...Se esta rua, se esta rua fosse minha...
...Eu mandava, eu mandava ladrilhar...
...Com pedrinhas, com pedrinhas de brilhantes...
...Para o meu, para o meu amor passar...
― Você ouviu falar? Dreamland World terá um novo dono.
― Quem iria querer herdar aquele lugar? Ouvi dizer que os palhaços sequestram pessoas para matá-las.
A neblina se torna densa, mergulhando em todo o parque sendo capaz de esconder as pessoas.
...Nesta rua, nesta rua tem um bosque...
...Que se chama, que se chama solidão...
...Dentro dele, dentro dele mora um anjo...
...Que roubou, que roubou meu coração...
― Uaaaaau, é ele mamãe! Veja, ele está lá no alto. Parece um anjo!
― Tão bonito... Será que é solteiro? Benjin, você é demais!
...Se eu roubei, se eu roubei teu coração...
...Tu roubaste, tu roubaste o meu também...
...Se eu roubei, se eu roubei teu coração...
...É porque, é porque te quero bem...
Os aplausos da plateia, os gritos e a admiração que direcionam aos artistas sobre o palco era o cerne daquele lugar. Quando a noite chegava, todos eram recepcionados para dentro da enorme tenda onde mais um espetáculo iria começar. Pipocas, doces e refrigerantes à postos.
Era hora do show.
...⋈...
Em um bar de casa cheia, uma banda se apresentava. O som alto da bateria e das guitarras enlouquecia o público, que cantavam junto do vocalista da qual parecia entregar a própria alma naquele microfone. O pequeno palco não permitia muito movimento por parte dos musicistas, no entanto o vocalista conseguia ir de uma ponta à outra, subir em caixotes e interagir com o seu pequeno público.
Mesclando músicas autorais e covers, aquela pequena banda mostrava sua habilidade com clamor. Era certo que o público aplaudira o seu final, erguendo garrafas de cerveja e copos de chopp brindando a bela apresentação que aqueles quatro jovens os presenteara.
Já passava da uma da manhã quando os quatro rapazes desceram do palco suados e ofegantes. Os sorrisos em seus rostos era a prova contundente do prazer que sentiam em tocarem juntos mais uma vez.
― Aqui rapazes, cerveja gelada para vocês e... ― Sorria a dona do bar segurando três garrafas de cervejas as deslizando sobre o balcão, tendo os rapazes segurando prontamente. Para o último integrante da banda, o vocalista, a mulher alta e trans entregava uma xícara de alumínio fumegante ― Leite quente para o nosso bonitão.
— Abençoada sejam as suas mãos divinas, Betinha.
O vocalista abria um largo sorriso ao segurar a xícara e erguê-la em um agradecimento silencioso. O cheiro do mel misturado ao leite aquecido não combinava de maneira alguma com um bar como aquele, apesar do rapaz não parecer se importar com tal detalhe. Bebera um gole com cuidado, sentindo o calor relaxar sua garganta arranhada.
― Ah... Que delícia!
― Por acaso tem feito algum treinamento vocal? Sua voz parecia diferente essa noite. ― Quis saber a dona do bar, preparando um drink ao receber o pedido de um dos garçons.
― Tenho visto alguma coisa na internet. Ficou ruim?
A careta do rapaz fazia a mulher revirar os olhos e rir negando com a cabeça. Era notável o seu esforço daquela noite, a dona do bar precisou inclinar-se um pouco para ouvir o rapaz que estava rouco. Ainda assim, sua voz era gostosa de ser escutada.
― Pelo contrário, acho que essa foi uma das melhores apresentações dessa noite.
― Ei! Dona Berta, poderia descolar uns petiscos para nós, não acha?
― Tenho cara de empregada, senhor Rafael? ― Reclamava a mulher para o guitarrista, que alargava ainda mais o seu sorriso besta. Tão sem vergonha que a mulher tentava não sorrir ― Vai ser fritas com cheddar por enquanto.
― Você é demais!
O vocalista soltara um riso baixo ao tomar mais um gole do seu leite quente com mel, se divertindo com os amigos que logo entravam no mesmo clima que os demais clientes do bar. Uma cerveja atrás da outra, gritando e pregando peças para encerrar a noite esplendorosa. Conversas paralelas à brincadeiras, bebidas em mãos e assim o zum zum zum começava.
