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RECOMEÇAR

I

— Pronto, está feliz agora? - pergunta aquele homem lindo do meu lado, mas sei que sua beleza é apenas no exterior – Não é porque agora é livre que esquecerá que deve dar exemplo a nossa filha.

— Minha mãe é o melhor dos exemplos que tenho papai, ao contrário de você – diz minha princesa

Ele levanta a mão para bater nela, afinal é assim que ele é, contrarie-o e sinta o peso de sua mão.

— Não nos machucou o suficiente Ralfh? Vai fazer isso com plateia agora? – falo enquanto fico entre os dois

— Não me provoque mulher, sabe que se um dia sentiram o peso da minha mão foi porque mereceram.

Apenas lhe dou um leve sorriso de desprezo porque agora acabou não tenho mais nada me prendendo a ele, foram 18 anos de dor e humilhação.

18 anos atrás

Era o último dia do ano letivo e a noite seria a minha formatura do Ensino Fundamental, tinha passado dias me preparando para esse momento, por dois anos economizei cada centavo que mamãe me deu para comprar lanche apenas para comprar o vestido, o sapato e as bijus que queria para essa noite, afinal sou bolsista de um dos melhores colégios particulares do Rio de Janeiro, Colégio João Paulo I, e também quero estar bem-vestida.

Nasci e cresci em uma família pobre, nunca passei fome, mas para comprar um lanche ou uma roupa nova era bem sofrido, mamãe sempre foi diarista e papai pedreiro tenho o maior orgulho deles porque nunca deixaram nada me faltar.

Minha melhor amiga Dana fez minha maquiagem e me contou que os formandos do Ensino Médio foram convidados para o baile de formatura e que Ralfh, meu amor platônico, estaria também. Ralfh tem 20 anos é lindo, alto, joga basquete e toda vez que tinha período vago ficava admirando ele jogar, ele culpa as constantes mudanças de lugares o fato de ainda não ter concluído o Ensino Médio.

Ralfh veio para nossa escola há três anos, ele nunca fez nada de mais para eu me apaixonar por ele, mas sempre foi muito gentil comigo, me cumprimentava toda vez que me via com um sorriso gigante que mostrava aquela fileira de lindos e retos dentes, as vezes até me ofertava água da própria garrafa. E o que era apenas admiração por um belo rapaz se tornou paixão culminando em amor.

Para mim a cerimônia de formatura foi muito demorada, porque eu estava mesmo ansiosa pelo baile, talvez essa seja a última vez que vejo Ralfh, porque, segundo as fontes fidedignas de Dana, ele voltará para os Estados Unidos com seus pais.

Ralfh é de família rica, na verdade riquíssima, e seus pais vieram para o Brasil a trabalho, são Consultores Financeiros, e o contrato que tinham com a empresa do Brasil já encerrou.

No baile tento não demonstrar mas fico procurando por ele, mas não o encontro, então tento me distrair com meus amigos, alguns deles trocarão de escola então decido aproveitar o máximo de tempo que tenho com eles.

A banda começa a tocar as músicas românticas e ouço sua voz, não acreditar que ele me convidou para dançar, ele me desliza para a pista, nesta hora agradeço as aulas de dança que Dana me deu e as vezes que treinei com a vassoura imaginando como seria esse momento e está sendo surreal.

Depois da dança ele me convida para sair dali, vamos para o estacionamento, entramos no carro dos pais dele, um Ford Fusion, depois dele jurar que eu era a única e que me amava eu me entrego a ele, mas, na verdade, ele transou comigo apenas porque fez uma aposta com seus amigos, tinham apostado quem conseguiria tirar minha virgindade.

Um mês depois descubro que engravidei e quando conto ele ri de mim dizendo que era impossível ter engravidado na primeira transa, que, com certeza, não era dele, seus pais ouvem nossa discussão e decidem que faremos um

teste de DNA com o bebê ainda no útero, nem sabia que isso podia.

Só posso fazer o teste a partir de 12 semanas, então eles terão que ficar um mês a mais no Brasil o que estava fora dos planos deles, caso o teste dê positivo eles me levarão para os Estados Unidos alegando que Ralfh não pode ficar no Brasil e nem longe do filho, se der negativo teremos que arcar com todas as despesas extras que eles tiveram e ainda irão nos processar por inúmeros motivos que nem lembro de tantos que falaram.

Quando o resultado sai e dá positivo não tenho outra opção tenho que ir com eles, eles são muito ardilosos e conseguem deixar meus pais sem saída além de concordar com minha ida para o Estado Unidos morar com eles em Orlando/Flórida.

