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Sombras De Uma Noite - Livro I

Órfã

*Nota da Autora*

Oii, Pessoas lindas!

Antes de tudo, quero agradecer você Leitor por decidir iniciar essa leitura. E frisar 3 pontos importantes para mim.

Primeira coisa: Preciso dizer que essa é uma história de minha autoria, sendo uma série com 5 Livros, onde compartilho os pensamentos de ambos os protagonistas. E já quero lembrar que violação dos direitos autorais é CRIME previsto no artigo 184 do Código Penal 3, com punição que vai desde o pagamento de multa até a reclusão de quatro anos, dependendo da extensão e da forma como o direito do autor foi violado.

Segunda coisa: Escrevi essa história com apenas 14 anos e décadas depois, tantas coisas que aconteceram na minha vida nesse tempo me trouxeram de volta a Kate e Raz. Eu os amo, e desejo que vocês os conheçam de forma íntima.

Terceira e última coisa: Essa série contém cenas fortes, de conteúdo Sexual, Tortura física e psicológica e cenas de alguns rituais de magia. Conselho da Autora: Caso algum desses conteúdos não te agrade, pare a leitura agora mesmo e procure algo mais leve.

Mas você que foi corajoso o suficiente pra prosseguir, tenho certeza que vai se apaixonar tanto quanto eu e essa pessoa a quem irei dedicar esse primeiro capítulo...Isa, uma velha amiga e primeira pessoa a ler essa história à anos atrás e se apaixonar.

Querida, Obrigada pelo incentivo!

Boa leitura! Kisses ;)

 

“E aconteceu que, como os homens começaram a multiplicar-se sobre a face da terra e lhe nasceram filhas, viram os filhos de Deus que as filhas dos homens eram formosas e tomaram para si mulheres de todas as que quiseram.

Então disse o Senhor: Não contenderá o meu Espírito para sempre com o homem; porque ele também é carne; porém os seus dias serão cento e vinte anos.

Havia naqueles dias gigantes na terra e outros nasceram também, quando os filhos de Deus se casaram com as filhas dos homens e delas geraram filhos; estes eram os valentes que houve na antiguidade, os homens de fama.

E viu o Senhor que a maldade do homem se multiplicara sobre a terra e que toda a imaginação dos pensamentos de seu coração era só má continuamente.

“Então se arrependeu o Senhor de haver feito o homem sobre a terra e pesou-lhe em seu coração.”

Genesis 6:1-6

— Mamãe, eu não quero ir. — Resmungo sonolenta naquela manhã.

Olho para seu rostinho fino, pálido e angelical.

— Kate, meu amor. Não podemos deixar de ir e agradecer pelas bênçãos que o criador nos concedeu.

Se anjos existem, minha mãe com toda certeza é um. Seu rosto parece ter sido perfeitamente esculpido em lábios finos, pele branca como a neve, olhos grandes e bem escuros sob cílios cheios e delicados; bochechas proeminentes e gorduchas, como aqueles serafins esculpidos nos tetos das nossa Igreja. Sem dúvidas a mulher mais linda que já vi. Seus cabelos ruivos pendem em cachos cheios e macios como algodão. Nada nela é torto, grande demais ou manchado.

Eu sempre achei que ela fosse a filha preferida de Deus, porque ninguém conseguia ter aquele rostinho de boneca de porcelana e aquele jeito de anjo da guarda.

Toda vez que ela falava eu sorria.

— Mas mamãe não podemos ficar em casa, só hoje? — imploro com a voz embargada.

— Não está se sentindo bem hoje, meu amor?

Sua voz é ainda mais perfeita. Doce, calma e leve como uma brisa de outono.

Ela coloca as costas da mão na minha testa checando minha temperatura.

Eu nunca recusei ir às Missas dominicais. Somos fiéis aos compromissos da Paróquia. Este dia é sagrado para nós, assim como as comunhões e todo o trabalho de caridade que fazemos.

— Estou bem, mas... Não me sinto bem — Digo confusa e receosa.

