1.400 anos A.C – Fim do Século XV antes de Cristo
Canaã era a terra prometida e tão almejada por um povo que outrora fora liberto da escravidão no Egito. Mas para possuí-la, era necessário expulsar os habitantes que lá viviam.
Doze espias foram enviados ás terras para reconhecer território, e descobrir o que enfrentariam.
Este é o relato do que aqueles homens viram:
— Fomos á terra que nos enviaste; e verdadeiramente é uma terra abençoada que mana leite e mel e este aqui é o seu fruto. O povo, porém que nela habita é mui poderoso e as cidades mui grandes e fortificadas; também vimos entre os moradores filhos de Anaque. Não poderemos subir contra aquele povo, porque é mais forte do que nós.
E continuaram a difamar a terra que haviam espiado:
— A terra, pela qual passamos é terra que devora os seus moradores; e todo o povo que vimos nela são homens de grande estatura; Também vimos ali gigantes filhos de Anaques, descendentes dos gigantes; e éramos aos nossos olhos como gafanhotos diante deles, assim também éramos nós aos olhos daqueles homens.
Números 13: 27-33
-------------------------------------------------------------------------------------------------
Enganar a morte uma vez pode até parecer algo incomum, mas duas vezes só podia significar um tipo de propósito divino, algo complexo e extremamente difícil. Uma responsabilidade que só é dada á alguém muito capaz.
Mas ir e voltar do mundo dos mortos sempre tem um preço.
A primeira percepção que tenho é a de que estou morta. Não faço idéia de como é estar morta.
Abro os olhos para a escuridão e não há nada. Não sinto meu corpo, não ouço nenhum tipo de ruído e não vejo nada. É como estar em um quarto escuro e vazio. Puxo o ar tentando sentir algum cheiro. Nada.
Tento emitir algum som dos meus lábios, estou sem voz... Olho para baixo para ver sobre o que meus pés estão firmados e não enxergo nem meu próprio corpo que dirá um chão.
“Onde estou?” Penso, já que não consigo falar. O inferno não deve ser assim. Falaram-me sobre gritos e enxofre. Pessoas sofrendo e demônios torturadores. Isso aqui é um vazio. Um grande buraco negro. Estou no meio do nada!
Então sou puxada para baixo de forma brusca e meu corpo de repente está caindo. Solto um grito mudo. Cair é uma das piores sensações. O frio na barriga, o corpo sacolejando no ar instável. A queda é horrenda e gélida, porque agora consigo sentir o vento a medida que desço em queda livre me debatendo e buscando algo em que pudesse me segurar.
Não há nenhum som, mas estou caindo e não faço ideia de pra onde.
Até que sinto meu corpo bater em algo duro e abro imediatamente os olhos, que eu nem fazia ideia de que estavam fechados. Ofego assustada não entendendo o que está acontecendo.
A primeira coisa que vejo quando minha visão retorna é uma imagem. A estátua de uma mulher com um véu na cabeça e um bebê no colo. Não á reconheço. Ela está acima de um tipo de altar com velas acesas e um cálice de prata.
Em seguida, olho para baixo para meu corpo e estou com um vestido de seda rosa familiar.
Checo meus pés e pernas... Parecem normais.
Um cheiro forte atinge meus sentidos e logo percebo que vem de mim.
Estou sentada sobre algo macio e fétido. Flores. Estou sobre um tipo de tapete de flores coloridas e misturadas.
Olho em volta. Estou confusa. Onde estou e como vim parar aqui?
Vasculho em minha mente o que aconteceu, mas me deparo com um muro alto. Como se estivesse correndo e ele surgisse de repente me fazendo dar de cara e cair de bunda no chão.
Não me lembro de nada. Olho em volta e há velas acessas por todo lado, em espaços abertos nas paredes e em balcões pequenos no chão onde também há castiçais. O teto é de madeira com pequenos vitrais em mosaico colorido. Não reconheço.
Onde estou? Meu cérebro pergunta novamente.
Vasculho em minha mente qualquer coisa que me ajude a entender o que é tudo isso. Há muitas flores onde estou e elas incomodam meu nariz causando ânsia de vômito.
Podem até ser cheirosas individualmente, mas juntas e quase murchas emitem um cheiro fúnebre e podre.
Mais uma tentativa de lembrar e dou de cara com o muro!
Quero sair daqui.
