O céu estava escuro da tempestade da madrugada, e as ruas, cobertas de poças que refletiam os prédios claramente, mesmo em uma rua de paralelepípedos como o da Lumiet, cujos corvos pousavam em bancos, mendigos, carros, ou qualquer coisa imóvel por mais de alguns minutos, inclusive o cadáver que ameaçava escorregar bueiro adentro, patinando no próprio sangue.
No centro da cidade, quando o relógio badalava doze vezes, as dançarinas dos bordéis esticavam-se pelas ruas, num compasso lento e sensual. Mas, mais que duas vezes por noite, após as três e trinta e três da matina, podiam-se ver pequenas filas nas portas apertadas, cheios de momentos prazerosos e repletos de fúria. É claro que, depois de algum tempo, a polícia precisou crescer os olhos para aquele lado da cidade, afinal, cadáveres de mulheres partidos ao meio começaram a aparecer, mas aí, já é história pra depois, tá? O nosso começo é bem distante dessa agitação macabra da cidade, onde as residências eram maiores e consequentemente, os donos, mais perigosos. Bom, essa em particular... Talvez também tenha perdido uns parafusos ao longo desse livro. Iliona não parece o melhor lugar do mundo pra se morar, eu entendo. Mas todo lugar pode parecer bem mais assustador com um cadáver inexplicado numa rua escura. A cidade de dia era iluminada e encantadora, te convidando a voar pelas calçadas ou entre os prédios, pesquisar sobre cada tijolo e visitar cada museu. As casas de pedra com suas lareiras esfumaçantes, o cheiro de pão quente e manteiga derretendo pela manhã, acompanhados de mistérios excitantes e romances inesperados que caminhavam por aquelas ruas todos os dias e em algumas noites (porque, às vezes, o cadáver no fim da rua não se importa em ter companhia).
Parada em frente ao longo espelho oval de moldura ornamentada que pertenceu à sua mãe, estava Melissa, encarando os cabelos longos de um amarelo narciso sem graça, que roçava em sua cintura fina. Melissa girou, olhando-se, as palavras recorrentes da madrasta perambulando por sua mente: “Seria vergonhoso sair com você pelas ruas”. Melissa abaixou a cabeça, mas ao levantá-la e fitar seu reflexo novamente, seus pensamentos voaram ao príncipe, com seus músculos torneados e poses confiantes estampando os Jornais da Manhã. Melissa riu baixo, lembrando-se da primeira vez em que havia se sentido daquela forma, alguns anos atrás, quando viu-o passeando pelo mercado central, distraído. Ele causara aqueles arrepios por seu corpo desde então, e nunca estava realmente ali.
Seu rosto esquentou-se, tornando a pele branca como a neve, avermelhada. Imagens dele entre suas coxas, o corpo definido preenchendo seus braços, que o puxavam desesperadamente para mais perto, tocando sua pele quente com necessidade, para mais adentro dela, inundando sua mente como um tsunami. Melissa mordeu os lábios e andou em direção a cama gigantesca que arrumara havia alguns minutos, envolvendo-a em um conjunto de cama azul escuro, combinando-o com o dossel em renda preta e flores que passeavam entre diversas tonalidades azuladas, delicadamente bordadas a mão. A garota deitou-se e lentamente, puxou o vestido para cima, sentindo o tecido escorregar pela pele lisa de suas coxas, descobrindo-se sem inibições. Com os dedos hábeis, ela deixou que sua imaginação a guiasse para um local mais bonito e cheio de vida, longe da podridão que se instalara na mansão Tressan durante a última década. Seu corpo relaxou sobre a maciez do colchão, a pele arrepiando-se ao toque da seda fria, acariciando-a. Melissa fechou os olhos e focou-se em seu prazer, imaginando as mãos brutas e calejadas do príncipe correndo por suas pernas, os olhos azuis tempestuosos, fixos a ela.
Mordendo os lábios rosados, Melissa arqueou as costas, atingindo seu clímax, um gemido rouco escapando de sua garganta, sufocado em seguida por um sorriso cansado e satisfeito.
Interrompendo-a, um par de saltos batia contra o mármore branco do chão, aproximando-se do quarto, tornando-se mais alto a cada segundo...
Mel! – a voz estridente de Felicith ecoava pelos corredores, caçando a garota.
Às pressas, Melissa ajeitou sua roupa e os lençóis escuros amassados, finalizando exatamente no momento em que Felicith escancarou a porta e observou-a de cima à baixo, enquanto a garota tentava, com sucesso, acalmar a própria respiração.
- O que você está fazendo aí parada? – A madrasta perguntou para a garota, com seu tom rígido casual.
