~Martina
O mundo estava mais escuro essa manhã, as nuvens cobriam o brilho dos raios solares, além do frio que exalava pela janela e nem mesmo o cobertor surrado conseguia conter a brisa congelante. Um clima um tanto quanto estranho para uma cidade no coração do Brasil.
Foi então que a pequena Martina ouviu ruídos vindos do lado de fora de seu quarto. O mundo estava prestes a ser preenchido pelo crepúsculo, então temendo ver aparecer os primeiros raios solares, horário em que seus pais costumavam chegar das noites boêmias entre os bares e becos sujos da cidade.
Deveria ter acordado mais cedo, porém, seu corpo protestou diante da fraqueza resultante de dias comendo migalhas deixadas após as refeições.
O som de passos se aproximando foram substituídos por frases desconexas que preencheram o ambiente, juntamente com o odor pungente de álcool e cigarro.
- Onde está aquela peste? O café ainda está por fazer. - disse sua mãe em um tom de voz alterado.
- Deve estar dormindo. Puxou à sua parte da família, um bando preguiçosos...- respondeu seu pai de modo desprezível.
- Cala boca! Sua família é composta por porcos imundos e nem por isso eu os comparo com aquele verme que você me fez carregar por nove meses kkkk.- esbravejou a mãe de Martina e logo após, riu com escárnio.
- Ela vai levantar nesse momento, nem que eu tenha que arrastá-la pelos cabelos. - Foi em direção ao guarda-roupas e tirou um maço de fios que formavam uma espécie de chicote.
Foi então que Martina ouviu, o estalar dos fios desencapados cortando o ar. Seu corpo encolheu perto da janela fria, pois sabia o que viria logo após aquele som.
Martina assim como tantos outros, era fruto de uma família desestruturada, um verdadeiro erro, como eles gostavam de chamá-la. Seus pais eram alcoólatras, nunca a trataram com carinho ou apreço. Pelo contrário, ao voltarem das noites de bebedeira, descontavam as frustrações na pobre menina que tinha seu corpo marcado pelas chicotadas de fio.
A cortina que encobria a entrada de seu quarto foi puxada de modo tão brusco que acabou rasgando.
- Vou ensinar esse verme, que nessa casa não cabem preguiçosos imundos. - falou em tom de ódio e desprezo.
No momento em que sua mãe levantou o braço, para acertá-la nas costas, com aquele objeto afiado como uma lâmina. Ela já podia sentir a dor que viria com o impacto em seu corpo e o sangue que mancharia o colchão velho do qual não conseguia se levantar. Sabia que seu corpo esguio não aguentaria o golpe em decorrência de ter passado mais uma noite faminta..
Foi então que Martina acorda num sobressalto, com o corpo ofegante. Não obstante, pôde sentir a fria brisa que entrava em seu quarto, o vento resultante de uma noite de geada em Munique. Provavelmente, havia esquecido de fechar a janela na noite passada, quando chegou esgotada de mais um plantão.
Apesar do tremor que tomava conta de seu corpo, sentiu-se aliviada pelo frio tê-la acordado de mais um dos frequentes pesadelos que tinha durante a noite.
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Já havia feito sua higiene matinal e agora estava tomando o café da manhã, sentada à mesa meticulosamente organizada. Gostava de flores, por isso, sempre que podia, a depender da estação do ano, colhia do jardim e colocava num vaso. Para ela isso dava um ar de aconchego ao seu apartamento.
Mas agora era hora de ir para o hospital, pois havia combinado de substituir uma colega de trabalho no setor de urgência e emergência.
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~Angelo
O som da própria pulsação, é tudo o que Angelo se concentra em ouvir. Suas mãos calejadas portavam a bela pistola com detalhes em ouro, herança de seu pai. Os olhos estavam firmes em direção ao alvo, nada mais, nada menos que Rodrick, um espião convencido de que havia concluído sua missão com êxito ao adentrar na mansão de Angelo, disfarçado com a equipe de jardinagem.
Mal sabia que ele era a própria personificação do rato sendo atraído para a ratoeira.
Os dias estavam complicados ultimamente, muitos inimigos se levantando contra a família, resultado de diversos desentendimentos internos e quebras de aliança, o que para a máfia era sinônimo de morte e derramamento de sangue.
O espião com seus braços e pernas presos por grilhões na parede, ainda estava com sua roupa de jardineiro. O que fez atiçar uma parte do subconsciente de Angelo que o fez deixar a pistola sobre a bancada.
- Não vai ter graça se eu fizer isso rápido...
Os olhos do prisioneiro se arregalaram quando Angelo pegou a tesoura utilizada para aparar galhos das árvores. Seus gritos seriam contidos pela mordaça presa à boca. O único som que conseguia emitir eram murmúrios, provavelmente pedindo clemência e piedade pela pretensiosa façanha que fizera.
Então Angelo se aproxima com a tesoura e inicia o trabalho que duraria até a última gota de sangue de seu "ratinho". De alguma forma, a prática sádica o aliviava da pressão de carregar o sobrenome do pai sobre si.
