O vento que atravessava a orla da praia soprava forte contra a sua bicicleta. A força que tinha que fazer para pedalar era mais do que ela realmente esperava. Usava um cachecol mostarda largo envolta do seu pescoço e uma touca da mesma cor para se proteger do frio mas apesar do seu esforço contra a ventania não conseguia sentir calor, as mãos estavam congelando no guidão. Esperava que realmente valesse a pena ter saído de sua casa naquela noite fria de inverno no sul do país.
“Hoje, 20hs, na frente do prédio azul ondulado” dizia a mensagem que tinha recebido da sua amiga na hora que tinha acabado de tomar banho e sentado no sofá com uma coberta pesada. Era uma sexta feira e apesar de cansada por conta da semana puxada na faculdade, decidiu ir ao luau na praia que iria acontecer.
O céu escuro e a curva que a orla fazia até o seu final, próximo a um morro, faziam com que o percurso até o local parecesse mais longo e no meio do caminho pensou em desistir, mas já tinha confirmado presença e sua amiga não ia perdoá-la caso desistisse.
Passou pelos bancos desertos, pelos sombreiros secos e pela ponte do córrego que desaguava no mar, trazendo um leve odor de água salgada com esgoto, onde ajeitou seu cachecol até o nariz para continuar a procissão.
Já era possível ver o prédio ondulado bem próximo. E apesar das dunas e da restinga, começou a ver pequenos pontos de luz no meio da escuridão da praia. O vento ia trazendo aos poucos a música dedilhada no violão e sons de risadas no meio da areia. Parou sua bicicleta na reta do prédio achando um local no meio da restinga para deixá-la escondida até sua volta. Ajeitou a bolsa transversal em seu ombro, estava um pouco pesada mas continha tudo o que ela precisava. Um vinho tinto barato comprado no mercadinho, uma canga para poder sentar, suas chaves e seu celular. A areia fofa afundava seu all star azul claro e sentiu a sensação desagradável de pedrinhas de areia entrando em seu tênis. Deveria ter cerca de trinta pessoas, mas ela sabia que até mais tarde chegariam muito mais. Começou a tentar identificar os rostos iluminados apenas pela grande fogueira acesa. Enquanto transitava entre elas, cumprimentava com um oi ou com um sorriso no rosto alguns conhecidos de sua faculdade, mas Olívia procurava especificamente sua amiga. Ela passou por alguns pequenos grupos de pessoas e por um grande tronco que haviam colocado próximo a fogueira onde estavam sentadas algumas pessoas. Sentado nele, um cara tocava no violão uma música animada. Avistou a frente três mulheres conversando e reconheceu a que estava virada de costas usando uma touca branca.
A menina de touca branca falava com as mãos sem parar mas quando viu Olívia sorriu e abriu seus braços a envolvendo em um abraço apertado acolchoado pelas suas jaquetas e disse quase que em um grito: "Olívia! Que bom que você veio!” Essa era Vitória, sua amiga.
“Sim, eu disse que viria”, disse Olívia com um sorriso no rosto, aliviada por encontrá-la. Ela cumprimentou as outras meninas, Ana e Camila, ambas da mesma sala de Vitória, com um beijo no rosto.
“Vem, preciso te mostrar uma coisa!” disse Vitória pegando na mão de Olívia e a puxando sem cerimônia para longe das meninas. Olívia deu um tchauzinho simpático e rápido com a mão para as meninas e seguiu sendo puxada pela amiga.
Haviam se conhecido no primeiro dia de aula. Olívia havia passado em biologia e se sentindo meio perdida olhou o mural com as centenas de nomes colocados em ordem alfabética na parede do salão principal da faculdade. Procurando pelo “O”, achou seu nome e a sala correspondente, seguindo em direção a um dos dois prédios onde aconteciam as aulas. Pegou as escadas e foi em direção a sala de aula 24b, localizada no segundo andar. Era a segunda sala a esquerda em um corredor bem longo. Entrou na sala que continha cerca de 15 alunos esperando o horário do começo da aula e sentou em uma carteira na fileira da parede, na frente de uma menina com cabelos encaracolados. Colocou sua bolsa transversal em cima da mesa e começou a puxar seu caderno quando de repente seu estojo caiu aberto espalhando pelo chão todos os seus lápis e canetas. “Eu só queria ser discreta” pensou Olívia sentindo seu rosto corar. Se agachou e começou a pegar suas coisas e olhando para o chão viu a mão da garota que estava sentada atrás ajudá-la a recolher. Era Vitória.
