Há quatro coisas no mundo
Que alegra um cabra-macho:
Dinheiro e moça bonita,
Cavalo estradeiro-baixo,
Clavinote e cartucheira
Pra quem anda no cangaço.
José Rodrigues de Carvalho,
Cancioneiro do Norte, Fortaleza, 1903.
São cabras do couro duro,
Onde bala bate e amassa,
Punhal enverga e não rompe,
Chuço quebra e não traspassa:
Com indivíduos assim,
Nem o diabo quer graça...
Leandro Gomes de Barros,
Canção de Santa Cruz, 1912.
Desde o princípio do mundo
Que há homem valentão,
Um Golias, um Davi,
Carlos Magno, um Roldão,
Um Oliveiro, um Joab,
Um Josué, um Sansão.
Que Maceió possuía à época e ainda possui, dava notícia de cantoria de
viola ocorrida em casa de Theo Brandão, liderança intelectual de cidade que
se destacava nesse plano, entre as capitais brasileiras, havia muitas décadas.
Residiam ou tinham residido ali, por motivos diversos, ninguém menos que
José Lins do Rego e Rachel de Queiroz, a animar tertúlias com a
inteligência da terra, que não ficava a dever aos adventícios, por nomes do
porte de um Graciliano Ramos, um Jorge de Lima, um Valdemar
Cavalcanti, um Pontes de Miranda, uma Nise da Silveira e dos que veremos
logo adiante, presentes à cantoria.
No centro da festa regional, o poeta e repentista Manoel Neném, nome
artístico de Manoel Floriano Ferreira – melhor dizer Fuloriano, atendendo à
prosódia regional – nascido em Bom Conselho de Papacaça, Pernambuco,
mas radicado desde novo em Viçosa, Alagoas, onde vem a despertar para as
belezas de sua arte. Talvez por isso, sempre se declarou viçosense.
A frequência à casa de Brandão depõe em favor da qualidade de quem
era considerado “o melhor cantador do sertão alagoano”, como o apresenta
a folha. Que diz ter o poeta “versejado por três horas, fazendo louvores aos
presentes, cantando a vida de Lampião, improvisando uma interessante
história do mundo, compondo ‘martelos’ sobre os cavalheiros e senhoras
que o ouviam, oferecendo, assim, oportunidade a todos de conhecerem a
poesia sertaneja em sua rusticidade e beleza”. Entusiasmado, o jornalista
arremata o registro com palavras de José Maria de Mello, para quem o
menestrel não era menos que um “documento vivo do nosso folclore,
verdadeiro patrimônio poético de nossas fontes populares”.
Até a meia-noite, ouviram-se os aplausos de José Aloísio Brandão
Villela, que tomara a iniciativa de trazer o poeta de Viçosa, de Eloy e de
Manoel Brandão, do padre Diégues Neto, de Jacques Azevedo, de
Nominando Maia Gomes, de Freitas Cavalcanti, de Humberto Bastos, de
Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, de Olympio de Almeida, de Joaquim
e de Manuel Diégues Júnior. Uma academia de letras ocupavacasa de Brandão.
O curioso desse registro é a legenda de Lampião ter-se feito presente à
sala de visitas de tantos intelectuais de prestígio, sublimada em tema de
cantoria, quando o próprio cangaceiro ainda campeava livre de canga e
corda pelo sertão, zombando da lei como de costume, e quando nem bem
tinham-se passado dois meses de uma de suas mais impiedosas incursões de
rapina pelo estado de Alagoas, o bando tendo vasculhado as algibeiras
magras e gordas das populações de parte da mata, do agreste e de alguns
municípios sertanejos do estado, varando o território, de sul a norte, até
entrar em Pernambuco, olhos de cobiça sobre o apurado da cana-de-açúcar,
do fumo e da pata do boi. Ao que a imprensa regional abrira manchete em
uníssono, como se combinada entre chefes de redação: “Reaparece o Terror
dos Sertões do Nordeste”. Nada menos. Assunto favorito das páginas
policiais.
A conclusão se impõe: passados mais de vinte anos de vida no cangaço,
depois de dominar pelo terror porções relevantes de sete estados da
Federação, Lampião estava mais para mito do que para personagem de
crônica policial naquele 27 de junho de 1938, data em que se verificou a
cantoria de Manoel Neném. Relutava em se prender às páginas de crime dos
jornais. Morreria no final do mês seguinte e sua morte encarnaria alguma
coisa muito maior do que a destruição de um bandido famoso.
