...“Após despertar seu Poder Espiritual, sua vida conjugal e social mudaram.”...
Caminhava silencioso pelo corredor principal.
Ao fim das aulas da universidade LC, Miguel Luz portando um caderno e dois livros em mãos caminhava rumo ao seu armário, quando teve, bruscamente, seu mais valioso livro tomado por um valentão rodeado de companheiros.
— Quer ele de volta, hein? — gargalhou o valentão, folheando o velho livro. — Então, peça, mas pedindo por favor.
Riram também os companheiros, cientes de que Miguel não pronunciaria palavra alguma, pois este era mudo e, tendo razão ou não, a maioria das pessoas se incomodavam com o silêncio dele, que atraia as atenções e diversos julgamentos.
Julgavam-no também pela forma simples com a qual se vestia e, por não esboçar expressão alguma, tampouco se importar com o que pensavam os outros de si, sua imagem perante aos olhos da maioria tornava-se ainda mais desprezível.
— Como pode ser tão retardado!? — irritou-se o valentão com o silêncio dele e, após rasgar uma página, atirou o livro contra o dono. — Aqui não é lugar pra você, plebeu...
O objeto atingiu o alvo e caiu no chão. Miguel agachou-se para pegá-lo, mas o valentão adiantou-se e pisoteou o livro de tal forma cruel que o coração de Miguel ardeu subitamente.
Miguel segurou a perna do ofensor, numa reação impensada. O desejo de reagir ao prejuízo lhe fez direcionar mais força as mãos, porém, repentinas memórias o impediram de prosseguir, pois, relembraram-no de algo muito importante.
— Solte a minha perna! — gritou o ofensor.
“Se reagir não terá energia suficiente para despertá-lo”, relembrou Miguel a voz do mestre em pensamentos. "Aguente firme, falta muito pouco para..."
Miguel levou um súbito chute no rosto, largou a perna do agressor e, caindo para trás, cuspiu sangue no ar. Sua camisa branca sob o casaco desabotoado manchou com o encarnado líquido, que também passou a escorrer de seu nariz.
— Parem com isso, seus idiotas! — interpôs-se Eloísa Sousa, esposa da vítima. — Deixem-no em paz.
— E se não quisermos? — segurou o valentão o pulso dela.
Aproximando-se além do limite, encarou-a com um sorriso cheio de más intenções, sussurrando com galanteio:
— Como pôde uma mulher tão linda e cheirosa se casar com esse trapo de gente inútil?
— Isso não é problema seu.
Tocou ele o seio proeminente dela e, em troca, levou uma dolorida bofetada na lateral do rosto.
— Me solta! — livrou-se dele e, recuando, puxou Miguel pela gola do casaco. — Vamos embora!
Como de costume, Miguel conduziu o carro do sogro até a bela e enorme casa da família Sousa, onde passou a viver desde que se tornou marido e servo de Eloísa, que a transportava como se, na verdade, fosse o mordomo particular dela.
— Poderia ao menos ter me defendido — disse Eloísa, ressaltando o abuso do valentão. — Por que não reagiu? — quis ela saber.
Mas Miguel permaneceu em seu constante silêncio enquanto manobrava o veículo em direção à garagem do destino alcançado.
— Olha o que estou dizendo — bufou, irritada. — É óbvio que você não consegue proteger nem a si mesmo.
Em seguida, saíram do veículo e, por cima do carro, Eloísa o olhou com desdém, ordenando:
— Vá limpar seu rosto e trocar essa sua camisa, não quero que os meus pais vejam isso, para que não deem ainda mais razão ao péssimo marido que és.
Miguel seguiu rumo ao quarto de casal, situado no andar superior da casa.
Enquanto subia as escadas, Taise Sousa, a irmã mais nova de Eloísa, descia com uma caixa média em mãos. De propósito, esbarrou-se nele e deixou a caixa cair, a qual rolou sobre os degraus e lá em baixo espalhou os discos musicais.
— Olha por onde anda, idiota!
Cumprindo o pedido em tom de ordem de Taise, Miguel regressou à subida e, de um em um, recolheu os objetos derrubados.
— Mais rápido!
Quando terminou, ouviu a voz da senhora Sousa lançando resmungos de um lado a outro sobre a poda não realizada no jardim da casa. Ela chegou à sala e o avistou erguendo a caixa do chão.
— Ah! Olha quem já voltou, se não é o meu genro. Não esqueça que tem muito trabalho ainda pra ser feito no jardim.