“Você é caloura, não é?”, perguntou Vitória.
“Sou sim, você também?” indagou Olívia.
“Não, aqui é a sala do segundo ano de psicologia e nenhum veterano que eu conheço teria essa quantidade de lápis e canetas” respondeu rindo Vitória. Olívia ficou vermelha na hora, pois não acreditava no seu potencial de se auto constranger. Mas Vitória foi legal, levou ela até a sala certa e a apresentou para a faculdade inteira. A partir daí, se tornaram muito amigas.
Encontraram um local próximo a fogueira e estenderam a canga no chão. Sentaram-se e quase em sincronia, tiraram garrafas de vinho de suas bolsas.
“Amiga, preciso muito te contar sobre o André! Talvez ele apareça aqui hoje.” Disse Vitória com brilho nos olhos.
“Sério? Que legal...” disse Olívia mais desanimada do que pretendia parecer enquanto tirava seu tênis e o virava para baixo na tentativa de tirar o máximo de areia possível de dentro.
“Sim amiga, eu sei que você tem um pé atrás com ele, mas ele é incrível, você precisa conhecer ele, daí você vai entender!” disse Vitória.
Olívia terminou de retirar a areia e calçou o tênis de volta. Abriram os vinhos e começaram a beber pelo gargalo. O calor da fogueira chegava até seu rosto mornamente e o vinho começava a esquenta-lá por dentro. Começaram a conversar enquanto bebiam e de vez em quando paravam para rir ou para cantar algum refrão da música que o cara do violão cantava.
De repente sentiu alguém se aproximando e deitando a cabeça em suas pernas cruzadas. Era Joaquim, seu amigo de sala. Levou um pequeno susto mas sorriu quando o reconheceu.
-Oi Joaquim! Que susto guri!
-Tudo bem amiga? Estava mesmo procurando algum colinho pra me aconchegar.
-Sei bem o colinho que você queria estar!
Olívia riu e ofereceu seu vinho a Joaquim que após um longo gole apontou com a garrafa na direção de uma roda de rapazes. Eles conversavam animadamente enquanto tomavam alguma coisa também. Um guri, de moletom azul marinho, olhava fixamente para Joaquim, o qual retribuía com um sorriso safado. As meninas riram do flerte entre os dois e começaram a incentivá-lo a ir até o seu boy magia.
-Vou dar mais cinco minutos para ele achar que eu não sou tão fácil.
-Aí Joaquim, só você acredita nisso. Disse Vitória rindo.
Enquanto riam da situação e Joaquim contava sobre seu contatinho, Vitória apertou o braço de Olívia repentinamente e disse “É ele, André está aqui!”. Os dois amigos seguiram seus olhos enquanto a garota olhava fixamente para um rapaz de jaqueta de couro do outro lado da fogueira. Ela tomou um longo gole do seu vinho, passou a garrafa para Joaquim e levantou-se indo em direção ao rapaz que a recebeu com um beijo em seus lábios.
-Parece um bad boy, adoro! disse Joaquim em um tom safado.
“Parece mesmo” disse Olívia enquanto a olhava. Eles conversavam enquanto André enrolava entre seus dedos um cacho de cabelo de sua amiga.
-Bom ela deixou o vinho dela aqui, vamos matar o seu e o dela!
Seguiram bebendo e conversando em volta da fogueira. A música havia parado e o que se escutava eram apenas pessoas conversando. Nessa altura da noite já deveriam ter quase cem pessoas por ali. O frio e o vento gelado da noite se espreitavam no meio da aglomeração, mas o calor da fogueira e do vinho já traziam uma sensação mais confortável.