Só que para aquele vocalista os assuntos corriqueiros não pareciam tão interessantes. Geralmente era o mais empolgado, o que mais gritava sem desistir de elevar o ânimo de seus amigos. Estava cansado de pular no palco pequeno, e aquele leite quente o relaxava à beça. Ou seriam as noites mal dormidas das últimas semanas? Enquanto desfrutava de sua bebida exclusiva, ele olhava para a televisão de plasma sem som, onde passava uma matéria do jornal.
― Ei, Leo!
A voz feminina ganhara não somente a atenção do vocalista, como também de toda a banda e até mesmo da Dona Berta. O sorriso de antes fora substituído por caretas desgostosas dos rapazes, tendo apenas o vocalista a olhar para a garota que lhe dirigia um sorriso afável.
Definitivamente não estava preparado em falar com ela novamente. Não depois da tempestade que criou quando flagrava a sua, então, namorada com outro cara. E ainda pior, o antigo baterista da banda. Recém deixará de usar a faixa que envolvia a cicatriz em sua mão direita. Mas lá estava ela, parecendo uma boneca de porcelana.
― Como você tem estado? Cantou bem hoje... ― Dizia a mulher de vestes delicadas e cabelos castanhos claros alisados. ― Tinha ouvido falar que não faria mais parte da banda, mas vejo que foi só um boato.
― Não abrimos mão desse vocal, mas nem fodendo! ― Sorria o baixista abraçando o amigo vocalista pelo ombro.
A mulher ria ajeitando uma mecha atrás da orelha. Foi quando um homem alto e musculoso aparecera por trás dela, passando o braço por seu ombro direcionando um olhar afiado ao vocalista.
― Eh, quem é vivo sempre aparece. O que é isso aí? Conhaque?
O vocalista baixara os olhos para a xícara quase vazia, sem responder. Apenas virara o resto do conteúdo e estendera a xícara para a dona do bar.
― Poderia fazer mais um? Minha garganta ainda está um pouco arranhada.
― Como quiser meu querido, mais um leite quente com mel.
― Leite quente? Que bebezão ― Ria o homem musculoso. ― Por acaso regrediu depois de ter sido trocado?
― Alex por favor...
Os integrantes da banda, e até mesmo Dona Berta, arregalavam os olhos quando o assunto sensível fora tocado. O vocalista apenas acompanhava a dona do bar terminar de esquentar o leite e misturar alguns fios de mel na xícara de alumínio antes de entregar o pedido. Segurando entre seus dedos, o rapaz abria um sorriso ladino.
― Não quero cometer o mesmo erro do nosso antigo baterista. ― Sorria o rapaz virando-se para o brutamontes. ― Vocês dois se merecem. Uma traidora e um alcoolista.
O rubor tomava as bochechas da mulher, cujo último relacionamento havia sido com o vocalista da banda. Faziam dois meses que haviam terminado? Provavelmente. O rapaz parecia ter superado a relação, dada a apresentação animada que fizera minutos antes.
― Como é?
― Garotão... Se aprontar de novo no meu bar, farei questão de te enterrar numa cadeia. ― Avisava a dona do bar, com um olhar ameaçador que seria capaz de criar uma faca afiada de gelo naquele mesmo momento.
O brutamontes rosnara em resposta, puxando a namorada para longe da banda. Mesmo que ela olhasse para o ex, ele não retribuíra o olhar. Continuava a beber do seu leite quente e a sorrir para a xícara.
― Uau, que cara de pau a dela de vir conversar contigo, hein.
― E ainda trouxe aquele cara com ela. Ainda bem que nos livramos dele. ― Dizia o guitarrista, abraçando o novo baterista da banda.
― Ele me dá medo. ― Afirmava o novo integrante.
― Se preocupa não, bebê. Tia Berta cuida de vocês por aqui.
O rapaz de dezoito anos ainda era tímido perto da banda, porém suas habilidades na bateria eram bem melhores que o antigo integrante. Um achado e tanto do vocalista, que o ouvira tocar na sala de instrumentos da faculdade.
― Ignore ele. Se ficar dando trela aquele cara vai te pegar pra Cristo. ― Avisava o vocalista.
Os petiscos logo foram entregues, e os demais rapazes se sentavam à bancada para comerem. O novo baterista escolhera a banqueta ao lado do vocalista, olhando curiosamente para a sua xícara de alumínio.
― Mas por que você bebe leite?
O vocalista abria um sorriso ladino, apontando para a própria garganta.
