

por entretenimento, mas Becca possuía uma percepção mais aguçada. Ela

conhecia Brad melhor. Sabia de seus segredos, seus desejos e seus conflitos.

Entendia que suas opiniões eram fruto da rebelião. Um pai opressivo, que

acumulou uma fortuna dirigindo um dos maiores escritórios de advocacia da

costa leste, tentava dirigir a vida do filho numa direção que Brad não desejava

seguir. Numa mistura de rendição dissimulada e vingança secreta, Brad

concordou com uma formação acadêmica na George Washington e, em breve,

suportaria cursar pós-graduação numa universidade da Ivy League — o grupo

das oito universidades mais prestigiadas do país. No entanto, em vez de se juntar

ao pai na roubalheira — como costumava dizer —, Brad usaria o diploma pago

por ele para, algum dia, acabar com a carreira do grande sr. Reynolds. Esse era o

plano.

Naqueles três anos de amizade, Becca encontrara o pai de Brad algumas

vezes. O pai dela também o conhecia, pois tinha um relacionamento profissional

com Reynolds. Todos os anos, o pai de Brad organizava um fim de semana na

cabana de caça dos Reynolds, para onde alguns advogados ricos iam para caçar

alces, fumar charutos e falar de negócios. No ano anterior, o pai de Becca

fora convidado, e voltou para o lar dizendo que o sr. Reynolds era um

verdadeiro idiota. Um homem frio e severo, que pressionava os filhos de maneira

doentia.

Becca nunca teve dificuldade para entender o ressentimento de Brad. Como

punição pela ausência permanente do pai nos torneios de beisebol, nos treinos de

futebol, nos jogos do Baltimore Orioles e em qualquer coisa no colégio além de

breves aparições em reuniões para tomar conhecimento das deficiências do filho,

Brad decidiu utilizar a vontade do pai contra ele. Era um plano pérfido, que

levaria anos para ser consumado. Se alguma vez se tornasse realidade — se o

ressentimento de Brad não definhasse na maturidade, e se seus interesses não

mudassem com o tempo —, Becca considerou que não haveria pior tapa na cara

de um pai do que o filho usar a educação paga por ele para liquidar sua própria

carreira. Assim, Becca sabia que havia um propósito além das bravatas de Brad:

era terapêutico para ele tramar uma rebelião de muitos anos contra o pai. Era sua

Maneira de liberar sua frustração sem arruinar o relacionamento com o pai, que,

na maturidade, talvez tivesse uma chance de conserto.

Eles pediram mais cerveja quando Brad se acalmou.

— Todos vão para casa no Natal? — Gail quis saber. — Porque estamos indo

para nossa casa na Flórida, minha mãe disse que vocês podem vir conosco.

— Meus pais me matariam se eu não fosse para casa — Becca revelou.

— Sim. Minha mãe não iria gostar. O Natal é uma data muito importante.

— Jack torceu o canto da boca.

— Talvez.

— Sério, Brad? — Os olhos de Gail brilharam.

— Sim, talvez por alguns dias. A véspera do Natal e o Natal são o máximo de

tempo que consigo ficar ao lado de meu pai. Talvez eu vá para a Flórida logo

após o Natal. Caso contrário, voltarei para cá, para esperar, neste lugar morto, o

retorno de todos.

— Vamos passar o tempo na praia pensando no pobre Jack congelando de

frio em Wisconsin — Gail brincou.

— Jogue sal na ferida, jogue — Jack resmungou.

— Vai ser muito divertido. — Gail sorriu, animada. — Vocês deviam pensar

nisso.

Jack tomou um gole de cerveja, e olhou para Becca e para Gail, de novo.

— Talvez no recesso da primavera. Mas não posso fazer isso no Natal.

— A semana do saco cheio! — Gail exclamou, arregalando os olhos. — Meus

pais vão para a Europa. Teremos a casa só para nós!

— A menos que vocês, rapazes, prefiram ir para South Beach para pegar

umas garotas da Universidade de Miami — Becca sugeriu.

Brad e Jack se entreolharam e trocaram brindes.

— Sim, nós avisaremos vocês sobre a semana do saco cheio. Talvez tenhamos

de fazer uma breve parada por lá. — Jack piscou, sorrindo.

— Seus idiotas! — Gail gracejou.

Todos riram e pediram mais cerveja. Faltavam duas semanas para os exames

finais. Naqueles dias todos pareciam imortais.

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