Como uma boa filha de 9 anos, eu sempre fui obediente porque Deus se agrada de filhos que obedecem aos pais e havia um lugar bonito para crianças assim.

Imediatamente ela estranhou meu comportamento. Fecho os olhos desejando que ela acredite em mim e desista da idéia de irmos à Paróquia hoje.

Mas meu pai entra no quarto.

— Já estou pronto. O que ela tem? — Pergunta ao entrar ainda dobrando as mangas da camisa perfeitamente passada.

Papai tem a pele mais escura que mamãe como eu, e comparando os dois, ele parece um surfista que passou tempo demais ao sol e adquiriu uma cor parda.

Tem cabelos castanhos, olhos verdes e lábios cheios. É bonito, mas não de forma angelical como ela. Ele é policial, sua expressão na maioria do tempo é séria e imponente como a de um guerreiro.

Eles formam um casal lindo, a combinação perfeita de café com leite, milk-shake de Ovomaltine, Romeo e Julieta e macarrão com queijo... São como a areia e o mar, a lua e as estrelas. Eu os amo mais que tudo nessa vida. E era por isso que meu coração gritava aquela manhã para que não saíssemos de casa.

— Aparentemente nada — Mamãe suspira com meu comportamento estranho.

Papai se aproxima e também testa minha temperatura com a mão fria. Algo que os pais sempre sabem, é quando seus filhos não estão com a temperatura normal e sempre descobrem isso usando as mãos. Como mágica de pais. Segundos depois ele faz uma expressão alarmante.

— Já sei o que está acontecendo. — Ele abre minha boca com os dedos e faz uma cara de doutor maluco coçando minha língua com o indicador, o que me faz rir e engasgar. — Ela precisa de uma porção gigante de waffles com pasta de amendoim e um copo enorme de chocolate quente!

Ele me enche de cócegas por todo o corpo e eu não evito as risadas que tomam conta de mim. De repente, estou sendo carregada no colo escada abaixo para a cozinha, onde esqueço por um tempo àquela sensação estranha enquanto tomo um café da manhã farto de sabores e de amor.

Sem saber que aquele seria totalmente diferente dos outros cafés da manhã do resto da minha vida.

Eu não entendi o que estava acontecendo com meu corpo aquele domingo. Já no caminho para a missa começo a sentir arrepios e um borbulhar na boca do estômago que me faz sentir enjoo. As ruas passam pela janela do carro numa velocidade menor do que realmente estamos. Posso sentir o tic tac do relógio de pulso da hello kitty que estou usando. Penso estar ficando doente de verdade.

A missa inicia e eu só desejo que aqueles sintomas vão embora pra poder me sentir bem novamente. Passamos um dia normal na Paroquia Santa Luzia e ao sairmos, nos despedimos do padre e irmãos.

Pouco mais tarde entramos no carro e foi aí que percebi que havia prendido o ar durante o dia todo. Sentia dores nas costelas. Suspiro finalmente de alívio. Tudo tinha corrido bem.

— O que acha de darmos uma passada para ver a tia Olga e a Jess? — Papai pergunta saindo do estacionamento.

— Acho que podemos comprar Cupcakes de amora com cobertura de chantili no caminho — Exclamo com a idéia de visitar minha tia e prima. Percebo que entramos na Kancamagus Highway, estrada principal.

— Eu acho que essa garotinha está comendo muitas coisas gostosas ultimamente, não acha papai?. — Mamãe sorri pelo espelho retrovisor.

— Estou em fase de crescimento — Me defendo fazendo beicinho e cruzando os braços. Ao que os dois riem achando graça. Claramente são apaixonados por mim e me sinto a menina mais sortuda do mundo.

— Filha, acho que tem outra coisa crescendo dentro dessa barriga, não é só você não.

O carro se enche de risadas.

Esse é o ultimo som que ouço antes do pesadelo chegar em milésimo de segundos.

O primeiro som é de uma buzina alta e intensa, que fere meus ouvidos como uma onda quebrando bem em cima da minha cabeça, mas não consigo levar as mãos até eles para tapa-los, pois logo vem uma pancada tão forte que nos faz sacolejar.