Um rangido alto chama a minha atenção para outra extremidade do ambiente onde há bancos de madeira organizados dos dois lados deixando o espaço de um corredor no meio de onde veio o som.
Uma porta se abre e a claridade fere meus olhos, então os fecho rapidamente estranhando o desconforto. E uma figura embaçada surge em meio os raios de luz.
Tento fixar meu olhar vendo a silhueta caminhar em minha direção.
Não sinto medo, então me mantenho imóvel sentada no mesmo lugar que percebo ser alto comparado ao nível do chão. Parecia uma cama de flores.
Não consigo me lembrar de nada. Todas as vezes que tento, o muro está lá erguido fazendo separação entre mim e minhas memórias . Sinto dor forte na cabeça.
Então a figura se aproxima em silêncio fazendo sua imagem ficar mais nítida.
Ela veste um manto vermelho vinho longo, com um capuz e mangas tão grande e largas que esconde todo o seu rosto, como um mago.
Há coisas em suas mãos.
Acompanho seus movimentos, vendo-a depositar o que parece ser uma bandeja e um manto como o seu sobre um dos bancos. Observo se aproximar de mim. E me surpreendo por não estar com medo.
— Estou aliviado por ter finalmente acordado.
Franzo a testa confusa. Vejo a figura erguer as duas mãos e puxar o capuz para revelar sua identidade.
Seu rosto é duro apesar do meio sorriso que invade seus lábios finos. É um homem.
Sua barba por fazer o faz parecer um mendigo, mas seus cabelos negros e bem cuidados caem ondulados e elegantes até o ombro. Consigo ver algumas rugas, mas ele não parece ser velho. Não o reconheço embora pareça familiar.
— Quase acreditei que não fosse achar o caminho de volta, Senhorita Kate.
Meus olhos se arregalam quando sinto o muro despedaçar, e sou bombardeada com memórias que decidem invadir minha mente todas ao mesmo tempo.
O desaparecimento dos turistas, a morte de Olga, o sumiço de Jess, A queda no lago, a corrida no colo de um Sentinela, a luta, a morte dele...
Uma enxurrada de informações que enchem a minha mente com uma força que me faz ofegar e levar as mãos á cabeça com dor.
Não estou morta.
Diante de todas as lembranças, e questionamentos que de repente me fazem refém... E de todas as pessoas que imaginava ver, ele era a última da enorme lista.
— Doutor Vasiliev?!
Oie pessoas lindas!
Nem deu tempo de sentir saudades né? Não pude esperar tanto para dar seguimento á essa história.
Preciso reforçar que este livro é de minha Autoria e Plágio é crime previsto no artigo 184 do código penal 3, com punição que vai desde o pagamento de multa até a reclusão de quatro anos, dependendo da extensão e da forma como o direito do autor foi violado.
Amores, preciso lembrar também que este livro possui conteúdo Sexual, violência, torturas, rituais de magia e gatilhos emocionais que podem trazer à tona traumas já vividos. Nossa intenção nunca foi machucar pessoas, pois viemos à esse mundo para curar. Sermos luz e amor em meio à terríveis trevas.
Então, caso tenha algum problema quanto a tudo que foi mencionado, quero pedir que não prossiga com a leitura.
Esse livro trata de uma história cheia de pecados e redenção. Onde através do amor e do propósito divino, almas podem ser salvas.
O amor ainda é capaz de transformar tudo em nosso mundo físico e espiritual. O amor ainda reconstrói. Mas primeiro, é necessário sobreviver ao processo.
Á você meu querido leitor, desejo que nessa trajetória, continue lutando para sobreviver ao seu processo.
Kisses :)
~Kate
A incredulidade me atinge quando o reconheço, assim como milhões de perguntas me deixam zonza.
Homero é um homem culto, claramente experiente e isso impõe respeito. Eu o respeito, porque sempre se mostrou cordial e sábio, também por parecer demonstrar certo carinho quando se tratava de minha família. Ele me ajudou por muitos anos.
Não sei como cortar o silêncio que se instala.
— Sei que está confusa agora. — Ele diz caminhando até o banco onde deixou o que agora reconheço como uma bandeja e um manto, e os pega trazendo em minha direção — Prometo sanar todas as suas dúvidas, mas por ora precisa se alimentar. Não sei como seu corpo irá reagir nesses primeiros minutos.