― O álcool fode com o vocal. Preciso cuidar dela se quiser ficar nessa posição na banda. Ou terei de voltar pra batera.
― Nem pense nisso, Leo! ― Reclamava o rapazote assustado. ― Essa vaga já é minha.
O vocalista ria afagando os cabelos bagunçados do menino, e então algo na televisão chamara sua atenção.
O nome daquele lugar escrito na tela fazia com que o sorriso fosse embora. Seu coração acelerava ao tempo que seu cérebro buscava memórias, das quais foram custosas a serem esquecidas. Apertando os dedos em torno da xícara de alumínio, o vocalista tentava entender sobre o que seria a matéria do jornal.
Na tela mostravam um parque de diversões, que ao fundo haviam portões de ferro fechados mostrando um terreno cheio de maquinários e operadores. Uma tenda listrada na cor vermelha e branca se erguia de pouco em pouco, mostrando sua grandiosidade.
― Ora, parece que finalmente o circo vai voltar. ― Dizia a dona do bar, enxugando um copo que acabara de lavar. ― Ouvi dizer que ficaram sem se apresentar por estarem de luto pela morte do dono.
― Nossa, mas isso já fazem meses! ― Dizia o baterista, pegando uma das batatas e a mergulhando no queijo derretido. ― Mas é impressão minha ou eles mudaram a cor da tenda?
― Eles sempre mudam de acordo com os espetáculos... Ora, ora, veja só, vão voltar com aquele espetáculo.
Lentamente as vozes ficaram distantes.
Toda a alegria que o vocalista sentia por uma apresentação de sucesso fora substituída pelo tremor em cada músculo de seu corpo. Apertando os lábios, ele fitava aquela televisão acompanhando a enorme tenda ser erguida sob olhos curiosos da clientela.
“― Venha Leo! Podemos brincar lá perto do...”
A voz infantil da pessoa que segurava sua mão trouxera a nostalgia de volta. Até seus dedos ficaram vermelhos de quentura, como se naquele momento tivesse sido puxado por aquela pessoa. Tal lembrança era envolta de uma densa neblina e escuridão. Não se recordavam, porém, do local exato para onde iriam.
Mas sabia que era distante do circo.
E que era um lugar da qual nunca mais gostaria de voltar.
― Faz anos que não apresentam esse espetáculo. Ah, acho que vou assistir. ― Dizia o baterista com um sorriso nostálgico, logo virando-se para o vocalista. ― Né, Leo, gosta do circo?
O vocalista piscara algumas vezes para retornar a sua realidade. Baixando a cabeça para se situar no bar novamente, o rapaz abria um sorriso carismático no rosto.
― Costumava gostar quando moleque. Mas nunca mais fui em um.
― E se a gente fosse todos juntos?
O vocalista tornara a afagar os cabelos do garoto.
― Logo estaremos em semanas de provas. Faz favor de estudar direitinho hm?
― Você é terrível por me lembrar de um pesadelo desses.
O vocalista rira baixo e divertido, deixando de prestar atenção à televisão. Apenas bebera o resto do seu leite quente com mel para conversar com seus amigos. E quando o bar estava prestes a ser fechado, a banda finalmente pode apreciar um baita hambúrguer feito pela Dona Berta.
Mais tarde, já passando das três da manhã, o vocalista dirigira o carro deixando cada integrante da banda em sua casa. Sendo o último, ele fora para a kitnet que alugava sem deixar de pensar na matéria do jornal.
Quando entrara no pequeno apartamento deixando as chaves jogadas na bancada da cozinha, o vocalista se jogara na cama fechando os olhos.
― Eles vão voltar... Bom, eu não tenho nada a ver com isso mais.
― Fala sério que dor de cabeça dos infernos!
― Shhhh, minha cabeça está explodindo...
O vocalista observava os dois amigos, baixista e guitarrista da banda, reclamarem com pesar. Também estava com dores de cabeça, apesar de a sua advir de mais uma noite mal dormida. Balançando a cabeça em negação, o rapaz deixava sobre a mesa de pedra circular uma sacola com duas marmitas bem fechadinhas.
Os rapazes ergueram os olhos pedintes, ousando fazerem bico com os lábios.
― É sopinha?
― De mandioca com carne. Comam enquanto tá quente. ― Dizia o vocalista sorrindo de canto para os amigos.
― Você é um anjo, Leo!