-Amiga, vou lá com o boy, me deseja boa sorte? Disse Joaquim, tomando o último gole da garrafa.
-Aí Joaquim, vai me deixar sozinha aqui?
-É rápido amiga, juro!
-Tá bom, não posso privar meus amigos de terem uma vida romântica só porque a minha não se movimenta, aproveita por mim!” disse triste fazendo biquinho.
Joaquim segurou com a mão o bico da sua boca e disse “Dá umas olhadas por aí e bota essa boca bonita pra jogo também!”. Eles riram e ela prometeu que iria se esforçar.
-Não vai embora sem mim, vou com você.
Disse ele sorrindo e se afastando. Agora ela estava sozinha. Sentada naquela canga, se sentia deslocada, quase que não pertencente aquele lugar, se esforçou para não pegar o celular e ficar vendo as redes sociais como forma de passar o tempo, até porque só deixaria ela se sentindo pior do que já se sentia. Na verdade ela se sentia assim há algum tempo. Não era uma sensação ruim necessariamente, mas era uma sensação morna, como se a rotina ocupasse todo os seus pensamentos, não deixando brecha para imprevistos. Porém sentia-se sem rumo ou direção quando saía do previsto.
Seu último relacionamento, foi sendo desgastado aos poucos, ao ponto de que quando terminaram não houve grandes problemas. Mas conforme foi passando as semanas, ele começou a demonstrar que não se conformava e começou a segui-la insistindo em voltar. Ele fez de sua vida um inferno até conseguir desvencilhá-lo, e depois de meses, finalmente, estava conseguindo colocar sua cabeça no lugar.
Só de pensar sobre ele causou um arrepio em sua coluna e recompondo sua cabeça no lugar, pensou “Foda-se ele” e bebeu um pouco mais de sua garrafa que já estava perto do final. Começou a olhar as pessoas em volta. Já era quase meia noite e algumas delas já apresentavam sinal de embriaguez notável. Viu seu amigo agarrado com o cara de moletom azul marinho, ficou com inveja da coragem de Joaquim de ser quem realmente era. As ondas do mar batiam e quebravam com força no escuro distante. Não enxergava mais Vitória pelo amontoado de pessoas que havia formado entre elas.
De repente o violão voltou, com uma melodia diferente das que estavam tocando e reconheceu como um sopro quente em seu rosto a entrada da música, uma de suas favoritas. A melodia penetrou em sua cabeça, aquecendo suas memórias e lhe trazendo um calor de dentro pra fora. Ela conseguia enxergar a pessoa tocando o violão, mas não com nitidez. Usava um moletom preto por baixo de uma jaqueta jeans grande e rasgada, o capuz do moletom escondia sua cabeça baixa que olhava para o violão enquanto dedilhava a melodia. A música era Wonderwall, da banda dos anos 90, Oasis.
A pessoa começou a cantar a primeira estrofe e olhando para frente, seu capuz caiu e Olívia conseguiu finalmente enxergar seu rosto.
“Today is gonna be the day
That they're gonna throw it back to you
By now you should've somehow
Realized what you gotta do
I don't believe that anybody
Feels the way I do about you now”*
O calor que surgia em seu peito fez com que afrouxasse um pouco o seu cachecol. Tomou o último gole de seu vinho olhando fixamente para a pessoa que cantava, sentindo seu rosto esquentar. Mesmo olhando para seu rosto e escutando sua voz, não conseguia identificar seu gênero. Não que fosse uma questão para ela, isso até tornava as coisas mais interessantes. Dava para ver que seu cabelo era curto e preto, com um corte moderno, sua mandíbula era bem desenhada e seus olhos pequenos brilhavam pelo reflexo do fogo. Cantava bem e com firmeza e no refrão da música chegou a sorrir, mostrando as aspas em volta de sua boca. Olívia adorou aquelas aspas.