Olho para o objeto contendo bolo, pães e uma garrafa de suco.
Meu estômago se contorce.
— Não quero comer, quero respostas — Retruco me movendo para descer daquela cama fedida.
Dou um salto e me ponho de pé, mas minhas pernas fraquejam e sinto tontura cambaleando. O que faz meu psiquiatra me segurar firme com o movimento de uma única mão.
Devo estar fraca demais, pois ele me puxa quase me arrastando para o primeiro banco da fileira e eu não sinto meu corpo se locomover. Ele joga o tecido pesado sobre mim, percebo ser um manto igual o seu.
Nem sabia que sentia frio até o tecido quente deslizar por meus braços e costas. Uso o cadarço para amarra-lo próximo ao meu pescoço.
Estamos em uma capela, sei agora, não qualquer uma, mas a capela onde velamos Olga e meus pais. A capela Santa Luzia. E o tapete de flores no qual estava deitada, percebo agora ser um altar onde os corpos são velados.
Como se pudessem deixar a passagem mais confortável e feliz.
Vasiliev me coloca sentada e põe a bandeija em meu colo.
— Posso obriga-la a comer, se preferir.
Sua voz dura, mas ao mesmo tempo respeitosa me faz engolir seco, lembrando de uma certa figura bruta que diria a mesma coisa.
Não quero desafia-lo. Então pego um pedaço de pão e mordo. Ele me observa e não faço ideia do que ele está fazendo comigo aqui.
— Vou comer, mas preciso que responda minhas perguntas.
Homero Vasiliev sempre foi meu psiquiatra, desde que saí do hospital e precisava de acompanhamento por demonstrar estresse pós-traumático aos 9 anos.
— Quer que eu comece por onde, Senhorita Kate?
Sempre me chamou assim desde que eu era criança, senhorita para lembrar das formalidades do consultório e de sua posição como Doutor e Kate, para não soar tão formal e careta quanto deveria.
Sempre achei agradável. Um contraste e equilíbrio perfeitos.
— Comece com, como vim parar aqui?
Ele analisa a pergunta e pensa cautelosamente em como responder.
— Havia perdido seu rastro três dias antes de te encontrar numa casa perto do lago Mirror Lake. — Ele diz devagar, como se pensasse em cada palavra de forma cuidadosa — Toda a polícia de NH estava á sua procura quando seu vizinho denunciou seu sumiço e dos amigos seguranças. A busca deles não parava, assim como a minha.
Penso em suas palavras e meus olhos enchem de lágrima ao imaginar Kevin em desespero me procurando.
— E como me achou?
— Estava rastreando os Filhos de Anaque. Não foi difícil, porque você era o alvo deles. — Sua voz muda para um tom duro — Aqueles animais jamais desistiriam de terminar o que haviam começado.
Franzo a testa.
— Pera ai, como sabem quem eles são? — questiono surpresa.
Ele me encara sério. Homero sempre foi um homem sério, por isso a maior parte de suas rugas se concentra em sua testa.
— Você precisa saber— Diz dando uma pausa para continuar — Que sou um Ancião da Ordem Semyta.
De queixo caído eu fico, muda como se um gato tivesse comido minha língua. Homero um ancião? Como?
— Sou Líder de uma das famílias que lideram a Ordem. Não sou americano.
Quero rir, mas não é por achar graça. Estou com raiva.
— Isso todo mundo sabe. Seu tamanho, voz e ate seu nome dizem “Eu sou Russo”.
Ele dá de ombros á minha ironia.
— Porque nunca me falou nada sobre isso? — Questiono — Porque todos esses anos não me disse que eu era uma Semyta? Seja lá que droga isso seja. E porque eu nunca soube quem você era?
— Seus pais fugiram da Ordem quando souberam de sua gravidez. Ninguém além deles sabia. Eles queriam cria-la como uma Antisemyta — Ele coça a cabeça como se lembrar exigisse força — E quando descobrimos sua existência, Máximus precisou que alguém abdicasse de seu posto para verificar a veracidade da informação.
Ele dá uma pausa para mim assimilar. Lembro do Filho de Anaque mencionar um Ancião velhote. Homero não era velho, apesar de sempre usar a barba por fazer. Era consideravelmente charmoso na forma ereta de andar e como movia as mãos quando gesticulava. Um ancião era assim, então? Será que havia uma regra física para ser um Ancião? Todos eles são psicólogo?