― Vão à merda antes que eu me esqueça. Estão me devendo vinte reais com essa ressaca de vocês.
Os dois rapazes nem se importavam com as reclamações do vocalista. O cheiro delicioso da sopa pastosa abrira o apetite enjoado deles, que logo começaram a comer.
Naquele horário do almoço o movimento na universidade parecia aumentar gradualmente. Todo o falatório dos estudantes faziam a dor de cabeça dos meninos aumentarem, mas ainda assim era melhor do que ficar dentro do prédio, onde o eco judiaria mais deles.
― Pronto, enchi as garrafinhas de vocês. ― Avisava o baterista carregando duas garrafas térmicas, também as deixando sobre a mesa de pedra.
― Valeu, caçulinha. ― Sussurrava o guitarrista, fazendo careta ao menor movimento da cabeça. ― Ah que merda, me lembre de nunca mais beber.
― Sempre fala isso e sempre enche a cara quando fica animado. ― Avisava o vocalista, se divertindo com a ressaca dos amigos.
― Hehehe, vou lembrar disso. Aliás... Algum de vocês tinha marcado de estudar com alguém?
Os três rapazes entreolhavam-se e então negaram com a cabeça.
― Não que eu me lembre. Por quê?
O baterista olhara sobre o ombro, parecendo preocupado.
― Aquele cara tem nos encarado desde que chegamos, e tá segurando uma pasta.
Virando-se na direção observada pelo integrante mais jovem, os três rapazes percebiam a pessoa mencionada. Parecia ter a mesma idade que eles, pouco mais de vinte anos, e belo com seus cabelos loiros como o raio de sol.
Usando um sobretudo preto que parecia ter saído de algum livro velho, a figura desconhecida percebera o olhar dos rapazes e fizera uma mensura sutil com a cabeça. Um tanto quanto estranho a postura ereta e a atenção direta que o sujeito dedicava ao quarteto.
Era a mescla do elegante e do medonho, resultando naquele sujeito e sua presença.
― Que merda é essa?
― Será que finalmente teremos o nosso primeiro fã maluco?
Suspirando baixo, o vocalista deixava as mãos no bolso tentando esquentar os dígitos que ficaram subitamente gelados.
― Relaxa, é um conhecido meu.
Os três integrantes da banda viraram-se surpresos para o vocalista.
― Tu gosta de cosplayers agora? Que merda é essa?
― Tá bêbado ainda por acaso? ― Reclamava o vocalista ao se levantar do banco de pedra. ― O sujeito trabalha com o meu velho. Provavelmente veio me ver.
― Teu velho? Pensei que tinha cortado laços há anos.
O vocalista espreitara os olhos sobre o sujeito que estava alguns metros de distância.
― Pois é, eu também pensava. ― O sussurro não fora escutado pelos dois rapazes de ressaca, que voltaram para sua sopa. ― Vão indo na frente, e fiquem melhor logo que hoje à tarde temos um trabalho e eu não to afim de fazer a parte de vocês.
― Leozinho, querido, já te mandei tomar naquele lugar hoje?
Virando a cabeça sobre o ombro, o vocalista abria um sorriso afável apesar das espinhosas palavras.
― Estou te esperando para irmos juntos tomar naquele lugar, Rafinha.
― Ah, até mandando a gente tomar no cu ele fica bonitão. Que inveja. ― Murmurava o outro cabisbaixo.
Ignorando os resmungos dos amigos, o vocalista caminhara em direção do sujeito que permanecera parado como um boneco de cera. Na medida em que a distância era encurtada, mais o vocalista sentia aquela sensação estranha tomar seu corpo. O frio na barriga, o desejo de ir embora para longe.
Quanto mais aquele sujeito lhe dirigia um sorriso, maior era sua vontade de fingir não tê-lo visto.
E quando finalmente o alcançara, o vocalista ouvira aquela voz suave e formal lhe cumprimentar.
― Jovem mestre, peço que possa me ouvir nesse momento. Poderia me acompanhar até a cafeteria?
Sem dizer uma palavra se quer, o vocalista continuara a caminhar em direção da cafeteria mais próxima do campus. Sabendo estar sendo seguido pelo sujeito, o rapaz tentava afastar aquelas sensações.
Havia ignorado aquelas pessoas por mais de dez anos. Cortara qualquer relação que poderiam ter com eles. Tudo para ter uma vida meramente feliz, mantendo suas lembranças mais dolorosas presas no inconsciente.
