Prólogo
Acabaram-se os dias em que minha vida era simples, fácil e sem
preocupações. Agora, vivia minha vida fugindo. Por quê? Bem, eu vou chegar a essa parte mais tarde. Por enquanto, gostaria apenas que soubesse como tudo começou. Ver como minha vida tranquila foi de zero a bem mais de cem, num piscar de olhos.
Era engraçado como você olhava para trás e lembrava de como via
as coisas de forma diferente. Eu tinha vinte anos quando tudo começou. Mudei de Cambridge para Londres, porque queria viver a vida na cidade... Bem, isso é meio que mentira, mas também vou chegar a essa parte depois.
Para ser honesta, eu queria ficar livre depois de perder meus pais. Meu pai se matou e, logo depois, minha mãe descobriu que tinha câncer. Ela viveu só mais dois anos até que sucumbiu à doença, então, fiquei por conta própria.
Fiquei brava com meu pai porque achei egoísmo da parte dele nos
deixar para recolher os pedaços. Estávamos sempre nos mudando, nunca nos fixando em lugar nenhum. Quando criança, isso costumava me deixar frustrada porque acabava de fazer amigos e já tínhamos que mudar de novo.
Então, o que eu fazia? Nunca fiz amigos. Eu me tornei uma pessoa
fechada, sentindo-me deprimida e solitária com quinze anos. Odiava minha vida. Odiava meus pais por me tornarem desse jeito, e odiava que meu único conforto depois de suas mortes era que nunca teria que me preocupar com dinheiro.
Sim, eu tinha dinheiro. Tinha muito dinheiro. Mas como eu poderia
comemorar sabendo de onde esse dinheiro veio? Como poderia viver com o conhecimento de que eu nunca teria que me preocupar em pagar minhas contas novamente quando era a mulher mais solitária do mundo? Tudo bem. Isso foi um pouco exagerado, mas era como eu me sentia. Depois que minha mãe morreu, eu me afundei rapidamente. Estava descendo cada vez mais fundo num abismo escuro, que ameaçava me engolir inteira. Fiquei em casa, quase não comia, quase não falava com ninguém.
Apenas existia.
Isso me traz à próxima parte da minha história. Veja, eu devia ter só
existido e estado deprimida, mas me segurei em algo. Era a faísca de algo dentro de mim que estava ansiosa para sair. Eu tive muito tempo para pensar, então, planejei. Eventualmente, aceitei a ajuda de Titio e ele me ajudou a planejar. Não era meu tio de verdade. Desde bem pequena foi dito para que eu o chamasse dessa forma. Ele me ajudou a passar pelos momentos mais difíceis e, acredite em mim, passei por alguns. Ele era o meu mal necessário. Eu digo mal porque, definitivamente, havia algo sombrio sobre ele. Algo misteriosamente obscuro e, com toda certeza, perigoso. Sabia que ele era um homem muito poderoso por causa do controle que eu via que ele tinha sobre o meu pai.
Meu pai estava sempre assustado. Iria ainda mais longe ao dizer que
ele estava até um pouco paranoico. Antes de ir dormir a cada noite, ele verificava a casa cinco vezes. Às vezes, eu o observava procurando freneticamente em todos os cantos. Ele nunca soube disso, no entanto. Tanto quanto no que dizia respeito a ele, eu nunca tinha existido. Ele estava muito ocupado ganhando dinheiro, influenciando pessoas, e tentando ao máximo não ser morto... o que foi engraçado, considerando que ele acabou se matando.
De qualquer forma, eu deveria voltar para o aqui e agora. Não
queria chafurdar mais. Queria fazer algo por mim... e para outras pessoas.
Então, o que eu fiz? Com a ajuda de Titio, eu me mudei para Londres, aluguei uma casa de dois quartos, arrumei um emprego de meio período num pub, e no resto do meu tempo livre ajudava a alimentar os moradores de rua no refeitório comunitário local.
Eu também gostava de pintar. Se algum dia sentia que ia me afundar
naquele buraco que costumava me enterrar, pegava meu pincel e começava a criar. Era para isso que usava meu segundo quarto. Para meu estúdio. Meu santuário. Guardava uma infinidade de pinturas, cada uma delas me dava um propósito. Isso me fez querer viver, querer ver o mundo através de uma nova perspectiva. Era o meu lar dentro do meu lar.
O que me traz à parte mais importante da minha história — outra
vez. Vou explicar melhor depois, mas, por enquanto, você só precisa saber os detalhes essenciais.
