Meg Sanders
Ouço a sirene chegando, mas temo que já seja tarde. Tudo que respiro é fumaça. Depois de tanto tempo, faço aquilo que já não fazia há muitos anos.
Meu nome é Meg Sanders e vocês estão prestes a presenciar uma morte quente e horrível.
Duas horas antes.
— Tem certeza que vai ficar? — Liz pergunta pela segunda vez enquanto pinto uma tela.
— Vou sim. — confirmo e paro para olhá-la. — Sabe que tenho uma exposição importante daqui três semanas. É a primeira vez que vou expor e as telas...
— Têm que estar perfeitas. — ela me interrompe repetindo a frase que tenho falado durante dias e sorrio.
— Isso! Ainda está faltando três peças para a coleção e quero terminar o quanto antes. Não quero correr o risco de acontecer alguma coisa errada.
— Você que sabe... Tenta pelo menos não ficar até muito tarde. Não quero voltar aqui amanhã e vê-la dormindo no chão. — provoca e balanço a cabeça com sua preocupação.
— Sim senhora! Mas fique sabendo que o chão não é tão duro assim. — faço graça e vejo ela revirar os olhos.
Ela se aproxima beijando minha testa e sai me deixando sozinha. Liz se tornou minha melhor amiga quando me mudei para Seattle. Estudamos na mesma faculdade, só que na época ela fazia Jornalismo enquanto eu melhorava minha pintura, cursando Artes Plásticas. Ela estava pregando no quadro de aviso da faculdade, que tinha um quarto para alugar, eu aproveitei a vaga e fiz de tudo para o quarto ser meu, não que eu não tivesse um lugar para ficar, mas queria ser independente e sair da casa do meu pai.
Hoje em dia vejo que fiz bem, pois um ano depois, perdi meu pai em um acidente de carro. O impacto foi tão grande que ele morreu na hora. Liz foi comigo para confirmar que aquele homem em cima de uma maca, era meu pai. Foi doloroso. Passei uma semana trancada em meu quarto chorando por achar que estava sozinha, já que não conhecia minha mãe, a única coisa que sei dela foi que três dias depois de eu nascer, ela desapareceu e me largou com meu pai. Demorei a perceber que eu tinha uma irmã e ela estava o tempo todo do meu lado. Liz foi compreensiva e amorosa e quando ergui minha cabeça, ela veio junto comigo.
Se meu pai pudesse ver como eu estava, ele com certeza me deixaria de castigo.
"Eu não criei uma filha para ser um zumbi!" — isso era o que ele diria.
Tranquei a faculdade e fiz apenas um curso de pintura. Com o dinheiro guardado que eu tinha e com a herança de meu pai, aluguei um espaço em cima de uma loja de roupas femininas. A dona precisava do dinheiro e eu de um lugar para minhas telas. Liz como sempre me apoiou, e é graças a ela que tenho uma exposição de quadros em breve, ou melhor, graças ao irmão de uma amiga dela.
Semana que vem vou ver o dono da galeria mais renomada de Seattle, que conheci através da Liz, como o irresistível e idiota Noah Peterson. Liz tem uma rixa com o rapaz e para mim isso é amor, mas ela odeia que eu fale isso. Levarei algumas das minhas telas para ele dar uma olhada e ter uma noção de onde elas possam ficar no dia do evento.
Minhas pinturas acabam sendo aquilo que sinto ou vejo. Quando algo me chama atenção eu pinto, e tento expressar a emoção do momento, seja das mãos dadas de um casal de idosos, até a boca suja entre namorados raivosos.
Neste momento estou pintando uma mulher nas sombras, sozinha e esquecida pelo mundo. Estou tão entretida que nem percebo que já passa das onze horas e pela primeira vez sinto um cheiro de fumaça.
Quem está colocando fogo a essa hora? Penso com repulsa.
Pego apenas meu celular que é a única coisa que trago e apago as luzes. Ao abrir a porta o cheiro de fumaça se intensifica e noto uma claridade incomum na parte inferior do local. Desço somente três degraus quando um varal de blusas cai sobre ela. Estaco.
Fogo!
Minhas pernas se movem segundos depois do susto tomado. Subo correndo e fecho a porta atrás de mim. Isso não pode estar acontecendo. Só agora noto o quão está quente aqui em cima. Olho em volta pelo salão vendo a única janela existente, que por sinal, está emperrada e com grades para evitar arrombamentos. Corro até ela mesmo assim na tentativa de chamar por ajuda.
— SOCORROOOOO! POR FAVOR! —
grito, mas meu som sai abafado pela janela. Passo minhas mãos pelas grades e bato com tanta força no vidro que ele quebra, machucando minha mão. — Droga!
Tiro o pequeno pedaço de vidro da minha mão e olho em volta. O desespero me atinge quando noto as chamas já na porta. Mal percebo que já estou chorando.
O que eu faço? O que faço? O banheiro!
Corro em sua direção e me tranco. Abro a porta de vidro do box e entro me encolhendo no chão. Aperto forte o celular em minhas mãos. O celular! Digito os números de Liz e espero angustiada que ela atenda.