Deveria ter considerado aquela matéria do jornal como um aviso. Poderia ter pego seu carro e matado aula para ficar no litoral até a poeira baixar. Como fizera da outra vez.
Entrando na cafeteria vazia, o vocalista sentou-se em uma mesa afastada tendo o sujeito elegante se sentando na sua frente. Deixando a pasta sobre a mesa, o loiro ainda sorria cordialmente para o rapaz.
― Fico tão feliz em finalmente contatá-lo, jovem mestre Leonardo. Já estava imaginando que fugiria para a praia mais uma vez.
O rapaz arqueava a sobrancelha em notar que sua tentativa de fuga fora descoberta. Mais surpreendente ainda era saber que aquele sujeito não fora atrás dele mesmo sabendo onde estaria se escondendo.
― O que quer, Vicente?
― Devo cumprir com o meu dever, e lhe apresentar o testamento de seu pai.
Deveria acabar com aquele assunto de uma vez por todas? Seria melhor do que continuar a fugir daquele sujeito medonho.
Puxando o envelope amarelado, Leonardo retirara alguns documentos dele. O testamento de seu pai não era de seu conhecimento, assim como qualquer outra informação a seu respeito dos últimos anos desde que saíra de casa.
Nada era do seu interesse.
Não queria se envolver com mais nada.
Porém, ao ler as linhas digitadas, os olhos castanhos de Leonardo se arregalavam ao ponto de pular da cadeira e encarar o sujeito à sua frente.
― O que é isso?
― O testamento de seu pai. ― Respondia o loiro pacientemente.
― Estou perguntando que merda é essa que tá escrito aqui! ― Gritava o rapaz deixando as folhas sobre a mesa.
O sujeito apoiara os cotovelos sobre a mesa, engolindo em seco sem esforçar-se a sorrir. Erguera os olhos de âmbar para o moreno, mostrando-lhe a seriedade do assunto.
― Jovem Mestre, sempre foi desejo de seu pai que herdasse o...
― Não, eu não vou. ― Respondera categoricamente. ― Eu disse que nunca mais pisaria naquele lugar, e estava sendo sério. Venda pra alguém, faça o que quiser, isso não tem nada a ver comigo.
― Mestre Evilian tinha um sócio, de fato, mas ele falecera quando o jovem mestre ainda era de colo. ― Dizia o rapaz loiro, tirando um par de óculos do bolso de seu sobretudo ― O Mestre Douglas tem um filho que trabalha conosco atualmente, mas ele não poderá herdar o imóvel.
― Por que não?
O sujeito loiro batera a ponta do indicador sobre o papel, tendo Leonardo suspirando derrotado ao terminar de ler o documento. Se antes o sobressalto fora devido a sua herança, agora seu terror advinha do trato decidido por seu finado pai.
― Casamento? ― Virando-se para o sujeito que apoiava o queixo sobre a palma da mão sorrindo docemente para si, o rapaz fazia careta. ― Nem ferrando. Não vou me casar só pra passar aquele lugar pra uma mulher que nem conheço.
― Um homem, jovem mestre. A pessoa do trato é um rapaz.
Piscando aturdido, Leonardo se recostara na cadeira.
― Eu não sou gay!
― Com todo o respeito, não está dito que precisa consumar o casamento. ― Dizia o outro, parecendo se divertir com a frustração do outro.
― Não vou me casar.
― Então herdará o imóvel?
―Nem herdar aquele lugar. ― Rosnava Leonardo.
Suspirando derrotado, fora a vez do loiro em se recostar na cadeira. Entrelaçando os dedos sobre os joelhos, ele ponderou silenciosamente sem desgrudar os âmbar de Leonardo. Segundos depois de mudo, ele meneava a cabeça.
― Venha assistir um espetáculo, jovem mestre.
― Não. ― Respondera categoricamente.
― Permita-me a franqueza, jovem mestre. ― Dissera Vicente, olhando o rapaz por cima dos óculos. A aura em sua volta mudara, toda a cordialidade fora substituída por uma frieza que dispensava comparações. Leonardo chegara a encolher os ombros e a engolir seco quando tivera os âmbar presos em si. ― Já está na hora de parar de agir feito um moleque, e assumir os compromissos. Você saiu de casa e soube se virar muito bem até agora, mas seu pai morrera e deixou um parque em seu nome. Se quiser abrir mão de sua parte, então terá de vir hoje à noite, se reunir com representantes de cada parte do parque e fazer uma declaração.
