Talvez não quisesse saber realmente
O que está acontecendo
Talvez seja melhor que não saiba
Talvez não possa suportar sabe-lo
A queda foi uma queda
Da inocência ao conhecimento
Margaret Atwood
O conto da Aia
Minha querida Eve:
Hoje, ao regressar do mercado no carro, enquanto cantarolava em seu assento com a bolsa cheia de arroz e leite em pó, vi as montanhas de Sam Gabriel, as vi realmente pela primeira vez. Havia dirigido anteriormente por esta mesma estrada, mas desta vez foi diferente. Ali, atrás dos para-brisas, estavam os imóveis e silenciosos cumes verde azulados, vigiando a cidade, tão próximos que quase podia tocá-los. Eu me detive e a contemplei-as.
Sei que vou morrer logo. A epidemia está matando a todos que se vacinaram. Não existem aviões. Os trens não estão funcionando. Todos os acessos à cidade pela estrada foram cortados, e só nos resta esperar. Os telefones e a internet já não funcionam há muito tempo. As torneiras estão secas e as cidades, uma a uma, estão ficando sem energia elétrica. Dentro de pouco tempo o mundo sumirá nas trevas.
No entanto, neste momento estamos vivas, talvez mais vivas que nunca, Você dorme no quarto ao lado, de minha poltrona, e ouço o som de tua caixa de música, a da pequena bailarina, tocando as últimas notas.
Te amo, Te amo, Te amo.
Mamãe
UM
Quando o sol se pôs sobre o muro de quinze metros de altura que rodeava o colégio, o jardim estava infestado de alunas do segundo ano. As menores, penduradas nas janelas dos dormitórios, agitavam suas novas bandeiras americanas entre cantos e bailes. Peguei Pip pelo braço e a fiz girar quando a orquestra tocou uma música mais rápida; sua risada, breve e entrecortada, superou o som da música.
Era a noite anterior a nossa formatura e estávamos celebrando. Havíamos passado grande parte da vida dentro daqueles muros, sem haver conhecido o bosque que existia do outro lado e aquela era a maior festa nos haviam oferecido. Em frente ao lago foi instalada uma orquestra, formada por um grupo de meninas do primeiro ano que haviam se oferecido como voluntárias, e as guardas acenderam as tochas para espantar os falcões. Sobre uma mesa esperavam meus pratos favoritos: perna de cervo, javali assado, ameixas cristalizadas e fontes cheias de frutas silvestres.
A diretora Burns, uma mulher flácida, com cara de buldogue, encabeçava a mesa e animava todo mundo a comer.
-Vamos, Vamos comer! Não quero que sobre nada! Quero minhas meninas como porquinhos gordos! As carnes de seus braços balançavam enquanto mostrava a comida.
A música mudou para um ritmo mais lento , e abracei Pip para dançar uma valsa.
- Creio que és um cara estupendo\, disse\, enquanto deslizávamos até o lagos. Seus cabelos ruivos cobriam seu rosto suado.
- Sou um homem muito bonito. Eu ri e franzi a testa para parecer um homem. Era uma piada do colégio\, porque levávamos uma década sem verum homem ou a um menino\, exceto pelas fotos do rei que estavam expostas no salão principal. Pedíamos a nossas professoras que nos falassem da época anterior a epidemia\, quando os meninos e meninas iam juntos ao colégio\, mas elas se limitavam a nos dizer que o novo sistema nos protegia. O homens eram manipuladores\, perversos e perigosos. A única exceção era o rei\, somente a ele se podia obedecer e acreditar.
-Eve, já é hora – disse a professora Florence, que estava em frente ao lago trazendo uma medalha de ouro em suas mãos manchadas e envelhecidas. O uniforme que vestia, próprio das professoras (camisa vermelha e calças azuis), era demasiado largo para seu corpo pequeno – Venham meninas!
A orquestra parou de tocar, e os sons do bosque encheram o lugar. Toquei o apito de metal que trazia ao pescoço, agradecida por tê-lo para o caso de algum bicho pular o muro do lugar. Apesar os anos vividos no colégio, jamais me acostumei com o som das brigas dos cães, o Ra-ta-ta-ta! Ra-ta-ta-ta! Das metralhadoras e os horríveis uivos dos veados quando eram devorados vivos.
A diretora Burns se aproximou mancando da professora Florence e tomou a medalha que lhe era oferecida.