— Fala minha linda! — ignoro sua alegria e tento controlar meu choro. Tudo em vão.
— Liz, me ajuda, está tudo pegando fogo!
— O quê? Onde você está? — pergunta desorientada e começo a tossir. Vejo a fumaça adentrando o lugar.
— No banheiro... Do meu salão. A loja está pegando fogo.
— VOCÊ ESTÁ AÍ DENTRO? — ela grita
no telefone preocupada, mas não consigo responder sua pergunta.
— Eu não quero morrer Liz... — pronuncio aos prantos.
— Não vai Meg, eu vou conseguir ajuda.
A chamada se encerra e eu escuto apenas o bip da linha muda. Olho para a tela do meu telefone me sentindo angustiada e levo de volta ao meu ouvido.
— Liz?... Liz? Não me deixa! — suplico para o nada e desabo em choro.
Tusso outra vez e ergo os olhos ainda vendo a fumaça entrar. Levanto-me e pego uma toalha molhando-a e colocando nas frestas da porta, volto para o box e me encolho novamente. Fecho os olhos e faço aquilo que não faço há seis anos.
Eu rezo.
Gael Peterson
O alarme indica uma ocorrência. Desço pelo cano e corro para minhas roupas de proteção, e em um minuto eu e meus colegas já estamos cortando os carros pelas ruas de Seattle.
— Qual a situação? — pergunto concentrado ao chefe enquanto ele dirige.
— Segundo o relato da moça, uma loja que está pegando fogo.
— Vítimas?
— Sua amiga está presa no segundo andar, em um banheiro. Estava consciente da última vez que se falaram. — informa sério e aceno com a cabeça.
Seguimos calados. Quando decidi me tornar bombeiro foi por um único motivo, salvar pessoas.
Sou Gael Peterson e isso está no meu sangue. Desde pequeno o fogo sempre me fascinou. É ardente e apenas uma chama pode mudar o destino, sendo capaz de aproximar pessoas ou afastá-las dependendo de cada situação.
Minha mãe foi contra no começo, não queria que seu filho arriscasse a vida. Não que ela tenha realmente aceitado, mas aprendeu a conviver. Eu evito contar minhas aventuras quando ela está presente, só a deixaria mais preocupada. Meu pai foi um grande apoio, com seu jeito galanteador, conseguiu domar a fera que é minha mãe e mostrar o quanto esta profissão é honrosa e linda. Se você já teve a chance de salvar uma pessoa ou até mesmo um animal indefeso sabe do que estou falando.
Mas não se enganem se acham que eu sou o único que salva vidas. Dentre meus outros três irmãos, David é o que mais arrisca, ele serve ao exército. Ele não está salvando apenas pessoas desconhecidas como também a própria família.
Está certo que as duas profissões são dignas de aplausos e medalhas, mas eu pelo menos vejo minha família sempre que quero.
O caminhão virou a esquina me trazendo de volta e consegui ver o fogo sucumbindo cada célula da loja. A polícia presente facilitava o aglomerado de pessoas curiosas em um canto mais afastado.
Com a proximidade avalio o estabelecimento.
A loja de dois andares parecia ter sido reformada há pouco tempo. A parte inferior aparentava estar toda destruída e fiquei aliviado em saber que a pessoa se encontrava na parte superior. Sem perder tempo saímos do caminhão e logo fui surpreendido junto com chefe por uma loira bastante angustiada. Notei seu rosto vermelho de tanto chorar e tive a impressão de já conhecê-la.
— Por favor, vá rápido, ela está lá dentro e eu prometi que ela não iria morrer, por favor... — ela suplicou com a voz embargada e me sensibilizei. Peguei em seu braço de leve fazendo-a me encarar.
— Ninguém vai morrer hoje. — afirmei com um simples sorriso confiante.
Às vezes é preciso isso. Dar um pouco de confiança as pessoas que se encontram com as mãos atadas. Elas precisam acreditar que faremos de tudo para salvar quem está em perigo. Olho para meu chefe e escuto atento como será o início do procedimento. Como a situação está delicada e sou o mais experiente, fico encarregado de tirar a moça.
Com uma equipe de dois, me dirijo à porta e com um chute a derrubo. A mangueira é guiada para dentro, tentando acalmar o fogo. Logo localizo a escada e comprovo ser impossível passar por ali.
— A escada já era. — falo pelo rádio e saio dali com os comandos do chefe. Em poucos segundos chego a ele.
— Há uma segunda entrada pela janela Gael, porém há uma grade. — ele me informa.
— Tudo bem, eu resolvo.
Corro até um segundo caminhão e levo-o ao lado do imóvel. Percebo muita fumaça da janela.
Droga!
— JANELA ABERTA! APAGUEM LOGO
O FOGO! — grito e me preocupo de ser tarde demais.
Subo a escada do carro de bombeiro com algumas ferramentas e ligo o motor fazendo a escada subir, em um minuto estou de frente para a janela. O fogo já consome a porta e está se espalhando pelo ambiente. Seja lá o que tem aqui dentro está queimando rápido.