Na minha busca em me encontrar e ajudar os outros, conheci um
homem, um morador de rua. Um homem de rua, muito misterioso e sombrio. Infelizmente, conheci muitas pessoas desabrigadas, mas esse se destacou, e sabe por quê? Ele nunca falou comigo. Nunca disse uma palavra, nunca reconheceu minha presença. E, francamente, isso irritou pra cacete. Todos eram tão simpáticos e atenciosos. Apesar do próprio infortúnio de cada um deles, fariam o que fosse para ajudar, mas esse homem? Nada. E isso me deixou ainda mais curiosa para saber mais sobre ele. Na verdade, se fosse totalmente honesta, isso me deixou demasiadamente frustrada.
Claro, não termina aí. Acho que sabe onde isso vai dar, mas, por
enquanto, eu vou te dizer isso. O homem por quem eu estava tão vislumbrada, o homem que tanto me irritava e me deixava atônita? Seu nome era Kit Chain...
E essa era a nossa história.
Hilton Hotel, Londres, 2004
— Olivia, está na hora de se arrumar. Titio vai te levar ao parque,
lembra?
Sorri. Titio sempre cuidava de mim e fazia de tudo para me deixar
feliz.
— Tudo bem, mamãe. Onde está o meu casaco? Não consigo
encontrá-lo.
Estava no corredor da nossa cobertura, procurando. Os quartos
eram tão grandes, pareciam mais um apartamento do que um quarto de hotel.
— Acho que está no meu quarto, Olivia. Vá logo e fique pronta.
Entrei no quarto dos meus pais e peguei o casaco na cama. O
quarto estava bastante escuro, mas à luz fraca, pude ver uma sombra.
Inclinando a cabeça, estreitei meus olhos para tentar ver o que era
a sombra. Eu dei alguns passos na direção dela quando ouvi minha mãe gritar:
— Olivia, depressa!
Virei a cabeça e gritei:
— Está bem, mamãe. Estou indo!
Olhei para trás uma última vez, mas a sombra tinha sumido. Por um
momento, eu pensei que talvez meus pais tivessem um fantasma no quarto, então, agradeci por não dormir ali.
Sorri, pensando no passeio com Titio, e vesti o casaco. Virando em
direção à porta, parei no mesmo instante.
Um homem de cabelo preto curto estava na porta, me encarando. Era um homem que eu nunca tinha visto antes. Deveria ter gritado, mas por algum motivo, perdi a voz. Fiquei apenas olhando, me perguntando o que eu deveria fazer.
Enquanto pensava em tudo isso, de repente, ele levou o dedo aos
lábios.
— Shh — murmurou e, então, desapareceu da porta.
Meus olhos devem ter ficado arregalados. Ainda estava de pé ali,
incapaz de me mexer, quando minha mãe entrou no quarto e viu minha expressão.
— Olivia, o que foi, filha? Parece que viu um fantasma.
Agora era março, então, estávamos na primavera. Eu amava esta
época do ano, porque os dias eram mais longos, os céus algumas vezes eram mais claros, e os pássaros sobrevoavam em bando. Tinha uma árvore em frente à janela do meu estúdio, e às vezes acabava observando os pássaros nos galhos, indo e vindo. Eu fechava os olhos e escutava a doce melodia deles por alguns momentos antes de começar a pintar. Aqueles momentos eram meus. E neles, eu me libertava de quaisquer expectativas e responsabilidades. Poderia ser apenas eu.
Mas os próximos dias não foram despreocupados. Naquela primeira
manhã, segui pelo caminho de sempre até a cafeteria para comprar café para meus amigos moradores de rua.
Gostava dessas manhãs. Elas me davam um propósito. Um
significado. Gostava muito da companhia e brincadeiras deles de todos os dias. A única pessoa que não dava atenção quando eu chegava era esse homem misterioso. Um homem que eu acabava pensando o tempo todo. Não sabia o motivo por que ele nunca conversou comigo... e, provavelmente, essa era a razão e, mesmo assim, aquilo me frustrava. Havia algo sobre ele que não conseguia entender. O que me fez querer saber ainda mais, e já tinha bastante tempo que queria isso.
Depois de pegar os cafés, eu me despedi de Tim, o proprietário, e
saí. Enquanto caminhava, sorria porque ser capaz de andar sozinha na rua não era algo normal para mim. Conforme crescia, sempre tinha pessoas tomando conta de mim, garantindo que eu ficasse segura. Na época, havia sempre uma preocupação de que eu pudesse ser sequestrada, considerando que eu era a filha de alguém famoso e altamente importante.