Ao finalizar a própria sessão de tortura, já passavam das 5:00 horas, o chão estava manchado, havia sangue escorrendo pela bancada, pedaços e membros humanos se faziam presentes em praticamente todo o local.
Angelo estava encharcado, molhado da cabeça aos pés com o sangue de outrem, a vida que decidira tomar para si, assim como tantas outras. Parecia uma cena diretamente de um filme de terror, mas era apenas o contêiner no subsolo da mansão da família.
~ Angelo
Hoje seria um dia importante para os negócios, chegaria o tão aguardado carregamento de armas dos contrabandistas brasileiros.
Barbara minha noiva, passou o dia distante dos meus olhos. Já estava começando a ficar irritado com a demora dessa mulher em retornar para casa, pois queria ter certeza de que todos estavam seguros antes de sair para a missão com meu pelotão de elite.
Os rapazes já estavam devidamente equipados e preparados, faltavam apenas alguns minutos para chegar a hora de colocar as mãos no carregamento. Esse seria um marco para a defesa da família Rendall, visto que estamos em tempos obscuros de poucas alianças e muitas traições.
Minha paciência acabou para Barbara e seus caprichos, então decido não a aguardar chegar em casa, e apenas informo para os seguranças locais estarem de prontidão diante de qualquer movimentação estranha frente à mansão. Mais tarde me resolvo com essa vadia inconsequente.
Pegamos os automóveis blindados e nos dirigimos até a propriedade onde seria realizado o pagamento e entrega do armamento. Chegando lá, encontro alguns capangas de prontidão, fazendo a segurança padrão do local.
Adentro no imenso galpão sem a companhia dos meus seguranças, que ficaram fazendo guarda no exterior do terreno, juntamente com os demais homens da máfia aliada, restando apenas alguns de prontidão no interior do local.
Sento à mesa que estava disposta no centro daquele espaço. Foi então que vejo Jorge, líder brasileiro da facção responsável pela venda e carregamento de armas clandestinas, adentrar pela porta dos fundos, o que era ótimo, o quanto antes acabarmos esse acordo, mais cedo voltaríamos para a casa da família e saberia o paradeiro de Barbara, que até o momento conturbava meus pensamentos em estresse por não estar em casa no horário acordado.
Jorge não era dos meus aliados mais próximos, seu jeito malandro e pretencioso não engana a mim. Este, venderia até a própria mãe por meros tostões se assim o fosse conveniente. Porém, meu pai sempre me dizia para manter os facilitadores por perto, mas não perto demais para ver o branco dos olhos. Esse era um dos seus muitos ditados, a fim de que eu não confiasse em qualquer um, pois na máfia, as alianças ocorrem na maioria das vezes por conveniência e não por fidelidade ou parcerias genuínas.
Antes de me pronunciar, ouço uma movimentação estranha do lado de fora, é como se uma agitação estivesse se formando, foi então que levei a mão até o coldre da minha arma, preso à calça. Olho para Jorge e o vejo já apontando sua arma em minha direção juntamente com seus capangas.
- ora, ora, ora... Se eu fosse você, não perderia meu tempo com movimentos bruscos Angelo. - Disse Jorge com sua voz irritantemente anasalada.
- Seu filho da puta! O que pensa que está fazendo? Acha que uma emboscada de merda vai me impedir de triturar você vivo até implorar pela morte? - Disse, tentando aguçar os sentidos para que o ódio não me faça perder o controle.
A essa altura, a equipe de Angelo já estava em uma intensa troca de tiros com os contrabandistas brasileiros. O derramamento de sangue havia começa...
- Eu pergunto a você Angelo, não sentiu falta de algo hoje mais cedo? Talvez uma loira gostosa de cabelos longos? - Disse Jorge com escárnio, se referindo à Barbara.
- Do que está falando seu maldito? Se encostar um dedo na minha mulher, será um homem morto. - Angelo sentia o corpo latejar de tamanho ódio que o consumia.
- Para quê essa comoção toda parceiro? Quero que saiba de uma coisa. Não foi preciso muito para sua mulher vir correndo para minha cama hoje mais cedo.
- O que? - A dúvida o corroía, pois os acontecimentos do dia começaram a encaixar, com o sumiço de Barbara e o atraso em seu regresso para a casa. Não podia ser...
Nesse momento, o som de passos são ouvidos pelo ambiente, mais precisamente, o som do caminhar feminino. Angelo conhecia bem o barulho daqueles saltos, aquele modo de andar...
Foi então que Barbara aparece atrás de Jorge, com uma fisionomia felina, seu rosto estava sombrio, como uma onça prestes a saltar sobre a presa.
- Achou mesmo que eu iria perder sua festinha Angelo? Óbvio que iria ver sua morte, não sabe o quanto esperei para isso, cheguei a contar os dias em que não precisaria mais viver olhando para esse seu rosto patético. A única vantagem de viver sob o mesmo teto que você, era poder usufruir do seu dinheiro, que aliás era bem gasto por mim e meu queridinho aqui. - disse dando um selar de lábios em Jorge que o encarava com semblante de superioridade e soberba.