Os restantes seis meses se arrastam a passar e os únicos momentos que não me sinto uma intrusa é quando estou com a Sra. Gertrude, a avó de Ralfh, uma senhora muito simpática e amorosa totalmente diferente do seu filho, um homem bruto e arrogante e Ralfh é exatamente igual ao pai.

Mal vejo Ralfh pois chegamos aos Estados Unidos e em poucos dias ele foi para a faculdade e fica nos alojamentos dela vindo para casa somente em dias festivos, e quando vem não fala comigo e nem pergunta como estamos. As consultas ao obstetra é sempre a governanta que me acompanha, meu quarto foi decorado pela Sra. Gertrude para a chegada de Aurora, escolhi esse nome porque significa “o romper de um novo dia” e tinha certeza que quando ela nascesse seria um novo ciclo para mim.

E quando Aurora nasceu realmente tudo mudou, um novo ciclo se iniciou, mas apenas para mim, Ralfh apenas apareceu 20 dias depois que ela havia nascido quando a registrou voltando para sua vida de solteiro na faculdade.  Durante os sete anos que ele esteve na faculdade eu fui mãe e pai de Aurora, seus avós apenas eram avós de fotos, quando tínhamos que mostrar a família perfeita lá estávamos todos juntos reunidos e alegres.

Quem vê as fotos de meu casamento imagina que somos a família mais linda e amorosa, mal sabem eles que tudo foi montado para que a sociedade achassem que a família de comercial de margarina existe. Depois que se formou Ralfh passou a trabalhar com os pais e “as viagens a trabalho” eram rotina em nosso casamento, eu sabia que em cada uma delas havia uma acompanhante diferente intitulada secretária pessoal.

Quando eu ousava pedir um pouco de atenção ou carinho ele sempre foi bruto e muitas vezes recebi tapa no rosto por ele achar que eu estava passando dos limites de esposas nos meus questionamentos.

A partir dos 4 anos de Aurora minha sogra fez questão de cuidar da agenda de rotina dela, para mim era desumano, ela acordava as 7h e deveria dormir às 21h, nas 14h acordada tinha atividades: etiqueta social, dança, golfe, além de todas as disciplinas de aula que parecia que ela era uma universitária de tantas que tinham. Várias vezes falei que ela era uma criança que precisava descansar, brincar, se divertir e a resposta sempre foi a mesma “ela é uma Atkinson precisa saber se portar e agir como tal”.

Tive minha filha aos 15 anos e aos 20 ainda era ignorante em muitas coisas, devido a rotina extenuante de Aurora eu ficava a maior parte do tempo sozinha, então pedi, sim eu tinha que pedir permissão para tudo, pedi permissão a minha sogra para voltar a estudar e ela autorizou desde que fosse aulas EAD, afinal ela não podia deixar a sociedade saber que a nora “maravilhosa e orfã”, como ela me descrevia para os outros, tinha apenas concluído o fundamental.

Foi assim que enquanto minha filha perdia sua infância em volta a tantos ensinamentos eu conquistei meu tão sonhado diploma de ensino médio e de enfermagem, sendo que apenas os estágios obrigatórios eu fiz presencial e claro sem mencionar que era nora dos poderosos Atkinson, quando alguém desconfiava eu dava um jeito de desconversar rapidinho.

Hoje sou realmente orfã, mamãe teve um AVC e morreu três anos depois que vim para Orlando e papai, depois que mamãe morreu, se sentiu tão só que se entregou as bebidas e morreu atropelado enquanto atravessava uma via muito movimentada do Rio de Janeiro, sete anos depois que mamãe faleceu.

II

Aos treze anos Aurora passou a deixar bem claro suas vontades e desejos, continuava sendo uma pessoa amável com todos mas impondo o que queria foi onde os atritos entre ela, o pai e os avós iniciaram, eles não aceitavam que suas determinações fossem questionadas mas Aurora não baixou a guarda e isso lhe rendeu alguns tapas no rosto e a mim também por defendê-la, a impressão que dava era que Ralfh e seus pais tinham o prazer de ver nossos rostos marcados por eles.

Toda vez que isso acontecia mais certeza eu tinha que quando Aurora fizesse 18 anos me divorciaria de Ralfh e sairia desse inferno, antes eu não poderia me separar porque havia uma cláusula no contrato de casamento que dizia que se nos divorciássemos antes dos 18 anos de Aurora a guarda ficaria com eles e eu não posso deixar minha filha sozinha nesse inferno.

Para poder exercer minha profissão tive que aceitar ser enfermeira em uma clínica estética onde minha sogra frequentava e, para as madames, o auge da profissão era poder trabalhar em uma clínica tão renomada.