- Vamos começar! –gritou\, e as quarenta meninas do segundo ano formaram uma fila. Ruby\, nossa melhor amiga\, se pôs na ponta dos pés para ver melhor. – Todas trabalharam muito durante suas estadas no colégio\, no entanto\, talvez ninguém tenha se esforçado tanto como Eve – Se virou para mim enquanto falava. A pele de seu rosto\, enrugada e flácida\, pendia formando leves abas – Ela demonstrou ser uma das melhores e mais brilhantes alunas que já tivemos. Assim que\, pelo poder que concede o rei de Nova América\, te concedo a medalha de mérito.
As companheiras a aplaudiram quando a diretora depositou a fria condecoração em minhas mãos e, por faltar algo, Pip levou os dedos aos lábios e soltou um estridente assovio.
- Obrigado – disse em voz baixa\, olhando para o grande lago\, que como um fosso\, se estendia de um extremo ao outro do muro\, e meus olhos se fixaram em um enorme edifício sem janelas que ficava ao fundo. No dia seguinte\, depois de pronunciar meu discurso de despedida diante todo o colégio\, as guardas abaixariam uma ponte e as graduadas me seguiriam em fila indiana para atravessá-la. Naquela gigantesca construção aprenderíamos uma profissão. Havia dedicado muitos anos a estudar\, a aperfeiçoar o latim\, a redação e o desenho; havia passado horas ao piano\, interpretando Mozart e Beethovem\, sempre com aquele edifício presente a distância: o objetivo final.
Sofia, a primeira da classe fazia três anos, havia lido no mesmo pódio um discurso sobre nossa grande responsabilidade como futuras líderes de Nova América. Queria ser médica para evitar mais epidemias. Certa que naquele momento já estava salvando vidas na capital do rei, a Cidade de Areia. Se dizia que o monarca a havia construído em um deserto, onde antes não havia absolutamente nada. Eu morria de desejo de estar ali. Eu queria ser artista. Para pintar retratos como Frida Kahlo ou paisagens de sonhos como Magritte, ou cobrir de afrescos as grandes muralhas da cidade.
A professora Florence me pôs uma mão nas costas e me disse:
- Representa a Nova América\, Eve: inteligência\, tenacidade e beleza; Estamos muito orgulhosas de você.
A orquestra iniciou então uma canção muito alegre, e Ruby cantou sua letra em voz alta. As outras meninas riram e se puseram a dançasr, girando, girando, até enjoar.
- Vamos comer um pouco mais. – A Diretora Burns empurrou Violeta\, uma menina baixinha de olhos negros e amendoados\, até a mesa.
- O que está acontecendo? – perguntou Pip. Aproximando-se e tomando-me a medalha para vê-la melhor.
- Já conhece a diretora – respondi\, disposta a recordar-lhe que nossa professora mais velha tinha setenta e cinco anos\, e sofria de artrose e havia perdido toda sua família na epidemia\, doze anos antes. No entanto Pip negou com a cabeça.
- Não me refiro à diretora\, e sim a ela...
Ardem era a única aluna do segundo ano que não participava da festa. Estava encostada em uma parede da casa, com o braços cruzados. Continua sendo bonita, apesar de sua carranca e do pouco favorecedor suéter cinza, em que brilhava na frente o emblema da monarquia de Nova América. A maioria das alunas tinham os cabelos longos, mas ela havia sacrificado seus negros cabelos por um corte de pajem que conferia a sua pele um aspecto ainda mais claro. Seus olhos cor de avelã tinham traços dourados.
- Está tramando algo\, eu sei – disse a Pip sem afastar a vista de Arden – Está sempre tramando.
Minha amiga acariciou a medalha e sussurrou:
- A haviam visto nadando no lago...
- Nadando? Duvido. – Ninguém no colégio sabe nadar; não nos haviam ensinado.
- Em seu caso tudo é possível – Opinou Pip\, encolhendo os ombros.
As alunas do segundo, em sua maior parte, haviam entrado no colégio aos cinco anos de idade, depois da epidemia, Arden, no entanto havia chegado aos oito , e por isso sempre foi diferente. Seus pais a enviaram aqui enquanto vaziam fortuna na de Cidade de Areia, e ela sempre gostou de recordas às demais aluna que, ao contrário das demais, ela não era órfã. Quando acabasse de estudar, iria viver sem precisar se esforçar na nova casa de seus pais. Nunca teria que trabalhar.