Achava que ainda poderia, mas os anos escondida, a mudança de nome, e a nova cor de cabelo tornou possível agora passar despercebida. Eu tive que lutar para conseguir chegar nesse ponto, mas o que me trouxe aqui hoje foi prometer algo que Titio queria de mim.
Precisava da ajuda dele para isso e ele cedeu. Foi-me concedido três meses, mas esse prazo estava quase no fim. Na verdade, acabava em algumas semanas.
Eu preciso de mais tempo.
Suspirei, seguindo o caminho de sempre pela Barclay Lane, parando
na escada que levava ao refeitório comunitário.
— Olivia! — gritou Wayne.
Eu olhei brevemente na direção do homem misterioso e, como de
costume, ele me ignorou por completo.
Tentando não deixar que isso me atingisse, me virei para Wayne e
sorri. Hoje, tinha uma mulher sentada ao lado dele. Pareceu ter uns cinquenta anos, com o cabelo loiro escuro, olhos castanhos e uma pinta escura na bochecha. Não uma pinta enorme, mas visível. Ela sorriu, e foi quando notei que ela tinha um dente faltando.
— Venha conhecer minha namorada, Rachel.
Inclinando-se, Wayne pegou o café dele, os demais se juntaram para
pegar os seus.
— Não sabia que você tinha namorada, Wayne. — Levantei a
sobrancelha. — Estava escondendo isso de mim?
Wayne me deu um sorriso, mostrando seu dente de ouro. Ele foi um
traficante de drogas, até que começou a usar. Aquilo deu início à sua verdadeira derrocada. Tentava ficar longe dessas coisas agora. Acho que morar nas ruas o obrigou, mas de vez em quando ele desaparecia por alguns dias e ninguém sabia onde ele estava. Aqueles dias me assustavam porque sabia que estava usando drogas, e não tinha certeza se o veria outra vez.
— Fiquei cansado demais de esperar por você, então, passei a
procurar por aí. Espero que não se importe. — Ele piscou para mim e comecei a rir. Rachel apenas revirou os olhos.
Coloquei uma mão no peito.
— Bem, meu coração está um pouco machucado, mas tenho certeza
de que vou superar isso. — Eu me virei para Rachel e estendi a mão para ela. — É um prazer conhecê-la, Rachel.
Ela me deu um sorriso.
— Prazer em te conhecer também.
De repente, eu me senti um pouco mal.
— Eu sinto muito. Se soubesse, eu teria trazido um café para você
também.
Wayne a puxou para perto e sorriu.
— Não se preocupe, Olivia. Ela pode tomar junto comigo.
Eu sorri, perguntando a Rachel o que gostaria de beber amanhã. No
começo, ela me disse que não queria incomodar, mas finalmente cedeu, dizendo o quanto gostava de chá.
Acenei com a cabeça.
— Anotado. Estava mesmo pensando em fazer pastéis
dinamarqueses na quarta-feira. Não posso fazer amanhã porque vou trabalhar. Só Deus sabe como ficarão, mas vou trazer alguns comigo se ficarem bons.
— Traga mesmo assim! — gritou Thomas. — Não os recusaria, não
importa como estejam.
Comecei a rir.
— Tudo bem. — Parei por um momento, voltando minha atenção
para o homem misterioso. Ele estava encolhido, tentando se aquecer. Podia ser primavera, mas era só o primeiro dia de março, por isso, ainda estava muito frio. Tinha um casaco cinza comprido e grosso, um gorro de lã azul na cabeça. Usava isso frequentemente, mas não dava para esconder o cabelo todo. Descia até a altura do pescoço, e tinha o tom loiro escuro a castanho claro. Seu rosto também estava coberto pela barba. Muita barba. Tanta que mal dava para ver o rosto que estava por baixo, mas eu conseguia.
Quando comecei a ajudar aqui, há quase três meses, ele entrou no
refeitório comunitário para comer. Ele me entregou um prato e coloquei um pouco de comida para ele. Ele não olhou para mim, nunca olhava, mas eu vi seus olhos. Eram um contraste de azul e cinza, e tão cativantes, minha obsessão por ele começou naquele momento. Nunca disse obrigado. Nunca disse uma palavra. Tudo o que fez foi pegar o prato e encontrar um assento o mais longe possível de qualquer um.
Naquele momento, percebi duas coisas. Primeiro, queria conhecer
sua história, e segundo, era um solitário.
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