- Estava arrumando seu quarto. Está nas tarefas que me designou hoje. – Respondeu-lhe Melissa, jogando o corpo de uma perna para a outra, desconfortável sob o olhar da mulher.
Colocando as mãos na cintura, Felicith abriu caminho para a porta e disse:
- E já terminou? - perguntou, estendendo a mão e indicando a saída do quarto - Sabe que o debute de Louise é nessa temporada, e nós precisamos estar bem preparadas.
- Sim, já estou descendo. – Finalizou a garota, saindo do quarto, quando, já no corredor, Felicith esticou a cabeça porta à fora e chamou Melissa.
- Melissa? Você viu Marcus?
Melissa negou com a cabeça, e Felicith assentiu.
A madrasta não tinha um rosto amigável, o cabelo ruivo escuro e liso tinha um tom peculiar que a fazia parecer mais branca do que o normal, além disso, o maxilar quadrado a dava um ar esnobe e irritado. Seus olhos, no entanto, sempre chamaram a atenção de Melissa, embebidos em um tom azulado com filetes dourados, penetrantes e intimidadores.
A mulher era bem diferente de John, pai de Melissa e barão de Iliona. Ele costumava viajar frequentemente entre os reinos para firmar acordos de comércio e antiguidades especiais, frequentemente apreciadas pelos nobres da corte. Sua esperteza e cordialidade eram muito apreciadas pelo Rei Robert, um amigo, que, após ouvir que o "honrado" duque Marsani de Hazenna procurava uma aliança com Iliona por sua filha, apresentou o barão sem pensar duas vezes. Melissa se perguntava frequentemente como o pai se apaixonara tão perdidamente por Felicith, sendo ela... como era. Talvez alguma parte daquela vil mulher fosse digna de salvação, enfim.
Com a cabeça baixa, Melissa desceu as escadas até o Hall e passou rapidamente do vermelho da entrada, para as paredes floridas do salão de jantar, onde Louise, apoiada sobre a longa mesa de madeira maciça, debulhava-se sobre uma bandeja de biscoitos de chocolate.
- Melissa, traga mais duas destas. – falou Louise sem sequer direcionar seu olhar a menina, dispensando-a com um gesto de mãos e um suspiro tedioso.
Ignorando-a Melissa seguiu para a cozinha. Os tijolos desgastados faziam dali um dos lugares mais acolhedores da casa para Melissa, ainda que houvesse diversas facas afiadas e brilhantes penduradas sobre a mesa central acima de sua cabeça.
Respirando fundo, a garota começou a preparação da refeição e dos biscoitos requisitados, juntando os utensílios espalhados pela cozinha, lavando-os e finalizando a limpeza da mesma.
Ao cair da noite, após retirar a última fornada dos biscoitos de Louise, Melissa inalou fundo o cheiro de baunilha e chocolate, agradecendo pelas receitas de sua mãe, sorrateiramente escondidas de Felicith anos atrás, antes que ela jogasse os pertences da falecida baronesa lixo à fora. Exausta do calor, sentou-se à cadeira de madeira próxima ao forno, descansando as pernas que começavam a reclamar das tarefas exaustivas de Felicith.
No entanto, três batidas despertaram Melissa de um quase cochilo escorada à mesa, e como se tivesse ingerido várias doses de café diretamente em suas veias, ela levantou-se rapidamente e correu até a porta simples de madeira que dava acesso aos jardins de trás. Sua visão escureceu durante alguns milésimos de segundo, devido a rapidez de seus atos, mas nada tirou a animação pela visita de seu único amigo e “amante”: Eric.
Eric! – Melissa gritou, animada, jogando os braços ao redor do pescoço do jovem ruivo e pálido, os olhos azuis refletindo a luz amarelada da cozinha, felizes por vê-la.
- Boa noite, Mel! – respondeu-lhe de volta, a respiração acelerada e o coração batendo rápido, apertando-a carinhosamente contra seu corpo quente.
Melissa afastou-se, segurando a mão de Eric, puxando-o para dentro da cozinha e fechando a porta para a brisa fria que ameaçava entrar.
- Achei que você não fosse mais vir hoje... – disse a menina, olhando para os próprios pés, encabulada.
Sentando-se a cadeira de madeira, Eric olhou-a, tão frágil e vulnerável. Amava-a tanto. Seu coração aquecia-se ao observá-la, sua mente girava entre todas as vezes que a tocou, desejando sempre mais do que as noites de prazer que dava a ela com seus dedos. Queria protege-la desesperadamente daquele mundo cruel que ela ainda desconhecia, tinha medo que ela pudesse quebrar como cristal nas mãos das pessoas erradas.