Sentiu seu coração pulsar como há muito tempo não sentia. As veias das mãos tocando violão, saltavam iluminadas pela luz amarela do fogo. Outros olhavam, mas ela tinha a sensação de que eram apenas figurantes em um grande cenário.
Uma mão apareceu em sua frente estalando os dedos próximo a seus olhos. Levou um susto e quebrando a hipnose, era Joaquim que havia voltado.
-Guria! Te chamei você não escutou, você está bem?
-Desculpa, estou sim, é só porque... porque eu adoro aquela música! Deixa eu te perguntar, por um acaso você conhece aquela pessoa, a que estava tocando o violão? Perguntou meio receosa com medo de Joaquim entender sua verdadeira intenção.
-A May? Claro! Ela cursa a noite relações internacionais, já está terminando o curso. disse Joaquim tranquilamente sem notar o interesse demasiado.
“Entendi" disse Olívia tentando se recordar de algum encontro anterior. Nunca tinha visto, nem na faculdade nem em outras festas.
-Ela canta muito né? Marcos mora com ela há alguns meses, são do mesmo curso. Disse Joaquim agora percebendo o real interesse da amiga.
- Nunca vi nenhum dos dois. Indagou Olívia.
-Aí amiga, eles costumam ir em festas do povo mais antigo da faculdade. Sei que ela ficou um tempo fora mas não sei direito o babado direito, mas se quiser posso descobrir, o Marcos é amigo dela. Disse Joaquim com um sorriso malicioso em seu rosto.
-Não, não precisa, era só curiosidade mesmo.
Olívia disse rápido sem querer demonstrar muito interesse.
Joaquim a olhou com cara de quem não tinha acreditado.
“Vamos ficar mais um pouquinho e a gente pode ir?” Disse Olívia para o amigo que assentiu com a cabeça.
Joaquim começou a contar sobre seu boy e de como se conheceram na biblioteca, mas mesmo a história sendo engraçada e com riqueza de detalhes a cabeça de Olívia estava distante. Agora sabia que era uma garota, mas suas roupas eram bem masculinas, o que para Olivia a tornava muito atraente. E sua voz era tão bonita que se sentiu naquele velho clichê sapatão. Mas foi a música que ela havia escolhido cantar que foi suficiente para despertar seu interesse. Na verdade, tudo que seu amigo tinha contado, a deixou com mais interesse em descobrir quem ela era realmente.
De vez em quando a olhava na roda de Marcos conversando e tomando alguma coisa. Havia algo e ela podia sentir um frio na barriga que há muito tempo não sentia, como quando descemos em uma montanha russa.
“... Mas daí ele disse que queria me levar pra casa e colocar em ação outras coisinhas, mas eu fui firme amiga, fiz a fina e disse que enquanto ele não se resolver direito com o outro, meu corpinho será preservado.” Disse Joaquim fazendo com que Olívia voltasse pra realidade.
“Fez muito bem, se valorize, mas ele parece ser legal! Joaquim, vamos achar Vitória e ir embora? acho que bebi vinho demais da conta.”
Levantaram e seguiram em direção ao local que haviam visto a amiga pela ultima vez conversando com o tal André. Não a localizaram de primeira, mas depois de andar um pouco mais à margem da festa encontraram-na com André próximo a uma duna de areia, em um amasso forte.
“Vitória! Que bom que encontramos você! Já estamos indo embora, vamos com a gente?” perguntou Olivia cortando o casal.
“Vamos sim” disse ela dando uma pausa nos movimentos, mas ele a puxou para perto e disse alguma coisa em seu ouvido que a fez rir.
“Então... vou ficar mais um pouquinho com o André, a propósito, esses são meus amigos Olívia e Joaquim.”disse Vitória enrolada e apresentando seus amigos.
“Olá, prazer” disse André abrindo um sorriso encantador e cumprimentando os dois. Realmente ele era um cara muito bonito, seus cabelos loiros queimados pelo sol juntamente com seu porte alto e visivelmente escultural com a roupa estilosa davam o ar de perigo mas ao mesmo tempo de segurança. Joaquim já estava babando por ele.