Do modo como a Guerra de Canudos, de 1897, significou para o
Nordeste rural muito mais do que o 1889, de Deodoro da Fonseca, como
porta de entrada na modernidade republicana – por boa ou má que tenha
sido esta – a morte de Lampião, de sua mulher e de nove de seus auxiliares
na Grota do Angico, a 28 de julho de 1938, com a decretação do final do
cangaço nos dois anos que se seguiriam, veio a cristalizar-se em marco da
extinção tardia da República Velha em nossos sertões. Porção de Brasil
onde o movimento revolucionário de 1930 não representou muito aos olhos
do residente da caatinga.O desmoronamento do bando de Lampião, aliado ao extermínio,
também à bala, do foco de religiosidade popular de Pau de Colher, em
Riacho da Casa Nova, Bahia, em dias de janeiro do mesmo ano de 1938,
ergue-se como virada de página autêntica na existência do homem do
campo de nossa região. Mudanças perceptíveis para além do círculo da
elite. Condicionantes de futuros a se abrirem à frente, doravante. Diante
destas, a retórica de cartão-postal do Estado Novo, de Getúlio Vargas,
levantaria brindes à superação final dos “estadualismos anacrônicos
porventura ainda vicejantes nas periferias do Brasil”. Pois que se
eliminavam, passados apenas sete meses do Golpe de Estado de 10 de
novembro de 1937, os dois cânceres que corroíam o Nordeste profundo, na
visão do regime novo em folha: o “fanatismo religioso” e o “banditismo
rural”, para não fugir aos conceitos então em voga no papelório oficial,
tendenciosos a mais não poder. Eis a modernidade do Estado Novo,
brandida a dente de cachorro pelo positivismo castilhista de Vargas.
A morte de Lampião, estrondando mundo afora pela imprensa do Rio de
Janeiro, de São Paulo, de Buenos Aires, de Nova York e até mesmo de
Paris, para não falar das ondas curtas da Rádio Nacional, do Rio de Janeiro,
jogando para toda a América do Sul os comentários vivos sobre o
acontecimento, responderá por nova cantoria. Mais uma. Pela segunda vez,
Manoel Neném é retirado de Viçosa e trazido para a capital por seu protetor,
José Aloísio Villela, para espetáculo ainda maior, presentes os mesmos fãs
maceioenses da festa anterior, cada qual trazendo agora pelo braço um
curioso a mais, a se mesclarem, os da terra, com os repórteres de jornais do
Sudeste que tinham tomado a cidade de assalto em busca de notícias para
suas reportagens especiais sobre o acontecimento do Angico.
A novidade ficava por conta do imperativo de fazer justiça à façanha
gigantesca da polícia de Alagoas, que levara as corporações congêneres de
todos os demais estados do Nordeste a mergulhar em frustração mal
disfarçada, à frente Pernambuco, Paraíba e Bahia, os mais atingidos pelas
Tropelias de um Rei do Cangaço agora sem coroa, sem bando e sem cabeça.
O caso de Pernambuco chegava a ser doloroso, diante de um passivo de
duas décadas de luta, ao preço de dezenas de vidas sacrificadas e de
milhares de contos de réis despendidos na campanha.
Cantoria iniciada, impõe-se enaltecer o valor guerreiro da vítima e
aquilatar esse mérito indiscutível quando posto em cotejo com a orientação
moral dada pelo cangaceiro à sua existência, tudo confluindo para o
propósito que se apossava de todos: o de consagrar as armas alagoanas com
maior propriedade. Vem o mote, apregoado por Villela para toda a sala:
“Apagaram o Lampião”. O bardo de Viçosa não decepciona. Os repentes
vão saindo com a espontaneidade que lhe era própria, o copista pelejando
para prender tudo no papel:
De muitos anos atrás
Que o nosso sertão sofria
De uma fera bravia
Com os seus leões: voraz!
Tirou do sertão a paz,
Plantou a conflagração,
Estragou todo o sertão
Essa fera horrenda e bruta,
Com vinte anos de luta,
Apagaram o Lampião...
O Lampião se acendeu,
Todo o sertão pegou fogo,
Outro mais terrível jogo
Nunca houve igual ao seu.
Dizem que agora morreu
Pro bem da população,
Findou-se aquele dragão,
Pela força alagoana,
Graças à mão soberana,
Apagaram o Lampião.
Chegou muito telegrama,Contando esse ocorrido,
Que Lampião, com os bandidos,
Perderam a vida e a fama.
Acabou-se a cruel chama,
Findou-se a conspiração,
Haja festa no sertão,
Dê vivas toda pessoa,
Que a polícia de Alagoas
Apagou o Lampião.
Lá no estado de Sergipe,
Ele sempre se escondia,
Mas, quando Deus quer, um dia,
Não há mal que não dissipe.