— Porque meus pais fugiram?
— Sua mãe era uma Anciã que desertou. Havia se apaixonado por um humano e engravidado. — Sinto uma ponta de pesar quando fala essa parte — Helena era da família Real e quando se rebelou contra a Ordem, foi um choque para todas as famílias. Não poderia casar com alguém de fora. Nosso dever é manter a linhagem pura. E diante de toda a rejeição da Ordem por seu pecado, ela decidiu se desligar.
Suas palavras são absurdas, falando de uma mulher que eu não fazia idéia que tinha existido.
Minha doce mãe, se rebelar? O que era aquela Ordem? Um tipo de civilização? Grupos de ódio, tipo movimentos ativistas? Minha mãe havia fugido por se apaixonar por meu pai e os dois haviam morrido. Parece um clássico fatal de Sheakspeare.
— Quando um Ancião ou qualquer descendente de sangue puro escolhe sair, ele abdica de toda proteção que oferecemos. Mas precisávamos conferir se a criança realmente existia. E quando soube que você havia nascido um membro da Ordem visitou seus pais e tentou convencê-los de viver nos limites da nossa proteção.
Ele para e respira fundo. Acho que nunca o vi falar tanto. Nossas sessões se resumiam em uma palavra dele a cada texto que eu dizia. Era sobre uma palavra sua ser gatilho emocional para desbloquear uma Katherine tagarela.
— Eles não aceitaram. — digo, nem precisando saber disso. Os Filhos de Anaque deixaram claro que a escolha de meus pais haviam causado tanto sua própria morte, quanto a de Olga e todo o resto.
— Não.
— Olga era realmente a minha tia?
Ele hesita e eu tenho receio da resposta, embora ela seja óbvia.
— Não. Apenas a cúmplice de seu nascimento. Seus pais deram um jeito de não ter nascido em uma maternidade. A mulher apenas havia feito o parto.
E se Olga não era minha tia biológica, Jess também não era minha prima. E toda a minha vida era uma grande novela, comigo como protagonista e sendo a última à saber.
— Porque só agora pude saber de sua existência? Sobre a Ordem e os Sentinelas?
— Seus pais queriam criar você fora de tudo relacionado á nós. — Ele caminha até sentar ao meu lado, cruzando uma perna sobre a outra e ficando de frente pra mim. Mantenho-me imóvel. Só havia conseguido comer um pão até agora.
Homero continua:
— Quando seus pais rejeitaram nossa ajuda. Não podíamos mais fazer nada. Até que... — Ele faz uma pausa e eu o encaro. — Aconteceu o acidente.
Eu entendo. Não foi acidente. Sentinelas havia matado meus pais.
— O conheci quando voltei do hospital.
Lembro nostálgica.
— Quando soubemos, a Ordem se reuniu para decidir o que faríamos com o corpo dela e com a criança mestiça. — Sua voz fica embargada — Eu me ofereci para o trabalho.
Eu o analiso ficar cabisbaixo. Mas não está tão na cara. Só aprendi alguns truques com anos de terapia. E agora, consigo lê-lo melhor do que antes.
— A enterramos no Cemitério de NH.
Ele fica em silêncio por um minuto inteiro. Respeito isso, pois não entendo suas motivações.
— Levamos seu corpo para o Cemitério da Ordem.
— Impossível, eu mesma a velei nessa capela. — Digo exasperada.
— Permitimos que fosse enterrada como os humanos, mas levamos seu corpo em seguida e o enterramos no limite de nossas terras.
— Quer dizer que todos esses anos eu vim e trouxe flores para um túmulo vazio? Rezei por suas almas e chorei para uma caixa de mármore oca? Tá de brincadeira comigo!
Estou indignada e enjoada com o crime que cometeram de mexer com o corpo de minha mãe depois de morta. Até isso tiraram de mim. Até meu luto havia sido vazio, uma mentira.
Cada vez que ele me revelava mais, com mais raiva dessa Ordem eu ficava.
~Kate
Meu corpo é consumido por uma raiva que tento controlar. Queria gritar como um animal ferido.
Mas olhar para Homero era como receber anestesia. Sua calma contagiante me fazia sentir como uma criança birrenta.
Era o golpe de lucidez em meio a loucura. Sua alma naturalmente pacífica nos convidava para o lado branco da força.