― Você está correndo atrás desse moleque pra herdar aquele lugar.
Tornando a apoiar os braços na mesa, inclinando-se ameaçadoramente na direção de Leonardo, o loiro não rompera o contato visual.
― Se quer me provar que é adulto o suficiente, estarei à sua espera na frente da tenda. E então, resolveremos isso de uma vez por todas.
Vicente não havia mudado em nada com os anos. Bem, em questão de personalidade, é claro.
Sempre elegante e formal, sendo responsável por seu trabalho o fazendo impecavelmente. Mas quando se tratava de brigar com alguém, bastava mirar aquele âmbar em sua direção e engrossar a voz que a aura fria se fazia presente.
Quantas vezes levara bronca dele ao longo dos anos? Mesmo quando saíra de casa, Vicente era o único que o procurava para desejar feliz aniversário ou apenas espioná-lo em nome de seu pai, o que ocorria uma à três vezes por ano.
O conhecia o suficiente para saber que não haveria outra forma de fugir daquela situação. Vicente realmente iria esperá-lo na frente da tenda, e o ajudaria a encerrar o assunto. O problema era sempre que com Vicente as coisas tinham que ser resolvidas por lá.
Nunca em outro lugar.
― Nos vemos hoje à noite. Não precisa faltar às suas aulas noturnas, se conseguir chegar ao fim do espetáculos é o suficiente.
Observando aquele sujeito ir embora da cafeteria, deixando para trás aquele envelope, Leonardo tinha a certeza de uma coisa.
Aquele maldito tinha verificado até sua grade curricular para encurralá-lo. Deveria temer o que mais ele poderia saber sobre a sua vida tão medíocre.
A vida de um universitário gira em torno de tentar salvar seu tempo livre das pilhas e pilhas de trabalhos e projetos que caem em seu colo, caso opte por deixar tudo na última hora. Leonardo evitava tal caminho o máximo que pudesse, mesmo tentando conciliar o trabalho de meio período em uma oficina mecânica.
Seria por tal hábito regular que ele e alguns de seus amigos poderiam passar a tarde toda apenas dando os últimos toques de uma apresentação de trabalho, logo após o almoço. E faltando duas horas para o começo da aula noturna, a roda de amigos poderia jogar conversa fora no estacionamento do campus.
― Vai lá bonitão, mostra o que sabe fazer!
― Sem pressão, não sou profissional.
Leonardo subia em cima do skate de seu amigo e pegava impulso para deslizar no asfalto do estacionamento. Fora longe para dar a volta com mais velocidade, conseguindo pular no meio fio em uma manobra pequena. Ainda assim ouvira os gritos impressionados de seus amigos ao passar por eles. Notando ser filmado por um celular, erguera dois dedos fazendo um “v” e uma piscadinha antes de descer do skate.
― Exibido ele.
― Fico impressionada com vocês conseguindo ficar em pé nesse trem.
A garota de cabelos claros ora olhava o skate ora para Leonardo, tendo um sutil rubor nas bochechas. O rapaz empurrara o skate até os pés da garota e lhe estendera a mão em um convite.
― Questão de prática, quer tentar?
Ela abrira um sorriso largo, que fora contido à tempo, assentindo diversas vezes antes de segurar a mão de Leonardo e subir no skate. O equilíbrio era fácil de ser mantido enquanto o skate estava parado e alguém a segurava. Por isso o rapaz ia de um lado a outro fazendo o skate andar, sem deixar de segurar a garota.
― Oh, descolei alguns ingressos naquele parque fora da cidade. Tão afim de ir?
Imediatamente a mente de Leonardo ficara branca e o seu sorriso congelara. Mesmo mantendo sua atenção em ajudar a garota a manter o equilíbrio no skate, dentro de sua cabeça uma erupção de sensações nada agradáveis tomavam o poder de seus neurônios.
― Não sabia que você curtia uma coisa dessas.
― Uns amigos do prédio de direito falaram que é daora. Tava pensando em ir nesse final de semana. Mas é paia ir sozinho.
― Quantos ingressos tu descolou?
Um sorriso enorme brotava no rosto do universitário.
― Consegui três. ― Uma onda de resmungos alargou o sorriso do sujeito ― Qual é, essa porra é cara!
― É claro que é caro, aquele lugar é sempre entupido de gente. E tão sempre falando dele na tevê. Na época do ginásio...