Lembro-me de estar girando numa velocidade sem controle, impossível de comparar a emoção de um brinquedo radical dos parques de diversões. O ar foge dos meus pulmões, mas não consigo puxar de volta e isso me faz enxergar uma escuridão momentânea. Desmaio por mais ou menos dois segundos e quando abro os olhos novamente me sinto em uma lata de biscoitos com farelos em meus olhos, eles ardem e arranham.

Continuamos girando e parece que é uma eternidade, tudo passa rápido e embaçado como em um carrossel á 180 km/h, e eu sei que estamos caindo agora, porque sinto aquele frio no estômago característico das quedas no Kabum. Algo molhado sai de dentro de mim. Caímos e giramos como uma gaivota ferida, coisas batem em mim como se eu tivesse correndo em meio a multidão e esbarrasse em todos no caminho, mas a essa altura não sinto nada além do que acredito ser o cinto cortando a minha pele do peito e pescoço numa tentativa falha de me manter presa e segura no lugar. Para mim, tudo durou mais do que o tempo real.

Para mim, cada detalhe do que sentia e tentava enxergar passou em câmera lenta, segundo por segundo, como em um mundo paralelo. Mas no tempo real tudo durou apenas cinco segundos. A pior sensação da minha vida em meros cinco segundos até que senti uma ultima pancada e a escuridão total.

Abro os olhos e vejo uma luz muito forte que os fere e me obriga a fecha-los. Tento puxar o ar de meus pulmões quando sinto que ele foi substituído por algo duro e incômodo dentro da minha boca.

Abro os olhos novamente e percebo que meus braços estão imóveis, assim como todo o meu corpo enrijecido, como se eu tivesse sido mergulhada em cimento e secado ao sol. Tento olhar para eles, saber o que está me prendendo, mas meu pescoço está imobilizado.

Tento gritar, mas é em vão e o gosto de sangue invade minha garganta.

Ouço passos e vejo vultos embaçados aparecerem na minha linha de visão. Um bipe ensurdecedor e constante me enche de pavor. Um rosto surge acima do meu e parece familiar.

Quero pedir ajuda, mas não consigo. Quero gritar, mas não consigo. Aquela figura se revela a mim. É tia Olga. Tia! Tia Olga! Me ajude! Por favor, socorro!

Não consigo me mexer, tia. Me ajuda!

As coisas começam a escurecerem de novo e eu tenho medo da escuridão que começa a me tomar. Todo aquele esforço em pedir ajuda é em vão.

Onde estou? Por que não sinto dor? Nem consigo me mexer? Será que morri? Onde estão meus pais? Será que alguém pode me ajudar? Socorro!

"Eu tô bem"

Abro os olhos e sento na cama ofegante.

Droga! Foi só um sonho.

Levanto rápido da cama e corro para o banheiro. Lavo o rosto na água fria tirando o suor enquanto me acalmo devagar.

Raras são as manhãs que as sombras daquela noite me visitam. Elas fazem isso Sempre que avanço um pouco ou estou alcançando um momento agradável ou uma realização.

16 anos depois e elas sempre lembram da primavera que jamais me trouxe dias ensolarados, e me faz viver tudo de novo e de novo como da primeira vez. Como se reforçassem que não mereço esquecer e ser feliz.

É tão real que ainda sinto a mesma sensação de sufocamento, as dores nos mesmos locais onde tive os ferimentos mais graves, o mesmo medo, desespero e impotência que senti enquanto vivia a pior experiência da minha vida.

E eu sei o que isso significa.

Graças á ela, tomo medicamentos pra combater a ansiedade, o estresse e o pânico de todas as crises que me atacam quando sou abraçada pelas sombras daquele dia.

— Bom dia — Digo descendo as escadas.

— Oi querida, como passou a noite?

Tia Olga me dá um beijo acolhedor na testa. Sento-me á mesa com todo tipo de pães, bolos, e frutas que ela acredita que precisamos para enfrentar um duro dia. E eu nunca discordo disso.