Segundo Pip, este detalhe explicava sua conduta: como tinha pais, não lhe importava se a expulsassem; Sua rebeldia se manifestava em travessuras inofensivas: figos podres na aveia servida no almoço, um rato morto no banheiro, para completar a tarefa um pouco de pasta de dentes em cima. Mas as veze era mal, até cruel. Em uma ocasião cortou o longo e negro rabo de cavalo de Ruby para zombar da aprovação que esta tivera no exame de ―os perigos causados pelo homens e meninos‖.
Contudo, Arden estava tranquila a alguns meses. Era a última a sentar-se para comer, a primeira a levantar-se e estava sempre só. Cresciam minhas suspeitas de que reservava a pior diabrura para a graduação de amanhã.
De repente, ela se virou e foi correndo para sala de jantar. Eu a olhei com suspeita. Não me agradava que houvesse surpresas na cerimônia; já estava bastante agoniada com o meu discurso. Diziam que o próprio rei iria assista-la pela primeira vez na história do colégio. Eu sabia que era um rumor difundido pela exagerada Maxine, mas, ainda sim se tratava de um dia importante, o mais importante de nossas vidas.
-Diretora Burns, por favor, me permite ausentar-me? –pedi-. Esqueci minhas vitaminas na casa.- Busquei nos bolsos de meu uniforme, fazendo cara de frustração.
A diretora estava junto à mesa de jantar.
- Quantas vezes terei que lhe lembrar que as mantenha em sua pasta? Vá\, mas não se distraia- advertiu enquanto acariciava o osso do javali assado\, cuja cabeça estava queimada.
- Sim\, sim- afirmei tentando localizar Arden\, que já havia ultrapassado a mesa de jantar- Assim será\, senhora diretora. - Eu comecei a correr\, depois de prometer a Pip que voltaria em seguida.
Dobrei a esquina e me dirigi para a entrada principal do prédio. Nesse momento Arden se agachava junto ao edifício e se metia embaixo de um arbusto. Tirou o uniforme pela cabeça e vestiu um suéter negro; a pele, branca como leite, reluzia ao sol do entardecer.
Aproximei-me com um passo enérgico enquanto estava calçando as botas, as mesmas de couro negro que usavam as guardas.
- Não sei o que está planejando\, mas vou impedi-la – declarei\, satisfeita quando a vi erguer-se quando ouviu minha voz.
Após uma breve pausa, apertou as botas com força, como se quisesse estrangular seus tornozelos. Após um minuto de silencio disse com serenidade, sem levantar o olhar, no entanto.
- Por favor\, Eve\, volte.
Me ajoelhei junto ao edifício, levantando a saia para não suja-la;
-Sei que traz algo em suas mãos. Você foi vista no lago. - Ela movia suas com rapidez, sem desviar os olhos das botas atando os cordões com nós duplos. Havia uma mochila em uma vala, debaixo do arbusto em que meteu seu uniforme cinza. – De onde roubou este uniforme de guardiã?
Fingiu não ter me ouvido e olhou através de um buraco no mato. Segui seu olhar até os muros do terreno, que estava se abrindo lentamente. Acabava de chegar um 4x4 verde e negro do governo que transportava a comida para a cerimônia do dia seguinte;
- Isto não tem nada a ver contigo\, Eve – disse.
- De que trata então? Vai se fazer passar por guardiã?- Peguei o apito que balançava em meu pescoço. Nunca havia denunciado\, nem jamais tinha ido contar histórias para a diretora\, no entanto a cerimônia era muito importante para mim e para todos os outros – Sinto muito\, Arden\, mas não posso permitir...
Antes que o apito me chegasse aos lábios, arrancou a corrente de meu pescoço e a atirou ao solo. Com um movimento veloz, empurrou-me contra a parede do edifício. Tinha os olhos húmidos e injetados de sangue.
- Escute bem- murmurou baixinho\, pressionando o braço contra meu pescoço de tal forma que quase não me deixava respirar – Vou sair daqui dentro de um minuto. Se sabe o que lhe é conveniente\, voltará para a festa e será como se não houvesse visto nada.
A seis metros de distância, várias guardas descarregavam o veículo e transportavam caixas para o interior do colégio, enquanto outras apontavam para o bosque suas metralhadoras.