— Fizemos isso por respeito. Helena merecia isso, nos serviu como uma guerreira corajosa por toda sua vida.
Ele quase sorri ao falar dela, e começo a desconfiar de seu carinho por minha mãe ser tão evidente.
— O que a Ordem havia decidido sobre mim com a morte de meus pais?
Eu precisava entender como havia sobrevivido á doação de sangue ao filho de Anaque, mas eram tantas perguntas que precisavam ser esclarecidas e Homero não fazia ideia da besteira que cometi, a causa real de eu ter quase morrido não seria uma informação bem aceita por um ancião.
Eu nem fazia idéia de por onde começar, mas precisava absorver toda a informação sobre minha vida. Toda a verdade sobre quem sou.
— Houve uma votação naquela noite. Precisava ser unânime, mas eu e Máximus nos recusamos á concordar com o que os outros haviam decidido. A Ordem não quis se responsabilizar por uma mestiça. — ele limpa a garganta e continua — E quando limparam as mãos, proibiram qualquer casa de receber você. Foram 3 votos contra 2 e não podíamos te proteger sem que pelo menos mais alguém concordasse.
— Mas você veio me proteger, mesmo contra os 3 votos.
Lembro-me de sermos apresentados por tia Olga, que disse como ele me ajudaria.
— Sim. Era meu dever proteger a filha de Helena. Eu devia a ela.— Seus olhos brilham sempre que diz o nome dela. — Então saí de Moscou disposto á proteger você, mas precisava de um posto que me deixasse perto de sua família, algo que não chamasse atenção. E como ja possuía formação humana...
— Convenci Olga de me deixar fazer isso, a instruí em como te proteger dos Sentinelas. Todos os rituais, e cuidados para que você crescesse como os normais, mas com proteção Semyta. Ela não podia dizer não, estava com uma filha de colo e uma menina que ajudou a trazer ao mundo acuada com medo até da própria sombra.
Essa menina era eu. Engulo seco, pegando a garrafa de suco e prestando toda atenção em meu Psiquiatra. Tento imaginar Olga sozinha com o desafio de criar duas meninas sem ter noção dos riscos que enfrentava. E saber que ela havia morrido por minha causa tornou as coisas bem piores pra mim. Porque a amei como se fosse realmente minha tia.
— Então nos empenhamos em te fazer crescer como seus pais queriam. Longe da Ordem, mas protegida dos Sentinelas. Ela como uma segunda mãe, e eu como ancião e seu psicólogo. O disfarce perfeito para mim.
— E funcionou até ela perder sua vida por minha causa.
Uma lágrima escorre. A saudade aperta em saber de tudo. Ela só queria me proteger. Morreu por me proteger, e eu nem era parte de seu sangue.
— Não pode se sentir assim— Ele diz calmo.
— Não me diz como devo me sentir! — digo alto — Você não sabe como é viver uma vida de merda que nem era verdade! De ver pessoas que ama morrerem por causa de você enquanto não tem idéia do porquê de estarem sendo feridas.
— Não quis dizer que não tem o direito de se sentir triste e indignada. Perdoe-me se pareceu isso — diz sereno e controlado como se nada o abalasse — Eu apenas prefiro que entenda que ela fez o que devia fazer e conhecia os riscos. Todos nós sabíamos o que poderia acontecer. Sabíamos que, mesmo dando nosso melhor aqueles animais iriam te achar.
— E mesmo assim não a protegeu. — acuso — Nem a Jess.
Sempre me perguntei se havia alguma coisa no mundo que o abalasse. Em todos os anos que o conheço, nunca o vi sair do sério ou perder o controle.
— Senhorita, meu objetivo era proteger você.
— E cagar para o resto, Doutor?!
Busco controlar toda a raiva que fazia meu corpo tremer enquanto as lágrimas escorriam. Ele podia tê-las protegido.
— Precisa entender que o nosso mundo não é como o que você viveu.
— Isso não significa que o mundo de vocês seja melhor, Doutor. — cuspo. Ele não se ofende, fica apenas ali calado me dando um tempo.
— Como eu vi parar aqui? — pergunto me sentindo cansada.
Ele se levanta para caminhar em direção á estátua que agora sei que é de Maria mãe de Jesus.
— Encontrei seu corpo á beira de Mirror Lake, sem vida. — Ele vai até ela e pega uma das velas acesas e acende outra que esta apagada. — Aqueles Sentinelas havia te deixado lá para ser encontrada. O que não representa um comportamento comum.