Taise não deu atenção ao sangue que vira nele, mas a senhora Sousa não só ressaltou as manchas vermelhas e o rosto avermelhado dele, como também deu voz a própria razão.
— Tem muita sorte, meu rapaz, se não fosse pela minha filha, sabe-se lá o que já teriam feito com você.
Adveio, porém, na mente dela uma imagem d'ele sendo agredido até à inconsciência eterna. Era disso para pior o mal que ela o desejava em pensamentos, fora o divórcio deles, casados somente há um ano.
Por fim, Miguel adentrou o quarto que compartilhava com a esposa, encostou a porta e então retirou não só a camisa manchada, mas as demais peças de roupa também.
Desligou a luz e sentou-se no chão em posição de meditação, fechou os olhos e, como se estivesse a sofrer constantes choques, começou a tremer o corpo à proporção que regulava a respiração e reprimia as duras ofensas e as demasiadas ordens diárias rememoradas.
Tudo isso, no entanto, fazia parte do desenvolvimento de uma poderosa energia, que restava muito pouco tempo para ser obtida por completa.
Nesse mesmo período, Taise subiu as escadas com a caixa de discos em mãos e, ao passar em frente a porta do quarto da irmã, notou uma estranha luz azulada que saía pela brecha da porta encostada.
“O que é isso?” indagou-se, curiosa, empurrando a porta.
Um ano se passou, mas o rosto de Taise sempre ficava com as bochechas avermelhadas ao ver o cunhado, pois na mesma hora que o via, relembrava o dia em que o viu pelado.
Se já não lhe fosse vergonha demais isso acontecer consigo toda vez que o via, Taise sentia-se também chateada ao sair da universidade LC e o avistar lhe aguardando diante do carro da família.
— Não saia do carro, idiota! — reclamava Taise toda vez, lançando a própria mochila sobre ele. — Entre logo no carro antes que os meus amigos o vejam.
No entanto, ao longe, um grupo de alunos repetentes ao avistar Miguel, indagaram-se em vozes elevadas:
— Aquele não é o mudinho que estudava aqui há um ano?
— É ele mesmo!
— Vamos lá então cumprimentá-lo como sempre fazíamos!
O antigo valentão também estava entre os membros desse grupo, pois ele foi um dos alunos que não conseguiram ser aprovados nas matérias finais. Contudo, Taise apressou Miguel a pôr o carro em movimento.
Partiram então da universidade LC antes que o grupo dos antigos ofensores de Miguel alcançassem o veículo.
Durante a viagem, Taise pôs-se a desabafar o próprio aborrecimento.
— Não venha mais me buscar — disse ela, cruzando as pernas seminuas. — Espero que hoje tenha sido a última vez disso.
Taise trajava uma curta saia e uma blusa de gola com laço na base, brincos de angolas e uma pulseira de múltiplas angolas.
— Pois prefiro andar a pé até em casa do que ser envergonhada por você na frente de toda a universidade LC. — Ela virou o rosto na direção da janela ao lado e, vendo-se refletir no vidro, bufou e soltou mais desabafos. — Eu queria muito entender o porquê a minha irmã se casou contigo. Com tantos homens no mundo, foi escolher logo um mudo.
Miguel permaneceu calado. Sua garganta não fez força alguma, tampouco coçou com desejo de dizer algo. Continuava, pois, com a mesma mudez, mas para controlar os impulsos de reação que lhe afligiam o corpo de dentro para fora, ele teve de concentrar toda a sua força nas próprias mãos, pressionando ainda mais o volante, com tanta intensidade que, ao avistar um buraco na estrada, fez o carro desviar rapidamente, ocasionando com que Taise batesse o rosto sobre o vidro da janela e quase quebrasse o fino nariz.
— Cuidado, idiota! Se não sabe dirigir, não dirija!
Um pouco de sangue escorreu do nariz dela. Apesar do sangramento, quis ela continuar com as reclamações, mas teve de interrompê-las, pois Miguel fez o carro balançar ainda mais, indo de um lado a outro e aumentando a velocidade.
— O que está fazendo? — questionou Taise, tendo dificuldade em manter a cabeça erguida para que o sangramento cessasse. — Pare de fazer isso!
Só quando veio a cair de lado sobre os bancos e erguer os olhos próximo da janela entreaberta, Taise notou haver um carro ao lado tentando retirá-los da rodovia.