“Tem certeza amiga, vai ficar?” Perguntou em tom preocupada Olívia.
“Sim, logo menos eu vou, moro aqui perto, André me deixa na porta do meu prédio” disse Vitória segura.
“Manda mensagem quando estiver lá, tá bom?" Vitória assentiu com a cabeça e Olívia puxou o amigo antes que ele caísse em cima do boy da amiga.
Já distante Joaquim disse “ Menina, Vitória acertou em cheio, arrasou”
“Ele é muito bonito mesmo, mas algo nele não me agrada, não sei o que é..” Disse pensativa.
“Frescura e inveja sua” disse Joaquim brincando.
“Deve ser...” Pensou Olívia.
Resgataram a bicicleta de ambos e foram em direção ao caminho entre as dunas para o calçadão. Já era umas 2 horas da manhã quando voltavam. O vento forte agora pelo menos soprava a favor deles o que fazia o trajeto ficar bem mais fácil. Inclusive foram brincando em zig zag pela orla vazia com suas bicicletas.
Joaquim então gritou para a amiga. “Guria, já ia me esquecendo, vamos parar ali naquele banquinho por favor!”
Olívia achou estranho e hesitou em parar, mas o amigo já tinha parado e encostava sua bicicleta em um banco. A essa altura da praia, por conta da erosão, havia um pequeno precipício entre o calçadão e a areia. Era possível ouvir e ver o mar em fúria batendo lá em baixo na parte rochosa da encosta. O banco ficava bem ao pé do barranco de frente para o mar.
Sentaram os dois bem juntinhos enquanto Joaquim procurava em seus bolsos alguma coisa. Quando puxou era um espécie de cigarro pequeno bolado em papel bege.
“Achei!” Disse Joaquim mostrando para Olivia entusiasmado.
“Aí guri, só você mesmo! Tomei vinho, será que não vai dar ruim?” perguntou preocupada.
“Já estamos perto da sua casa, se passar mal dá tempo de chegar” e deu uma piscadinha para ela.
Repetiu o mesmo ritual de procura nos bolsos e achou seu isqueiro. Mordeu a ponta tirando o excesso de seda e acendeu o baseado. Começaram a fumar, intercalando as vezes. Joaquim então puxou um assunto.
“Ei, ultimamente tenho te achado distraída e distante, sei que as coisas não foram fáceis com o Raul, mas já faz mais de um ano e você precisa reagir”
“Eu sei Joaquim, mas fiquei muito tempo com a mesma pessoa, acabei me perdendo de mim, achar essa Olívia independente depois de tanto tempo é tão difícil, nem sei realmente se ela já existiu na verdade. Às vezes parece que eu não sei quem eu sou mais e nem o que eu quero ser.”
“Entendo”. Disse Joaquim puxando um trago e soltando lentamente. “Mas se você nunca tentar se abrir você nunca vai conseguir”. Joaquim disse em tom de conselho.
“Eu sei, tenho uma certa inveja de você nesse sentido, você é tão livre!”disse Olivia sorrindo para ele, realmente o admirava por isso.
“Teve e tem um preço, mas sou feliz.” Disse Joaquim dessa vez olhando nos olhos da amiga. “Talvez você precise de alguma oportunidade pra se soltar, vou arranjar alguma coisa pra você” Disse agora em um tom mais entusiasmado.
“Não sou das suas cachorradas Joaquim, olha lá hein” disse Olivia rindo.
Ele começou a dar risada e disse “ É porque você nunca experimentou as minha cachorradas”.
Eles riram alto e perceberam que já tinham fumado o suficiente. Pegaram suas bicicletas e pedalaram pela orla por mais um quarteirão até virarem à direita em uma rua comprida. Sua casa ficava em um pequeno condomínio de 12 casas há 2 quarteirões da praia.