Leonardo deixara de acompanhar a conversa.
“― Leo, vamos lá ver a marionete. Ele é real”.
A neblina, a escuridão, o frio e o pavor. Eram memórias que enraizavam na mente de Leonardo sempre que aquele lugar era meramente mencionado. Chegara a ter pesadelos naquela noite, revivendo o terror do sorriso diabólico de um sujeito escondido nas sombras, mesmo tendo sangue respingando em si.
Preferia dizer que tivera aquele sonho estranho devido ao seu cansaço de revisar suas anotações a semana toda tarde da noite. Bem... Menos a noite passada. Geralmente não negligenciava seus estudos, mas aquela noite havia sido péssima para ele. Não apenas para cantar com sua banda em um bar, mas por causa da visita inesperada que recebera naquela manhã.
Vicente.
Quando ainda era moleque, Vicente já trabalhava com seu pai mesmo tendo sua idade aproximadamente. Sempre segurando papéis e sorrindo gentilmente o tratando como se fosse da realeza. Sempre cumprindo os seus deveres com perfeição ao ponto de arrancar elogios de seu pai.
Trabalhando como seu braço direito.
Fora Vicente quem o procurou quando seu pai fora hospitalizado por ter tido um acidente vascular repentino. Tentara de todas as formas possíveis levar Leonardo para o hospital, mas o moreno somente ia em horários noturnos das quais sabia que ninguém estaria por perto.
Em suas visitas noturnas, Leonardo não ficava mais que meia hora no quarto de seu pai. Apenas mantinha-se sentado na cadeira o observando silenciosamente, percebendo os sinais de velhice e cansaço. A barba por fazer já tinha alguns fios brancos, assim como seus cabelos pareciam ter ficado acinzentados.
Quando ele tinha envelhecido daquela maneira?
A vez seguinte da qual vira Vicente, foi para anunciar a morte de seu pai. Três meses atrás. Fora o dito cujo quem cuidou de todo o enterro apesar de Leonardo não comparecer.
Mas sabia que naquela tarde o céu estava nublado e uma chuva intensa caía. Um clima digno de enterro.
E agora via Vicente mais uma vez.
Chegava a ser risório que as visitas daquele assistente maluco pareciam trazer problemas para Leonardo.
O suor frio começava a deixá-lo nervoso. A garota notara a frieza nas mãos do universitário, erguendo os olhos preocupada para ele. Tentando inclinar-se para olhar melhor seu rosto, a garota perdia o equilíbrio caindo para frente. Para a sua sorte Leonardo acordara de seu devaneio a tempo de segurá-la em seus braços.
― Isso foi perigoso, está bem?
O rubor tomara as bochechas da menina quando ela notara estar de cara com o peito do rapaz, e ainda de estar de segurando firmemente em seus braços. Afastando-se rapidamente, ela abria um sorriso nervoso.
― Estou sim, é realmente difícil ficar em pé nesse trem.
― Ainda bem que a segurei, nesse caso.
Um pigarrear chamara a atenção dos dois, tendo Rafael apontando com a cabeça para o amigo que havia comprado os ingressos e dono do skate. Leonardo percebia que o sujeitinho não o encarava, mas sim à menina. Logo compreendia.
Havia comprado os ingressos pra convidar a menina.
Antes que dissesse alguma coisa, uma garota de cabelos escuros aparecera em uma corrida, ela se segurou nos ombros de Rafael o encarando horrorizada.
― Me diga que o almoxarifado ainda está aberto!
― Ele tá, mas a fila tá gigante.
― Quando iremos nos apresentar?
― Por último.
― Vazei, então. To indo imprimir nosso trabalho.
Nem dera tempo de recuperar o fôlego e a pobre garota já saíra em disparada em direção do almoxarifado. O pequeno grupo começara a rir do desespero dela, o que já era costumeiro dado que ela sempre se atrasava por conta do trabalho.
― Caralho que frio do cão! ― Resmungava Rafael, encolhendo-se no casaco.
Inclinando a cabeça para observar o céu ainda claro, Leonardo suspirava. Depois da aula tinha que ir para aquele lugar...
― Oh Leo, vamos lá catar algo pra comer. To morrendo de fome.
Antes de ir, Leonardo fora até o dono do skate e o empurrara em direção da garota. Sorrindo largamente para aqueles dois, ele dera uma piscadinha.