Meu sonho é trabalhar em hospital cuidar de pessoas que realmente precisam e não dessas dondocas, mas preciso de experiência e também tenho mais chance de conseguir um emprego se tiver ativa, no tempo vago  aproveito e faço vários cursos online que encontro na área hospitalar.

Os seis anos que trabalhei na clínica de estética até que me rendeu algumas amizades verdadeiras, para ser honesta fiz duas amigas, nos vemos uma vez no ano mas sinto como se fossemos irmãs.

Ully e Celina são casadas há três anos, moram em Los Angeles e nos procuraram no primeiro ano de casadas na clínica porque Celina queria colocar silicone e depois acabaram voltando a cada ano para algum tipo de  procedimento e acabou nascendo essa linda amizade.

Ambas trabalham no Martin Luther King Jr Community Hospital em Los Angeles, Celina é diretora do departamento de transplante e Ully é cirurgiã pediátrica, o irmão de Ully também trabalha no hospital, ele é cirurgião plástico, elas já me disseram o nome dele mas não lembro.

Depois que comecei a trabalhar me tornei um pouco mais independente e de vez em quando saio e vou em algum bar ou restaurante com alguma conhecida, mas quando Ully e Celina estão por aqui passeamos bastante e numa dessas saídas acabei contando a elas sobre minha vida e casamento, achei que iriam fazer como qualquer outra pessoa que convive comigo, enaltecer meus sogros e dizer que devo minha vida a eles, mas ao contrário elas me apoiaram muito e me deram força para continuar com o divórcio.

Aurora irá cursar engenharia civil na Universidade Oxford, onde passou em primeiro lugar no vestibular, minha filha é meu orgulho mas sentirei muita falta dela, então eu irei para Los Angeles pois Celina me disse que depois de divorciada devo me mudar para lá pois tem muitos contatos e conseguirá me indicar para um hospital ou clínica.

Me despeço de Aurora no aeroporto, e sigo para Los Angeles, lá Ully e Celina me esperam para me dar boas-vindas a minha nova vida, até cartaz e flores recebo delas.

— Obrigada meninas, vocês são uma benção em minha vida.

— Agora somos sua família e família é assim – diz Celina me dando um forte abraço.

— Abraço coletivo, amooooo – fala Ully se juntando a nós.

— Bom programamos um dia um pouco agitado mas acho que você precisa descansar um bocadinho, vendo sua carinha de cansada.

— Nada disso Celina quero fazer tudo o que programaram para hoje, porque depois pretendo trabalhar muito e aproveitar pouco.

— E sobre isso tenho uma surpresa, mas isso falamos mais tarde – diz Celina fazendo suspense.

Direto do aeroporto vamos a um restaurante onde jantamos, depois para um barzinho pequeno porém extremamente aconchegante, após alguns drinks vamos para a casa delas.

— Vamos arrumar uma cama na sala para você, infelizmente esse apê só tem um quarto, mas você poderá ficar conosco o tempo que quiser não precisa sair desesperada por um apê, viu? - diz Ully com Celina concordando com um balançar de cabeça e um lindo sorriso no rosto.

Me sinto mega acolhida mas quero encontrada logo um cantinho para mim, preciso me sentir totalmente dona da minha vida e ter o meu lugar é um dos meus objetivos.

— Ah dona moça agora vem a surpresa, amanhã às 9h você terá uma entrevista de emprego – me diz Celina — Onde mesmo é o lugar amor? - pergunta ela a Ully com um olhar de cumplicidade.

— Ai você me falou mas eu esqueci, espera aí eu acho que é o…. ah não, não é esse, é no…

— Martin Luther King Jr Community Hospital!!!!! - falam ou melhor gritam em uníssono.

— Mas esse é o hospital…

— Sim, o hospital onde trabalhamos e é lá que você irá trabalhar, a entrevista é uma mera formalidade, porque no final sou eu quem aprova ou não os candidatos.

— Mas Celina eu não estou tirando a vaga de ninguém, não é?

— Não meu amor, a enfermeira chefe da emergência está grávida e é uma gravidez de risco então ela vai se afastar e você assumirá o lugar dela, mas o problema é que não tenho vaga de dia somente a noite.

— Isso não é o problema e eu amo a emergência, nossa eu estou muito feliz – digo abraçando Celina.

É maravilhoso saber que amanhã já serei uma pessoa empregada e farei o meu melhor para não decepcionar minhas amigas, vou trabalhar duro por mim e pela minha filha, quero ter o nosso cantinho porque quando ela terminar a faculdade ela terá para onde ir, preciso garantir que ela tenha a segurança que sempre terá um porto seguro para onde voltar.