Olívia perguntou se o amigo não queria dormir lá, mas ele recusou, sua casa era relativamente próxima. Pediu para mandar mensagem quando chegasse, ele deu um beijo em sua bochecha e piscou para ela. Já em cima de sua bicicleta gritou “Vou comer lasanha!”
A amiga riu e entrou pelo portão.
Abrindo a porta de sua casa, jogou sua bolsa, o cachecol e a touca no sofá próximo a entrada. Escutou patinhas se aproximando e sua cachorrinha Meg veio recebê-la ainda meio sonolenta. Fez carinho na doguinha e a pegou no colo. Meg era uma vira-lata de porte pequeno, com o corpinho gordo e malhado de preto e branco, tinha resgatado ela em um dia de chuva e frio na rua da sua casa.
Foi até o armário da cozinha e pegou uma barra de chocolate dirigindo-se ao seu quarto. Colocou o chocolate no móvel lateral e sua cachorrinha na cama onde aparentemente ela já estava a noite inteira. Trocou a calça jeans por uma de flanela e as blusas pesadas por um moletom antigo e manchado. Correu para sala novamente e pegou seu celular de dentro da bolsa. Deitou na cama e abriu a barra de chocolate, pegando a primeira fileira inteira. Enquanto uma mão segurava a barra a outra segurava o celular com os dedos mexendo rapidamente pela sua tela. Ela sabia o que procurava e digitou as únicas três letras que se passaram pela sua cabeça em suas redes sociais. M-A-Y.
Apareceram alguns usuários em sua pesquisa, mas um em especial chamou a atenção. Era a foto de um sorriso com as aspas entre a boca e as bochechas. Sabia que a havia encontrado. Agora era ela quem estava sorrindo. Mordeu o lábio inferior e clicou em seu perfil. As fotos eram tão enigmáticas quanto ela esperava. Mas já conseguia visualizar seu rosto mais nítidamente. A maioria eram apenas dela, com um pug pretinho, “Você ia gostar dele Meg”, disse para sua cachorra que estava enroladinha próxima a ela. Desceu mais em seu perfil e encontrou fotos com alguns amigos, mas poucas. Uma mais antiga chamou sua atenção. Era a foto de seu rosto com as mãos de uma pessoa tapando seus olhos e a legenda dizia “A melhor surpresa”. Ela checou mas não havia comentários ou marcações na foto datada de muitas semanas atrás. Ficou com vontade de adicioná-la mas se conteve. A essa altura ela nem sabia aonde queria chegar, mas pegou outra fileira de chocolate, fechou seu celular e virou para cima na escuridão da noite. As ondas do mar chegavam até seus ouvidos e o ronco de Meg era alto mas fofo.
Virou para o lado e suspirou com um leve sorriso no rosto. O som do violão não saiu de sua cabeça. A voz de May cantava em sua mente, doce mas forte. Dormiu enfim ao som do mar, do violão e do ronco de Meg.
"Eu sou ruim pra caralho!"
Fazia 14° fucking graus e não era nem de noite ainda. May jogava videogame e tentava passar uma fase difícil, na verdade não era tão difícil assim, mas ela era realmente muito ruim. Sentada de pernas cruzadas no sofá, de moletom, os dedos apertavam rápida e repetidamente o controle. Sua cabeça acompanhada pelo seu corpo, de vez em quando, bruscamente, movia-se de um lado para o outro acompanhada de suas mãos como se isso fosse ter algum efeito dentro do jogo. Após tentar vencer mais uma corrida e capotar seu carro pegando fogo, ela desistiu e arremessou o controle para o lado do sofá.
As vezes ela não sabia se o jogo fazia realmente bem para ela, causava uma certa ansiedade por sempre querer vencer. Alongou os braços para cima e estalou suas costas. Colocou a mão no bolso de sua blusa de moletom e apalpou sua caixinha predileta. Ela sabia que era um mal hábito fumar, na verdade ela tinha um plano em sua mente para parar que variava de médio a longo prazo, dependia muito de seu ponto de vista, talvez quando fizesse trinta, "Com certeza" ela repetia pra si mesmo toda vez que pensava sobre o assunto.