- Seu corpo pra eles não teria mais valia, já tinham drenado todo seu sangue, eles podiam queima-la. Nesses casos eles simplesmente dão fim ao corpo, sabem que podem ser descoberto. Mas desde que chegaram á cidade percebi que cometiam muitos erros.
Como aconteceu com Kahina e os outros turistas, penso
A lembrança da luta de Dylan, os corpos decepados e Raziel sem vida ainda estão frescas em minha mente. Raziel... Seu nome em minha mente é como se eu mencionasse em meus lábios de forma doce. O que aconteceu com ele? Havia morrido? Me deixaram à beira do lago para que a polícia me encontrasse.
Raziel estava tão ferido que as chances de ter sobrevivido, de meu sangue ter sido suficiente são improváveis.
Me lembro de estar ao seu lado naquele porão e uma fraqueza me consumir ao ponto de sentir muito sono e perceber que morreria. Seu corpo não reagia. Dylan não voltava e eu precisava desligar aquela máquina.
Só lembro de ser tomada pela escuridão e acordar na cama de flores. O que aconteceu com meu algoz? Meu sangue não tinha feito nem cosquinha em seu corpo durante aqueles minutos. Ele com certeza não sobreviveu, mas como eu sobrevivi? E porque?
— Como eu sobrevivi? O que aconteceu com os Sentinelas que me sequestraram? — questiono ainda perdida em pensamentos.
Ele não responde por um tempo. Parece sussurrar algo que não ouço e eu espero. Não pode estar rezando logo agora.
— Fugiram. Quando segui o rastro só você estava lá. Como sobreviveu? Não sei... Por um milagre. Seu corpo estava seco, como uma boneca sem vida.
— Ainda não explica como vim parar aqui.
Ele acende outra vela e a coloca do outro lado do altar.
— Eu comuniquei à polícia que havia encontrado seu corpo. Fizeram todos os procedimentos no IML e te liberaram. Seu vizinho e a família cuidaram de todo o velório e enterro.
Homero se vira para mim e sorri, mas é um sorriso triste.
— Exatamente como foi com sua mãe. Eu estava disposto a te levar para enterra-la junto dela, nos limites de nossas terras...
— Violou minha cova? — Pareço uma idiota ao perguntar.
— É só uma fantasia pensar que seu corpo ficaria ali para sempre. Sua alma e espírito não se prendem á matéria. As pessoas tem o hábito de visitar túmulo para buscar conforto em quem já se foi, ou por causa de uma consciência pesada. Quando na verdade, só restam ossos e bichos.
Acrescenta:
— Eu apenas esperei o tempo certo para reabrir e retirar você antes que o processo de decomposição iniciasse.
Torço o nariz achando nojento.
— Somente dias após sua morte enquanto preparava para transporta-la para o Canadá , percebi que seu corpo emitia sinais de vida. — Sua expressão é confusa — Senhorita, nenhuma história poderia justificar o que ocorreu. Só posso dizer que foi um milagre.
— Não acredito em milagres.
— Deveria, porque ninguém da Ordem acredita que sobreviveu á um ataque dessa magnitude. Nenhum Semyta sobreviveu. Eu chequei você, estava morta. Não havia sinal de vida. Aquela altura seu corpo já deveria estar começando a emitir odores de putrefação.
Ele agora caminha de um lado á outro atormentado pelo fato de eu ter voltado á vida. Enquanto, pra mim eu havia dormido e despertado de um simples sono.
— Quando tempo fiquei morta? — questiono olhando a pele de meu braço com uma mancha escura no local onde havia tido uma agulha.
Como é possível que todo meu sangue foi sugado e eu ainda estivesse aqui pra contar história?
Como eu poderia ter me livrado da morte por duas vezes? E porque eu não me sentia diferente? Acabei de ressuscitar e me sinto a mesma Kate.
Eu queria contar a Homero sobre eles. E sobre tudo o que havia acontecido. Mas não senti que deveria. Éramos inimigos, e eu tentei dar a vida por um. Seria escorraçada como minha mãe foi. E se Homero não tivesse me tirado da cova, eu poderia estar viva e dentro dela, morrendo sufocada pela terceira vez, sem chance de voltar.