Era o veículo do antigo valentão cheio de companheiros que compartilhavam do mesmo desejo maligno. Ouvia-se do carro dele soar um bando de vozes sem sincronia, um ruído cheio de ofensas, que Miguel ignorou, com exceção da voz do próprio valentão, desafiando-o:
— Quem passar primeiro pelo próximo túnel vence, e o carro do perdedor deverá ser destruído. O que me diz? — questionou, gargalhando bastante. — Desculpa, esqueci que você é mudo.
Apesar do sarcasmo, Miguel acenou com a cabeça a aceitação do desafio. Assim que os companheiros do valentão puseram avista bastões de ferro, Taise exclamou:
— Ficou maluco, idiota! Se eles vencerem, vão destruir o carro predileto do meu pai!
Miguel manteve-se firme e confiante no desafio. Aos poucos ele já não parecia mais o mesmo homem mudo sem reação. Olhou brevemente o relógio de pulso e, relembrando outras palavras do mestre, pisou fundo no acelerador.
“Você tem um espírito muito forte, meu aprendiz. Todavia, quando despertar de vez o seu poder interno, não esqueça quem deve sempre estar no controle.”
E assim, deram início a uma louca corrida, em um trânsito razoavelmente movimentado. Ambos os carros se deslocavam de uma faixa a outra da rodovia, ora na mão certa, ora na contramão.
Miguel fez uma ultrapassagem tão arriscada que Taise sentiu o próprio coração dobrar o tamanho de seu seio acentuado. Além disso, ela quase desmaiou, pois, a adrenalina foi tanta que ela ficou tonta e, por isso, perdeu a noção de tudo por um instante ao ponto de, ao passarem pelo mencionado túnel, não saber dizer quem havia vencido.
O valentão parou o carro no acostamento logo à frente do veículo desafiado. Miguel permaneceu sentado ao volante, e Taise, sentada nos bancos detrás, retomou a boa consciência, ao passo que se assustou com a quantidade de homens que saíram do carro à frente, com um bastão de ferro cada.
— Eles tão vindo pra cá… Vão destruir o carro do meu pai!
Miguel balançou a cabeça em sinal de negação a ela e, encostando o dedo indicador no para-brisa, apontou o veículo perdedor, que, ao sinal de Miguel, começou a ser destruído pelos próprios colegas do valentão chorando aos milhares de “Nãos”.
Contudo, desafio era desafio para os portadores dos bastões cumprindo o que foi combinado entre os desafiantes.
Vencida a corrida, Miguel retomou o veículo a rodovia em destino a casa da família Sousa, uma residência de um amplo jardim, que um dia fora muito verdejante, mas dia após dia mais rosas murchavam e mais folhas das árvores podadas perdiam sua clorofila, tornando-se amarelecidas ou alaranjadas antes mesmo da chegada do outono.
Na sala de entrada da casa da família Sousa, a senhora Elena Sousa, mãe de Eloísa e Taise, conversava com Teodoro Barros, amigo de infância de Eloísa.
— Por onde esteve, Teodor?
— A senhora ainda me chama por esse nome — riu Teodoro.
— Não posso mais? — abriu um sorriso também. — Lembro muito bem das vezes que você vinha até aqui para levar a minha primogênita pra passear.
— Bons tempos aqueles — suspirou Teodoro, rememorando as boas lembranças. — Se eu não tivesse viajado para fora do país a estudo, talvez…
— Estivessem casados — adiantou-se em dizê-lo, com vontade.
Teodoro abriu um largo sorriso em acordo. Tanto que já lhe batia o desejo de rever a muito querida amiga de infância, mas desde que chegara a casa da família dela, não a viu em lugar algum.
— Atualmente ela está trabalhando na Beleza dos Anjos, uma grande empresa de cosméticos da nossa cidade, reconhecida nacionalmente por seus produtos de alta qualidade.
— Nossa! A Eloísa evoluiu muito desde que eu fui estudar no exterior.
— A minha filha sempre foi muito esperta na vida, com exceção do amor.
A senhora Sousa contou detalhe por detalhe do relacionamento da filha com o mudo Miguel, permitindo-se derramar também sobre a mesa do chá a repulsa que sentia pelo casamento da primogênita.
— Não foi e não está sendo fácil aceitar esse matrimônio. Eu preferiria mil vezes vê-la casada com um homem do seu porte. — Teodoro sentiu-se lisonjeado pelos elogios dela. — Mas, apesar de tudo que te contei, Teodor, esse meu genro sabe ser um bom servo.