Levantou-se e foi para a varanda. Ao longe se via o mar, um pedacinho no meio de alguns outros prédios e começava a anoitecer mas não havia pôr do sol. Ouviu um barulho na maçaneta da porta da frente. A porta abriu e um homem com camisa listrada, entrou em seu apartamento e sorriu em sua direção.
"Oi bonita! Tudo bem contigo guria?" Era seu amigo, Marcos.
"Oi bonito! Suave e você? Por onde andou hein?" Perguntou a ele curiosa.
Marcos estava com uma sacola na mão e a levantou para a amiga. A sacola era do supermercado ali próximo. Pela transparência da sacola ela conseguia identificar algumas latinhas e uma garrafa de algo colorido terminado em "off".
"Aí sim, pra onde vamos?" quis saber May.
Ele foi falando seguindo para a cozinha "Então, vai rolar um lualzinho aqui perto".
Ele retornou da cozinha com duas latas de cerveja na mão, entregando uma delas a amiga.
Eles brindaram e sentaram no sofá. May então perguntou "Quem é?"
"Quem é quem amiga?" Disse Marcos parecendo surpreso e confuso. Ele deu um gole longo na cerveja olhando para o outro lado da sala.
A amiga riu e deu uma almofadada nele e os dois começaram a rir.
"Para Marcos, você sabe o que eu te perguntei" ela disse.
"Aí amiga tá bom, é um boy novo, da turma de manhã, final do primeiro ano de biologia. Conheci na biblioteca".
"Nem sabia que você frequentava esse tipo de lugar." Disse May sorrindo mavaldamente.
"Besta! Mas é pura verdade, fui devolver um livro e achei a cachorrada". Eles riram alto com o comentário de Marcos.
"Você também pode se dar bem hoje a noite, aliás você sempre se dá!" Disse o amigo.
"Só quando eu quero e ultimamente você sabe que eu tenho evitado problemas". Disse May com um olhar distante.
"Ei, eu sei amiga, mas você talvez só precise relaxar e esquecer um pouco, é um povo mais novo que vai colar lá hoje" o amigo se aproximou e pegou em sua mão.
Ela sorriu de canto para ele.
"Eu sei, é por isso que vou com você". Disse ela sorrindo para ele.
Eles brindaram novamente e terminaram de beber a cerveja. Acendeu mais um cigarro, sentou em uma cadeira próxima a mesa da varanda e pegou seu violão o apoiando em sua perna, o cigarro pendia da boca, mas seus lábios o seguravam com firmeza. Começou a dedilhar sem muita direção.
Ela estava tentando fugir dos problemas. Seu último relacionamento tinha sido tóxico, muito tóxico e sabia que tinha sua parcela de culpa. Além disso, havia uma pendência que a prendia ainda com sua ex e May mais cedo ou mais tarde teria que resolver e enfrentar. Mas estava tentando adiar o máximo que podia, como sempre fazia.
Deu um longo trago em seu cigarro. Às vezes ela só queria voltar ao tempo quando tudo era mais fácil.
Lembrou da época em que saía com seu pai de carro, ele dirigindo e ela ao seu lado cantando alguma música que ele gostava, naquele tempo tudo era mais fácil. Ele colocava um de seus CDs no rádio do carro, ele sempre dizia que eram clássicos do rock. Sentiu um aperto doloroso no coração, até às lembranças por mais doces que fossem doíam como tivessem jogado óleo quente em seu coração. Tentando agarrar-se apenas ao lado bom, começou a dedilhar a entrada de uma música.
"Que música linda amiga! Quem canta hein? É mais um daqueles seus clássicos né" perguntou Marcos.
"É sim, chama Wonderwall, do Oasis". Disse May sorrindo.
"Bem massa! Você poderia tocar hoje na festa né?" Disse seu amigo encantado pela melodia, dançandinho na cadeira mais próxima.
May deu seu sorriso de lado enquanto pensava.
"É eu podia".
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