Quem souber, me participe
Como apagaram o vulcão,
Se foi Deus, com sua mão,
Que mandou a trovoada,
Com uma chuva de rajada,
Apagar o Lampião.
Eu agora estou ciente
Que isso por Deus foi mandado:
Anjos, em vez de soldados,
Um santo, em vez de um tenente,
Agarraram ele de frente
Sem ter dele compaixão,
Com raio, corisco e trovão,
Fuzilaria e rajada,
Nessa horrenda trovoada,
Apagaram o Lampião.
Nunca mais há de acender
O tal Lampião falado,
Na capital do estado,
Sua cabeça se vê,
Pro Governo conhecer,
Sua terrível feiçãoE dizer: este é o dragão,
Forte, cruel e valente,
Porém, mandei minha gente
E apagaram o Lampião!
O mote desdobrava título de artigo de Bastos Tigre, nome de guerra de
Manoel Bastos Tigre, publicitário premiado, satírico incorrigível, poeta,
compositor, humorista e filósofo do cotidiano, reproduzido na imprensa de
todo o país, na virada de julho para agosto de 1938 – nossa fonte sendo o
diário O Imparcial, de Salvador, Bahia, edição de 2 de agosto, para quem
desejar ler o escrito por inteiro – em que o precursor de Millôr Fernandes
alertava os nordestinos para os malefícios que estariam por se abater sobre a
região, em decorrência de estar chovendo na caatinga e de Lampião ter sido
morto. Bem ao seu estilo, fechava o artigo “Apagou-se Lampião” com
palavras de denúncia sobre duas reivindicações que vinham expondo
cronicamente o Nordeste à censura da opinião pública nacional, em vista da
recorrência com que eram brandidas sobre o país, apontadas pelo articulista
como pés de cabra para arrancar verbas públicas: a “indústria da seca” e a
“indústria do cangaço”.
“Para o Brasil, o banditismo e a seca são males necessários”, abria
Tigre, sem esconder a que vinha. “Ai do sertão se os dois fenômenos
desaparecessem totalmente!”, aumentava o mistério, esclarecendo com uma
pergunta: “Sem seca para combater e sem bandidos a perseguir, quem se
lembraria nas capitais de que o sertão existe?”. Vinha a ilustração: “Como
esses mendigos de porta de igreja, que ‘cultivam’ a chaga da perna para que
não feche, assim deve o sertão cultivar a seca e alimentar discretamente o
cangaço, porque eles é que lembrarão às gentes do litoral a necessidade de
tocar para o oeste a locomotiva civilizadora”. A carga maior de ironia
ficava reservada para o fecho do artigo, à guisa de advertência: “Chove no
Nordeste e foi morto Lampião, vocês, sertanejos, precisam tomar as
providências: as coisas não vão indo bem...”.
O livro que se vai ler é estudo que nos tomou muitos anos sobre a mortede Lampião, porventura o assunto mais controvertido da história do
cangaço, com uma dezena de publicações a respeito. Escritos valiosos, na
maioria, mas que deixam em aberto boa parte do complexo de causas
sociais, econômicas, políticas e até tecnológicas que confluíram para o
desfecho de 1938. A deficiência provindo, em dose maior, da ideia
entranhada na região de que todos os acontecimentos do cangaço possam
encontrar explicação bastante no próprio universo sertanejo. Suficientismo
de vistas baixas que nos remete para o caso do historiador que malha em
ferro frio sobre a história do Brasil por não conhecer a de Portugal.
Cada tópico do episódio que ecoou mundo afora se abre em armadilha
para o pesquisador, a ponto de nos trazer à mente verso com que outro
repentista extraordinário, Pinto do Monteiro, converteu a si mesmo na
imagem do perigo, fazendo uso de cores bem sertanejas:
Eu sou um pé de cardeiro
Na beirada do riacho,
Com um arapuá por cima
E um rolo de cobra embaixo,
Um mangangá se arranchando:
Só vem a mim quem for macho!
O quadro é preciso nas tintas. Reproduzi-lo aqui vale por homenagem
deliberada do autor deste livro àqueles que se debruçaram sobre o tema com
a coragem de enfrentar-lhe a complexidade, arrostando paixões que se
inflamam a cada ano decorrido do acontecimento. Paixões que, longe de
arrefecer, parecem cristalizar-se em desafio permanente, convertendo o
tema em campo minado. A despeito do comentário, tivemos o cuidado de
não fazer tábua rasa de nenhuma dessas fontes escritas, do que dá prova a
bibliografia ao final. A todas analisamos demoradamente. Demora de anos.
As obras que chegaram ao “cardeiro” e as que deste sequer se aproximaram.