- Mas não há nenhum lugar para onde ir... Arquejei.
- Pense bem – retrucou – Acredita que vai aprender uma profissão? – Apontou para o edifício de tijolos do outro lado do lago. Apenas se vislumbrava na penumbra – Nem se que se perguntou por que a graduadas não saem nunca\, nem por não há uma porta separada para elas? Na verdade crê que vai aprender a pintar? – Dito isto\, por fim me liberou.
Esfreguei meu pescoço. Ardia-me a pele onde o elo do cordão havia se rompido;
- Mas é claro que sim – respondi – Que mais podemos fazer\, a não ser isto?
Arden fez uma careta imitando uma risada e levou a mochila ao ombro; se aproximou de mim e percebi um cheiro de carne de javali com especiarias quando respondeu:
- Noventa e oito por cento da população está morta\, Eve. Não existem pessoas. Como acredita que o mundo vai continuar? Não necessitam de artistas – sussurrou – Necessitam de crianças: as crianças mais saudáveis que consigam encontrar...ou procriar.
- Do que está falando? – Arden se levantou sem tirar a vista do veículo\, cuja a parte de traz estava sendo coberta por uma guarda com uma lona; depois se acomodou no assento do motorista.
- Por que acha que eles se preocupam tanto com nossa altura\, nosso peso\, o que comemos e bebemos? Sacudiu a terra de seu macacão negro e me olhou pela última vez. Tinha os olhos inchados e veias vermelhas se sobressaiam por baixo da fina pele branca- Eu as tenho visto\, visto as meninas que se graduaram antes de nós. E não penso em acabar na mesma cama de hospital\, dando à luz a uma criatura atrás da outra durante os próximos vinte anos de minha vida.
Retrocedi, dando um passo atrás.
– Está errada,
Mas Arden se limitou a negar com a cabeça. Logo, cobrindo os cabelos com um gorro negro, correu até o veículo. Antes de se aproximar, esperou que as guardas do portão dessem a volta.
- Uma a mais! Gritou e\, saltando sobre o para-choque traseiro\, entrou na caçamba coberto do 4x4.
A camionete arrancou, dando solavancos pela estrada de terra, e desapareceu na escuridão do bosque. O portão se fechou lentamente por traz dela. Ouvi o som do fechadura sem dar crédito ao que acabava de ver. Arden havia deixado o colégio. Havia fugido. Havia ultrapassado o muro, ia para o desconhecido, sem nada nem ninguém para protege-la.
Não acreditei no que me havia dito; não podia acreditar. Talvez regressasse pouco tempo depois no mesmo 4x4. A melhor de suas travessuras mais louca. No entanto, quando contemplei o edifício sem janelas do outro extremo do terreno, minhas mãos tremeram, e a minha boca veio um amargo vômito de frutas silvestres. Vomitei ali mesmo, sobre a terra, enquanto um pensamento me perseguia: E se Arden tivesse razão?
Depois de pentearmos os cabelos e escovarmos os dentes, lavamos o rosto e vestimos camisolas brancas que chegavam até os tornozelos, me recostei, me fingindo muito cansada. Nos dormitórios não se falava em outra coisa que não o desaparecimento de Arden. As meninas enfiavam as cabeças nos quartos para divulgar a última fofoca: havia aparecido um broche entre os arbustos, e a diretora estava interrogando uma guarda no portão. Em meio a todo aquele imbróglio, desejava uma das coisas mais difíceis de conseguir no colégio, algo tão raro que nem sequer se podia falar: queria estar só.
- Noelle acredita que Arden se escondeu nos aposentos da Doutora – comentou Ruby a Pip\, controlando as cartas que tinha em suas mãos. – Passo. – Haviam se sentado na estreita cama gêmea de Pip\, e jogavam com um baralho que haviam pego na biblioteca do colégio. As velhas cartas de ―a procura de nemo‖ estavam gastas e rasgadas\, algumas inclusive\, manchadas com suco de figos secos.
- Estou certa de quer escapar da cerimônia – acrescentou Pip\, cujo rosto sardento esta salpicado de pontinhos de pasta de dente\, o que ela denominava seu ―removedor de sardas milagroso‖. Me olhou\, esperando que especulasse sobre o paradeiro de nossa companheira ou que comentasse algo sobre os grupos de guardas que revistavam o terreno iluminando-o com lanternas. No entanto\, não disse uma palavra.