Angelo estava transtornado, não podia acreditar em tamanha traição, os dois praticamente cresceram juntos, aprenderam a lidar com essa vida dentro da máfia. Apesar de não amá-la, tirou ela de um bordel, onde seria vendida como objeto para servir de prostituta nas boates de Berlim, deu seu lar para ela, um local seguro onde não a fariam mal.
Barbara conhecia a rotina de Angelo, os cômodos da casa em que passava a maior parte do tempo, sabia de seus planos, seus passos, exatamente todas as informações pertinentes para planejar essa armadilha. Durante muito tempo foi a sombra de Angelo e agora estava diante dele, como uma víbora traidora.
Foi então que as portas do galpão foram abertas e lá entram Vitor e Gustavo, agentes da equipe de Angelo, atirando nos capangas de Jorge que estavam alocados entre os pilares do galpão. O tiroteio que antes era no exterior, passou a ser ensurdecedor dentro do galpão, com tábuas sendo destruídas, pilares perfurados, homens sangrando pelo chão de cimento queimado
Nesse meio tempo Jorge entrega a arma para Barbara que aponta para Angelo e desfere três disparos, antes de ser atingida por Vitor que descarregou um tiro certeiro em seu peito a fazendo cair no chão inconsciente.
As últimas imagens que Angelo conseguiu ver foi de seu próprio sangue que inundava o chão. Talvez merecesse esse fim, por não ouvir o conselho do pai sobre confiar em pessoas que se portavam como verdadeiros lobos em roupas de cordeiro.
Martina
A manhã no hospital estava calma até o momento, sem grandes emoções, o que era ótimo, sinal de que as pessoas estavam bem, vivendo suas vidas nessa cidade pacata.
Desde que me mudei para Berlim e iniciei meu trabalho no hospital Florine, não constitui muitos amigos. Pois amigos seria sinônimo de proximidade, perguntas sobre o passado e coisas que eu gostaria de esquecer. Então preferia estabelecer apenas uma boa relação profissional com os demais presentes no hospital, sem grandes aproximações fraternais.
O dia prosseguiu tranquilo, já estava quase no horário do meu almoço, quando ouço um burburinho vindo da recepção do hospital, me direciono ao local e vejo praticamente todos os funcionários do hospital agitados em frente a TV, assistindo ao jornal local. Pelo pouco que consegui ouvir diante da agitação, me parecia que nesta manhã houve uma intensa troca de tiros entre integrantes da máfia.
Esse era um assunto que me causava calafrios nessa cidade, a fama que as famílias da máfia tinham e a influência que exerciam sobre a população local, me fazia lembrar da criminalidade constante da minha terra natal, onde o tráfico de drogas e contrabando causava tantos conflitos quanto esse retratado na TV.
Foi então que um estrondo vindo da entrada do hospital preencheu o local, o olhar de toda equipe atordoada, vendo homens fortemente armados adentrando no hospital com homem na maca, pelo que me parecia, estar gravemente ferido.
- O QUE ESTÃO OLHANDO? SOCORRAM ELE, OU ESTARÃO TODOS MORTOS. - disse um homem alto, encapuzado, com arma em punho, apontando para qualquer um que se colocasse à frente do seu caminho.
A equipe médica logo se agitou, juntamente com os enfermeiros em plantão. Todos olharam para mim, visto que estava lotada na ala de urgência e emergência nesse bendito dia.
- Ve...ve..venham comigo, eu atenderei ele. - Disse tentando manter a calma frente a todo o meu nervosismo.
- Podem me informar a origem do ferimento? - Falei enquanto corria juntamente com aqueles homens até a sala de cirurgia.
- Atiraram nele, três balas de pistola 9mm. - respondeu um dos homens presentes no local.
Ao entrar na sala de cirurgia disse - Esperem! Não posso deixar vocês entrarem na sala de cirurgia, pode ser perigoso para ele, devido ao ferimento exposto ter contato com organismos externos e ocasionar uma infecção generalizada. Por favor, peço que aguardem aqui fora. - Nesse momento, meu coração já estava acelerado, quase saindo pela boca, a adrenalina já havia tomado conta do meu corpo.
Eles se entreolharam e o que aparentava ser o mais velho do grupo se posicionou à frente dos demais e disse:
- Ficaremos aqui de guarda, mas se algo acontecer com ele, você e todos nesse maldito hospital morrem boneca. - Disse ele perto do meu rosto.
Estava sem saída, como iria fugir dessa situação? Não só minha vida está a em risco, como a de todos do hospital. Como fui me meter nessa confusão?
Não conseguia controlar meus próprios batimentos, parecia que o coração a qualquer momento sairia pela boca. Nunca havia presenciado de perto a atuação de grupos mafiosos, só havia ouvido falar sobre as muitas história que relatavam o controle que as famílias tradicionais da Máfia alemã tinham sobre toda aquela região.
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