III

Meu dia começa cedo, mal consegui dormir quando as meninas acordaram eu já estava em pé e já tinha passado café para elas que se arrumam, comem e saem para o trabalho. Organizo a casa, tomo meu banho, me arrumo e vou para o hospital.

Chego com 15 minutos de antecedência, sou direcionada a uma sala para aguardar minha entrevista, nela tinha mais algumas mulheres, umas me cumprimentam, outras nem me olham e uma me olha e me analisa como se eu fosse um objeto na vitrine e eu a ignoro.

No horário Celina me chama e em vez de uma entrevista para emprego ela já me informa o horário de trabalho, me fala sobre o exame admissional, em qual banco abrirei minha conta salário. Saio do escritório já com todos os documentos necessários para organizar minha vida profissional.

O dia passa rápido, passo pela psicóloga e o médico de trabalho, faço coleta de sangue e raio-x, tudo no hospital mesmo, depois vou ao banco e abro minha conta, no retorno do banco passo em uma loja especializada em  uniformes hospitalares que confecciona os uniformes do hospital para escolher os meus, assim se precisar de ajustes as costureiras da loja já realizam o conserto.

Antes de ir para casa passo no mercado, compro ingredientes para fazer um macarrão a carbonara e me dou ao luxo de comprar um Chardonnay Bouchard Macon Villages Branc, em casa preparo o jantar e arrumo uma mesa linda, quero agradecer minhas amigas, elas são meu porto seguro aqui em Los Angeles e quero demonstrar toda a minha gratidão.

— Hum que cheiro delicioso e que mesa mais linda!!!! - diz Ully assim que entra em casa.

Ully é uma médica muito charmosa, ama crianças e um botox, é uma verdadeira patricinha, mas apenas na aparência, porque conforme a conhece vê o quanto ela é dedicada a profissão e as suas obras sociais e que ama muito Celina.

Celina é uma mulher forte, também é muito linda e muito feminina mas nada patricinha, ela é extremamente verdadeira e firme, principalmente no trabalho, mas é um doce com Ully e uma irmã para mim, sempre preocupada comigo.

— Fiz o jantar como forma de agradecimento por todo o carinho, depois de hoje não sei quando conseguiremos jantar juntas novamente, então fiz o prato preferido de vocês e vinho.

— A não, acho que trocarei teu horário, quero mais momentos assim – fala Celina já provando o vinho.

A janta foi regada pelo macarrão, vinho e muitas risadas, minhas bochechas ficaram doloridas de tanto rir das façanhas das duas, elas são muito desastradas então tem muitas histórias para compartilhar.

O vinho me ajudou a relaxar e dormi bem a noite, nem acordei quando elas saíram para o trabalho, me acordo por volta das 10h, hoje é dia da faxineira vir a tarde então organizo a nossa baguncinha da noite anterior, lavo algumas roupas e quando a faxineira chega vou para o shopping e olho as vitrines, nunca fui de comprar mas adoro ver vitrines, depois de algumas horas sinto fome e vou a uma cafeteria na praça de alimentação.

Faço meu pedido e como o ambiente está um pouco barulhento coloco meu fone com minha música preferida e foco na leitura do livro que comprei em uma banca no shopping. Vejo uma agitação e antes que eu possa ter qualquer reação, um homem grande me joga no chão e me protege com seu corpo.

— Poxa mulher você não ouvi? Eu disse pra ficar abaixada – ouço quando o fone cai do meu ouvido.

Queria retrucar mas minha cabeça dói da batida no chão e meu corpo está esmagada pela parede de músculos em cima de mim, mas logo em seguida ele se levante protegendo-se na coluna e começa a atirar.

Não tinha a intenção de sair do lugar, mas quando olho para minha  direita tem um casal de idoso e a senhora está sangrando, preciso chegar nela e ver se posso ajudar, afinal sou enfermeira e essa é minha missão.

— Deixa de ser teimosa!!!! Fica onde está!!! - ele ordena muito bravo.

— Eles precisam de ajuda – falo enquanto indico o casal.

— Se levar um tiro não poderá ajudar ninguém, FIQUE AI, É UMA ORDEM!!!

— Steven foram para rua!!! - grita alguém e a muralha de músculos corre indo para longe.

Vou até o casal e agradeço por ver que o machucado é superficial, fico com eles até os paramédicos chegarem e cuidarem dos feridos. Em casa tomo um banho demorado para relaxar, ainda bem que a faxineira já estava concluindo a limpeza quando cheguei, então pude tomar banho tranquilamente, me arrumo e vou para o trabalho

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