Não nos surpreendem as dificuldades enfrentadas por seus autores.
Afinal, debruçaram-se sobre um mito em vida, que a morte não fez senão
Ampliar. Dos mais completos exemplos do processo psicológico de
sublimação de perfil humano que o Brasil pôde ver em sua história, esse de
Lampião.
Nos anos 1930 – para sair do abstrato – pulularam “lampiões” por todo
o Brasil e até mesmo no estrangeiro. O cognome arrebentando o substantivo
próprio, dilatando-o em comum e o convertendo em sinônimo perfeito de
salteador rural. Sob a manchete “O Lampião de São Paulo”, o Diário de
Pernambuco de 24 de agosto de 1935 ocupava-se de certo Aníbal Vieira,
“que acaba de escapar de cerco na fazenda Nova Granada”, esclarecendo
que o bandoleiro assim conhecido “costuma atuar no município de Olímpia,
à frente de um grupo de cangaceiros”.
O mesmo jornal, a 30 de março de 1937, abre a manchete “Morto o
Lampião capixaba”, dando conta de ter sido eliminado em Colatina, por
força volante comandada pelo tenente Maia, o “conhecido chefe de
facínoras Levindo Neto”, tombando a uma “rajada de metralhadora”.
No mês seguinte, a 13, a revista nacional A Noite Ilustrada, do Rio de
Janeiro, registrava a morte em combate de José Queiroz de Quadros, ou
José da Cunha, ou José Polaio, que se intitulava o “Lampião do Paraná,
mais feroz e mais temido de que o Capitão Virgulino, o autêntico Lampião”.
E não se tratava de aparição recente. “Há muito tempo, várias cidades do
estado do Paraná viviam alarmadas com as tropelias de quem, em suas
andanças, zombava da polícia que, por mais esforços que envidasse, não
conseguia prendê-lo”.
Em maio de 1939, a 19 do mês, tombava em combate o “Lampião do
Mato Grosso”, Silvino Jacques, famigerado pelos saques e crimes de
sangue com que mantinha em polvorosa os municípios derredor de Bela
Vista, na fronteira com o Paraguai, havia dez anos. O jornal A Tarde, de
Salvador, resenhava o episódio final na edição de 29.
Por fim, o caso trazido pelo jornal Correio de Aracaju, de 11 de julho
desse mesmo 1939, sob a manchete “O fascínio da antonomásia deLampião”, em que se relatam os passos mais recentes do “Lampião de
Portugal”, que agia no município de Faro, “trazendo em polvorosa as
freguesias montanhosas de Alvim, Adruelas e Salgueiros”. Mencionando os
estados do Rio Grande do Sul, de São Paulo e do Mato Grosso, a folha
fechava a matéria sustentando que “apareceram outros bandidos que, com
grande orgulho e garbo, se deram também a antonomásia de Lampião”,
restando claro que o célebre cangaceiro “criou discípulos e êmulos até no
estrangeiro”.
Como nos pareceu adequado, o ponto de partida do trabalho atual foi a
biografia compacta Quem foi Lampião, que publicamos em Zurique, Suíça,
em 1993, e que chegou a uma terceira edição, esgotada há alguns anos. Eis
aí um dos motivos do aproveitamento. No plano do testemunho de época,
trazendo novidades ao que agora vêm a ser os quatro capítulos iniciais do
livro atual, agigantam-se três contribuições de primeiríssima ordem: 1) a de
José Alves de Barros, o Zé Saturnino, ou Saturnino da Pedreira, apontado
invariavelmente por Lampião como seu “inimigo número um”, que nos
confiou, em entrevista gravada na sua fazenda Maniçoba, à sombra da Serra
Vermelha, em Serra Talhada, no ano de 1970, revelações corajosas, por
vezes contra si, somente agora trazidas à luz, sobre o nascedouro das
questões que envolveram seu maior desafeto, no município de origem de
ambos; 2) o esclarecimento que nos deu, nesse mesmo ano de 1970, o
coronel Audálio Tenório de Albuquerque, chefe político de Águas Belas,
agreste meridional de Pernambuco, amigo muito próximo de Lampião,
sobre o arranjo secreto que livrou o governador Estácio de Albuquerque
Coimbra da presença do já então Rei do Cangaço em seu estado de
Pernambuco, empurrando-o para longa sobrevida na Bahia do colega e
amigo Francisco Marques de Góes Calmon, no meado de 1928, “presente
de grego” compreensivelmente mantido à sombra até agora por solicitação
da fonte; 3) os detalhes do dia a dia do cangaço ao tempo de Lampião, que
nos trouxe o ex-cangaceiro Miguel Feitosa Lima, amigo de mocidade do
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