— E onde ele está agora, senhora Sousa?
— Foi buscar a Taise na escola.
Nesse exato momento, Taise chegou seguida por Miguel, cabisbaixo, portando a mochila dela.
— Por falar no diabo — murmurou a senhora —, veja só quem chegou — pôs a xícara de chá sobre a pequena mesa entre a cadeira dela e a do visitante e, acenando, chamou os recém-chegados. — Taise, querida, venha cumprimentar a visita... você também, Miguel — chamou-o com certa rispidez.
Taise, porém, teve de puxar Miguel pelo braço, pois, parado, olhando fixamente o relógio de pulso, ele não teria dado mais nenhum passo pela própria vontade até ficar diante do visitante de rosto angular e bem trajado com termo e gravata, que se levantou do assento para cumprimentar exclusivamente a irmã da mulher por quem nunca deixou de sentir o coração bater mais forte.
Miguel permaneceu cabisbaixo diante dele, pois o mostrador do relógio lhe interessava muito mais que o rosto vaidoso de Teodoro, que, sentindo-se desrespeitado, segurou os ombros de Miguel e o balançou com força, vozeando:
— Quem você pensa que é para me ignorar dessa forma!?
— Miguel Luz! — repreendeu num grito breve e agudo a senhora Sousa —, seja educado com o amigo da minha filha.
— Não se preocupe, senhora — disse Teodoro, aproximando seu rosto ao ouvido de Miguel. — Saiba que isso não me ofende em nada, mudinho — ressaltou em sussurros. — Aliás, o que acha de eu lhe fazer uma proposta irrecusável?
Miguel continuava sem esboçar expressões, porém, seus olhos começaram a brilhar. Lágrimas involuntárias se acumularam nas extremidades de seus olhos e sua respiração tornou-se agitada.
— Cem mil é a minha oferta para que suma eternamente da vida de Eloísa, combinado?
Teodoro estendeu a mão diante dele de modo a selar o acordo, mas Miguel permaneceu imóvel, sentindo o corpo tremer e esquentar em simultâneo, como uma panela de pressão sem válvula de escape e ao limite de explodir.
— Não me ignore, seu mudo insolente!
Teodoro deu-lhe um leve soco no estômago, não esperando que fosse haver uma reação imediata.
Miguel limpou as lágrimas dos olhos com o dorso da mão direita enquanto, gritando:
— Nenhum segundo a mais!
Atingiu um inesperado e tão intenso soco na região estomacal de Teodoro, que este devido ao impacto foi cair sobre a cadeira na qual passou horas sentado.
Miguel aproximou as mãos uma da outra, mantendo um vácuo entre as duas, fez surgir nesse espaço o núcleo da energia interior despertada: o tão difícil de ser obtido Poder Espiritual. Das mãos dele essa energia se expandiu e, propagando-se invisível aos olhos de Teodoro, de Taise e da senhora Sousa, Miguel acrescentou:
— Por que estão me olhando com essas caras feias? Por acaso veem o que estou produzindo com as minhas mãos?
Os três não viam nada entre as mãos dele, senão as mãos somente paradas no ar, não percebendo também que havia uma energia anil se expandido para o exterior da casa, para além daquelas paredes brancas, atingindo afora o jardim, onde as flores murchas foram revigoradas, os brotos brotaram, as folhas das árvores podadas readquiriram a cor esverdeada e tudo ali que havia de verde ganhou alguns centímetros a mais de tamanho, incluído a grama não aparada.
“Mestre, eu finalmente consegui”, pensou Miguel, batendo as mãos uma na outra e cessando o núcleo do Poder Espiritual produzido diante dos próprios olhos. “Já não preciso mais me privar da fala, então…”
Miguel alongou-se um pouco, fez uma massagem no próprio pescoço e pigarreou algumas vezes, testando a própria voz, com o objetivo de aquecê-la, pois tanto tempo ficou sem falar que acabou por sentir um pouco de dificuldade ao pronunciar as primeiras palavras.
— É tão bom poder falar novamente. Não sabem o quanto é atormentador ficar em silêncio e não poder agir ao que faziam comigo.
Espantados, os três, por sua vez, permaneciam em silêncio, deixando Miguel intrigado.
“Que estranho… agora que posso falar, parece que eles ficaram mudos.”
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