— Pedi ao Padre Haley para conseguir bolsas de sangue. E te entubamos. 8 dias após seu enterro seu corpo apresentou sinais vitais, mas você não acordava. Resolvi te manter aqui, era arriscado viajar com aqueles Sentinelas á solta e tive receio de não resistir— Conta — Parecia impossível, mas estava acontecendo e a Ordem me aconselhou a buscar proteção aqui. Foram vinte oito dias esperando que acordasse. Você estava em um estado de coma. Nenhum médico poderia explicar.
— Meu Deus! Preciso ir pra casa e avisar a Kevin que estou viva.
Penso na dor que ele sentiu em saber que eu estava morta.
Lembro de seu sorriso no dia que fui sequestrada prometendo uma noite de amor ao seu lado. Lembro da vontade que havia sentido de beija-lo e do arrependimento que tive no momento que saí do carro e deixei a oportunidade passar. Eu o amo e não posso viver sem ele.
Não posso desperdiçar a chance de ser amada, mesmo em um mundo recém-descoberto como falso. Não importa quem sou, quero amar Kevin.
Havia em mim a esperança de ficarmos juntos. Agora, o medo de não fazê-lo feliz parecia tão bobo. Quase morri e o deixei pra sempre, mas a vida de novo me presenteou com uma chance.
— Nem pense em cometer tal erro.
Sua repreensão me faz encara-lo.
— Preciso dizer a ele que estou bem. Me dê um telefone então, seus pais são como minha família também. Nem imagino a dor que causei a eles.
— Você está morta pra eles. É bom que permaneça assim, pois iremos partir amanhã.
Suas palavras me batem com força. Como assim? Ficou louco, só pode!
— Não vou á lugar nenhum com você amanhã! Eles precisam saber que estou viva, Homero. Eu preciso que eles saibam disso.
— Se contar, vai chamar atenção de Anaques.
— Dane-se! Não posso continuar morta para eles. São minha família.
— Precisa aceitar que é uma Semyta e que nós somos sua família.
Ergo a bandeja e a coloco bruscamente sobre o assento.
— Pro inferno que são! — Retruco seguindo para a porta — Não me importo com o mundo em que vocês vivem. Quando perdi meus pais, eles me acolheram e ficaram do meu lado enquanto á sua Ordem havia me rejeitado.
Ele me segue e quando percebo está á frente da porta, á travando.
— Não me obrigue á isso, Senhorita. — Sua voz é calma, mas esboça preocupação — Eles podem ter ficado ao seu lado, mas fomos nós que a protegemos todos esses anos.
— Pode ter me protegido, mas deixou morrer quem era importante pra mim.
Ele assente aceitando a culpa.
— Contar á eles vai fazer exatamente o que acabou de me acusar de fazer.
Recuo com as verdades de suas palavras. O que ele percebe e continua:
— Há Filhos de Anaque por toda a cidade procurando Semytas. Se certificando de que não restou ninguém para contar história. — Ele dá um passo para o lado — Pode ir até seus amigos, mas certamente serão alvo de nossos inimigos, assim como sua tia, sua prima... Aqueles turistas. Quer fazer mal á quem restou de importante pra você?
Recuo outros passos com as lágrimas voltando a cair. O infeliz é apelativo e dou razão ao Ancião. Se for até lá e aqueles homens que lutaram com Dylan e Raziel estiverem na cidade, vão seguir meu rastro até a vila. E eu odiaria ter mais mortes sobre minhas costas. Estou encurralada pela verdade.
Estou morta á um mês. E viva á alguns minutos contra todas as probabilidades.
Tudo que Homero contou me atinge com seriedade e eu sei que está certo. Por enquanto, preciso proteger Kevin e sua família. Foi tudo que me restou.
Preciso esperar o tempo que for necessário para que soldados inimigos recuem e então voltarei a vê-los.
Kevin não merecia o sofrimento de estar morta, mesmo estando viva, mas seria por uma causa nobre e provisória.
Um misto de sentimentos me faz pensar que só poderia ser ironia do destino.
— Posso esperar — Digo vendo-o relaxar — Mas preciso respirar fora daqui.
Digo puxando a porta de madeira da capela e saindo para o entardecer.
Ele não me impede e imagino que vai se manter por perto. Mas não me importa, de repente aquela capela se torna sufocante demais pra nós dois.
Para mais, baixe o APP de MangaToon!