- Às vezes Vossa Majestade e Vossa Alteza podem ser bem exigentes, desculpe. – falou, o olhar fixo ao dela, ansioso pelo som de sua voz.
Melissa sentou-se ao lado do rapaz, desviando o olhar para os próprios dedos, as unhas curtas e quebradiças, irregulares.
- Está tudo bem. – disse finalmente, acalmando-o. Os olhos pesados pelo cansaço marcados de olheiras.
- Elas não estão te dando descanso, não é? – perguntou Eric, preocupado.
- Louise vai debutar nesta temporada. Felicith está com os nervos à flor da pele, é óbvio, ansiosa por um casamento que a faça voltar para a sociedade com a cabeça erguida e blá blá blá. – explicou, bocejando.
- Bom, pelo menos você tem alguns doces para comer escondida enquanto ela reclama – disse, apanhando a mochila cheia de guloseimas que trouxera do castelo.
- Não seja pego. – Ela lembrou-lhe mais uma vez.
-Vou pegar os pratos – ele complementou, levantando-se e indo até os armários, acostumado.
- Mas e então – Melissa continuou – o que está acontecendo no castelo para estarem assim, tão agitados? O aniversário do príncipe Henry está chegando? - perguntou, sentando-se reta na cadeira.
-Sim- falou, desanimado, olhando-a acusador – Ele quer uma comemoração diferente do desfile que fazemos todos os anos. Aparentemente um baile, ou alguma festança do gênero – explicou, um tom irônico em sua voz – Não deviam obriga-lo a casar com alguma princesa de outro reino por alianças políticas, ou sei lá? – perguntou, completando aos sussurros:-Acho que ele já tá na idade...- enquanto espalhava diversos saquinhos pela mesa de madeira – Posso ficar com a de noz-pecã dessa vez?
- Acho que isso só acontece com as princesas. – falou, entregando-lhe a torta de noz-pecã com um sorriso, permitindo que o amigo desabafasse livremente, apesar de sua falta de sensibilidade.
Melissa permitiu-se devanear por alguns segundos enquanto Eric falava, feliz com o sabor de uma tortilha de morango bem preparada.
- ... Como alguém conseguiria se apaixonar sob pressão e tantos olhares? - soltou, fazendo Melissa voltar a si imediatamente.
- Pressão? – repetiu – do que você está falando? Achei que ele tinha escolhido isso... – exclamou, curiosa, mastigando e colocando a mão em frente à boca.
- Bom, ele precisa de um herdeiro. Além disso, fãs malucas Melissa, já vi várias tentando invadir o castelo entrando pelas cozinhas... – Completou, o rosto indignado, mas brincalhão.
- E o que você queria? Ele é o príncipe herdeiro de Iliona.
- O Rei não está em suas melhores condições de saúde, acho que sequer dura até a festa de Hanni* no fim do ano, o príncipe devia estar se preparando para assumir o reino a qualquer momento, mas sabe o que ele anda fazendo? – perguntou-a, sem aguardar por uma resposta – Contrabandeando dançarinas pela cozinha ou transando nos estábulos. – Revirou os olhos – E os irmãos não são muito diferentes...
- Talvez ele esteja cansado dos deveres de príncipe.
- Você sempre o defende. Ele costumava agir melhor com as pessoas, não sei o que aconteceu. – disse Eric – e a Mash.. - falou, mas interrompeu-se para se corrigir: - a princesa, só os Deuses sabem... - finalizou, esfregando-os olhos.
Essa história pode muito bem ter dois lados – falou, pegando um banquinho de madeira e colocando-o próximo de Eric para sentar-se – Ele pode ser assim, mas isso pode não ser tudo, a gente tá falando da família real, você não lembra na Denisse? Aquela prima do rei que você conheceu e ela era um nojo no castelo?
-Sim, mas do mesmo jeito que ele tem um tio que é um cuzão 100% do tempo, ele pode só ser um babaca mesmo. – falou, e Melissa abriu a boca para retruca-lo, mas antes que a garota dissesse algo, Eric adiantou-se - Tá bom, tá bom. – Disse, erguendo as mãos em rendição.
- Eric? Deixa isso pra lá. – Chamou-o, a voz baixa e sensual. – Sobre qual cômodo irá me contar hoje?
O rapaz olhou-a, mordendo os lábios cheios e sorrindo em seguida.
Estava com saudade de mim, não é? – falou, próximo de sua orelha, o hálito quente arrepiando os pelos da nuca da garota, sedento por seu gosto. – Hoje vou contar-lhe sobre os estábulos, mas diga-me, MINHA princesa, você realmente está pronta para cavalgar?
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