― Você manja bem mais do que eu, deve ensinar direitinho. Nos vemos na sala!
Sem olhar para trás, os dois amigos chegaram à lanchonete comprar salgados. Leonardo fora o único que apreciou lentamente o seu lanche, tendo de lutar bravamente para que nenhum pedaço fosse mordido por seu amigo esfomeado.
Matando um pouco do tempo antes de entrarem na sala, Rafael bebia o café quente sem desviar o olhar de seu amigo.
― Hoje você parece estar com a cabeça nas nuvens. Aconteceu alguma coisa?
Leonardo mordia o salgado e negava com a cabeça.
― Nada demais.
― Te conheço desde a escola. Eu sei quando está preocupado com algo. Fala ae.
Afastando o guardanapo do lanche, podendo mordê-lo novamente, Leonardo não encarava o seu amigo. Ainda que estivesse de boca cheia, ele sorria por ter alguém que o conhecia tão bem sem precisar dizer algo.
― Resolver uns problemas do meu velho. Só isso.
Recebendo um aperto em seu ombro, Leonardo sentia o calor de um conforto amigável. Sem tocar mais no assunto, os dois continuaram ali escondidos até que desse a hora de entrarem no prédio e irem para a sala de aula.
Quando entraram, se alojaram no fundo da sala onde o grupo de amigos já estava reunido. Conversavam sobre o trabalho, verificando a parte que cada um falaria e o slides que foram montados. Tão breve a professora entrava na sala dando início às aulas e às apresentações.
― Já que hoje vai ser só apresentação de trabalho, tão a fim de sair pra algum lugar depois? ― Sussurrava um colega para o grupo.
― Seria daora... Onde querem ir?
― Beber?
― Tô de ressaca ainda. ― Reclamava Rafael em uma careta ― Mas topo da gente ir na praça perder tempo lá. O que acham? Tu vai Leo?
Leonardo mantinha o olhar perdido sobre a chave do carro que segurara. Havia tirado do seu bolso sem perceber, quando o assunto fora tocado. Ele estaria o esperando na frente da tenda.
Não queria ir.
Mas seria melhor por um fim naquela história.
Respirando fundo, erguera a cabeça percebendo os diversos pares de olhos curiosos o fitando atentamente.
― O quê?
― Perguntei se vai com a gente pra praça depois da aula.
― Não. ― Respondera, apesar da pouca convicção. Leonardo voltara a encarar a chave do carro, a guardando no bolso ― Tenho um compromisso depois, não vai rolar.
Os demais garotos do grupo viraram-se para discutir o que fariam depois da aula, tendo apenas Rafael a encarar o amigo. Deixando alguns tapinhas em suas costas, dirigiu-lhe um sorriso sutil antes de entrar na conversa dos demais.
Uma hora e meia depois a aula começava com o professor chamando as equipes para apresentarem seus trabalhos. Para a sorte de um certo rapaz ansioso e fujão, sua equipe ficara por último nas apresentações. E por ter feito muito bem o seu trabalho, preparando uma dinâmica com sua classe para garantir mais pontos do professor, o grupo levara ainda mais tempo de apresentação.
A aula que deveria encerrar por volta das nove da noite encerrava uma hora e quarenta minutos depois. Graças ao excelente trabalho que fizera toda a classe participar ativamente da dinâmica.
Pouco a pouco a sala de aula ficava vazia e Leonardo voltara a segurar as chaves do carro indo ao estacionamento. Seu Chevette preto estava perto do prédio da biblioteca, aguardando friamente por sua chegada. Sentando no banco do motorista, Leonardo reclamava do frio pegando o celular para colocar no GPS o endereço daquele lugar.
Não precisou de muito esforço para encontrar a foto do parque no Google. A rota fora criada em segundos, mostrando que vários usuários pesquisavam por aquele lugar.
Tão diferente de anos atrás.
Mais uma vez queria fugir.
Queria ir para o seu apartamento dormir até dizer chega. O nervosismo subia por seu estômago o fazendo apertar o volante em suas mãos. De maneira alguma queria ir aquele lugar. Principalmente naquele frio.
Mas se não fosse, Vicente o buscaria novamente na faculdade. Provavelmente teria um sermão longo para lhe dar. E ainda jogaria na sua cara que agia feito um moleque mimado.
― Ah... Vamos logo.
Ligando o motor para se enfiar na longa fila de carros, Leonardo criava coragem para seguir o caminho para aquele lugar.
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