— Senhor... Preciso de uma mangueira na janela, é a única entrada e saída, tem que manter o fogo longe. — aviso.
Rapidamente vejo que se trata de um ferro fino o que facilita meu trabalho. Seguro e dou alguns puxões. Como previa, o calor deixou o ferro fraco. Entro no ambiente com muita fumaça e ligo meu oxigênio. Vasculho procurando o banheiro e vou a sua direção com cuidado, o chão pode estar fino.
Ao chegar giro a maçaneta. Trancado. Com dois chutes a porta voa e assim que entro vejo seu corpo caído dentro do box. Ajoelho-me ao seu lado procurando o pulso. Fraco. Tiro meu oxigênio e dou para que ela respire. Sei que não devia pensar nisso, mas... Ela é linda.
O corpo pequeno e deitado no chão parece
tão fraco. Os cabelos compridos e escuros, não chegam a ser pretos, se espalham ao seu redor, ela tem um rosto angelical e lábios carnudos. Vejo seu peito encher e ela abrir os olhos assustados. Parecem safiras azuis me olhando e logo constato que ela está em choque.
— Gael? Gael? — a voz do chefe no rádio me desperta.
Gael Peterson
— Sim, senhor! — respondo grave. Ela continua respirando.
— Você tem um minuto para sair daí! Saia agora! — ordenou em meu rádio e mantive a calma. Se ele me mandou sair, é porque a coisa está ficando feia.
Fito a pequena moça assustada e sei que preciso lhe passar toda segurança.
— Qual seu nome? — indago e tusso entre a fumaça. Ela tira o oxigênio e me entrega, apesar do caos sorrio com seu gesto.
— Você precisa mais disso do que eu pequena. — comunico e levanto seu corpo leve em meus braços.
— Meg. — ouço sua voz fraca ao me dizer seu nome. Tenho que tirá-la daqui.
— Muito bem Meg, pronta para sair? — pergunto e ela apenas acena em confirmação.
Meg me impressiona com sua força, outras já teriam desmaiado, ela, porém, está acordada e se preocupando comigo que sou um bombeiro treinado e estou nisso há anos. Ela esconde seu rosto em meu peito ainda respirando devagar. Saio do banheiro e a situação não está nada boa.
Isso vai desabar a qualquer momento. Vejo o fogo se alastrar pelo cômodo e ando com cuidado sobre o chão.
— Gael, onde você está? — ele questiona.
— Saindo. — respondo de imediato e noto a água ser afastada da janela ainda intacta.
Coloco Meg na escada e ouço algo se partir.
Olho para trás a tempo de ver o teto desabando. Passo rápido pelo buraco e deito sobre Meg na escada, tentando protegê-la o máximo que posso. O barulho não é grande, mas é difícil enxergar por conta da poeira e sujeira.
Gritos cada vez mais próximos chamam meu nome e levanto meu corpo que esmagava o de Meg.
Seus olhos estão fechados e sua respiração difícil. A escada vai se encolhendo e vejo as pessoas ao redor. Pego a pequena mulher em meus braços agora desacordada e logo os paramédicos me circulam.
— Ela respirou fumaça demais. — falo com dificuldade e tusso enquanto a coloco na maca.
Seu oxigênio é trocado por um menor e a
assisto se afastar. A paramédica da minha unidade do corpo bombeiro se aproxima.
— Ela vai ficar bem rapaz e você? — Ellie pergunta preocupada e sorrio.
— Já tive resgates piores.
— Está mesmo bem? Não precisa de oxigênio? — insistiu me vendo respirar fundo.
Ellie era como a mãe de todos os bombeiros da unidade, apesar de ter somente 27 anos ela mandava em todo mundo... É uma mulher bonita e divertida. Por ser ruiva, não passava despercebida pela maioria dos homens e nem por mim. Eu sei que disse que ela é bonita e tudo, mas Ellie é minha colega de trabalho e eu não gosto de misturar as coisas. Se por acaso não desse certo, como ficaria depois? Claro que isso não significa que eu não tenha ficado com algumas de suas amigas.
— Estou bem. Temos trabalho a fazer, ainda
tem fogo por aqui. — murmuro e olho ao redor.
Procuro entre as pessoas até meus olhos pararem nela. Estão colocando-a na ambulância e sua amiga ou irmã vai junto. Por um momento quis estar com ela.
— Tem certeza que está bem, Gael? Você parece inquieto. — ouço a voz de Ellie outra vez e dou de ombros.
— É só que... Esse resgate foi diferente. — divago vendo a ambulância sumir.
— Diferente como?
— Não sei... Bom, é melhor eu ir terminar meu trabalho. — digo e afago suas costas.
Volto para meu posto e em meia hora estou na unidade tomando uma ducha. Os olhos de Meg, assim como sua voz suave, não saem da minha cabeça assim como seu corpo tão frágil lutando por ar... Por que estou pensando nela? Sacudo minha cabeça e termino de me secar. Visto minha roupa habitual, calça marrom claro, a blusa branca de manga curta, o cinto vermelho e estou pronto novamente. Isso porque meu turno acabou de começar.
Para mais, baixe o APP de MangaToon!