Não parava de pensar no que Arden havia me contado. Era certo que nos últimos meses a diretora Burns havia se mostrado muito preocupada com nossa dieta, insistindo que devíamos comer bem; supervisionava nossas análises de sangue e pesagens semanais e procurava que todas tomássemos nossas vitaminas. Inclusive enviou Ruby a Doutora Hertz quando teve uma regra uma semana depois das outras meninas.
Me cobri com uma manta leve até o pescoço. Desde de pequena me haviam dito que existia um plano para mim, um plano para todas nós: doze anos no colégio, e depois, a mudança de prédio e a aprendizagem de uma profissão durante quatro anos: depois iriamos para a Cidade de Areia, onde nos esperavam a vida e a liberdade, e ali trabalharíamos e viveríamos, sob o governo do rei. Sempre ouvia isto das professoras; não havia motivos para não fazê-lo. Inclusive aquela teoria de Arden me parecia absurda. Por que nos ensinavam a temer os homens se íamos ter filhos e famílias? Por que nos educavam se estávamos destinadas somente a parir? Que significava a importância que davam a nossos estudos, o ou muito que nos estimulavam para perseverássemos.
- Oi\, Eve\, Ouviu o que te disse? – Pip interrompeu meus pensamentos. Ela e Ruby estavam me olhando.
- Não...\, o que?
Ruby pegou as cartas; seu cabelo negro abundante ainda era irregular onde Arden o havia cortado.
- Queremos uma prévia de seu discurso antes de deitarmos.
Deu-me um nó na garganta ao pensar em meu discurso final: três páginas escritas a mão e dobradas na gaveta de minha mesa.
- Se espera que seja uma surpresa - respondi após alguns instantes. Havia escrito um texto sobre o poder da imaginação na construção de Nova América. Mas naquele momento pareceu-me duvidosas as palavras que havia escolhido e o futuro que havia descrito.
Ruby e Pip me observavam com firmeza , mas desviei a vista, incapaz de sustentar seus olhares. Não podia contar-lhes o que Ardem havia dito : que a liberdade da graduação não era mais eu fantasia, algo para nos manter tranquilas e contentes.
- Está bem\, seja como quiser – Pip apagou a vela de sua mesa. Pisquei para adaptar os olhos para a escuridão\, e pouco a pouco distingui seu rosto redondo sob os raios de luar que se filtravam pela janela - Mas somos tuas melhores amigas.
Após alguns minutos se ouviram os tênues roncos de Ruby; sempre primeira a dormir. Pip olhava para teto com as mãos sobre o peito.
- Mal posso esperar para me formar – sussurrou – Vamos aprender coisas\, coisas de verdade. E dentro de alguns anos sairemos para o mundo\, iremos para a nova cidade que está longe dos bosques. Será incrível\, Eve. Seremos como ...como pessoas de verdade. – Se voltou para mim\, e esperei que a tênue luz não lhe permitisse ver as lágrimas que enchiam meus olhos.
Me perguntei que vida teríamos eu e Pip. Ela queria ser arquiteta, como Frank Lloyd Wright, e construir casas novas que não se deteriorassem, ainda que ninguém cuidasse delas, casas com refúgios cheios de comida enlatada, onde não se poderia introduzir o menor vírus mortal. Eu lhe dizia que , quando terminássemos nossas carreiras, viveríamos juntas na Cidade de Areia; teríamos um quarto com camas enormes e janelas de onde veríamos os confins da Cidade, onde viviam os homens, muito distante de nós, aprenderíamos a esquiar nas encostas íngremes cobertas de neve, que nos havia falado a professora Etta, e poríamos em prática nossa boa educação nos restaurantes com imaculadas toalhas de mesa e talheres de prata; neles, escolheríamos a comida no menu e pediríamos para que preparassem a carne como mais no agradasse.
- Eu sei. - Me veio um nó na garganta -. Será genial.
Sequei meus olhos disfarçadamente, agradecendo que a respiração de Pip por fim se acalmasse. Mas me assaltou a culpa e o medo, cada vez maior, de que o dia seguinte talvez não estivesse pronunciando um ingênuo e genial discurso, sim conduzindo-as ao aniquilação.
Para mais, baixe o APP de MangaToon!