— Agitada — É tudo que declaro antes de morder um grande pedaço de bolo.

Ouço a mesma pergunta toda manhã desde o acidente. E mesmo sabendo que nada poderia amenizar a falta que meus pais fazem a nós duas, ela faz questão de saber como estou.

Perder a irmã mais nova também levou parte dela, compartilhamos da mesma tragédia e Isso não torna o episódio menos doloroso.

Quando saí do hospital, Olga achou melhor morar comigo na nossa casa. Precisava cuidar da sobrinha pequena e sua filha bebê e morava numa casa pequena demais para nós três. Eu também não teria aceitado sair do único lugar que lembrava eles. Naquele momento, só tínhamos uma á outra e nos agarramos ao pouco que podíamos ter de Santhiago e Helena.

Me sirvo de um pouco de café.

— Jess já foi pro campus?

Ela me encara com a expressão cansada.

— Não. Ela não passou a noite em casa de novo. – suspira obviamente chateada.

— Ela pelo menos se deu o trabalho de avisar?

— Deve ter esquecido.

Vejo em seus olhos uma tristeza e preocupação. Jéssica é sua única filha e acabou de completar dezoito anos. Esta saindo com um rapaz faz três meses e esta é a segunda vez que dorme fora.

Para uma menina nerd criada pela mãe num ensino católico e puritano e sempre fez questão de deixar sua mãe ciente de tudo o que acontecia em sua vida, seu comportamento é preocupante.

Jess é o tipo de filha que nunca deixa de atender ao telefone; é uma aluna exemplar que tem uma lista em seu quarto de todos os compromissos e uma agenda que avisa todos com antecedência. Duvido que tenha esquecido de avisar a própria mãe.

Tiro meu celular do bolso e abro uma conversa com minha prima. Digito: Aonde você se meteu, sua louca?

Envio e termino meu café.

— Não se preocupe. Jess cresceu e já sabe se cuidar.

— Nem sabemos que tipo de namorado é esse.

— Não acho que estão namorando. — declaro juntando minhas coisas na bolsa e pegando a chave do carro. — ela me disse que estão apenas se conhecendo melhor.

Ela faz uma expressão engraçada.

— Enquanto dorme com ele? — Pra ela, parece o fim do mundo e continua— Porque não o trouxe aqui? Porque todo esse mistério de não falar nem o nome dele? De onde vem? Ela não tem ido a igreja, e tem faltado as aulas.

— Não sei, tia. — digo me levantando — Mas vamos dar espaço. Jess nunca teve um relacionamento, ela precisa de tempo pra amadurecer as coisas e saber o que realmente quer. De repente ela ainda não sabe se é sério e por esse motivo ainda não viu a necessidade de trazê-lo aqui.

Dou-lhe um beijo na bochecha e sigo meu caminho para o trabalho.

Checo minha agenda do dia enquanto saio da garagem.

A vila Wilderness nos arredores de Lincoln é composta por chalés e mansões estilo vitoriana. Lincoln, no Condado de Grafton é composta por dois mil habitantes e é a segunda maior cidade de new Hampshire.

New Hampshire pode parecer pequeno no mapa, mas suas diversas regiões oferecem uma variedade de atrações, desde vales de rios históricos até picos elevados das mais altas montanhas do Nordeste. Estradas que levam a vilarejos e quilômetros de florestas de beleza cênica e parques, lagos convidativos, paisagens rurais que mais parecem cartões postais e uma riqueza de oportunidades de diversão ao ar livre.

Desde criança eu achava que era o lugar mais lindo e limpo para se morar. As casas não têm muros, são rodeadas apenas por jardins magníficos e calçadas de pedras elegantes. É aconchegante e ali todos se conhecem de gerações em gerações. Não há violência ou depredações. Na primavera é ainda mais bonito com todas as árvores esplendorosas, pinheiros e flores dignas de serem pintadas em um quadro.

Quase todas as casas da vizinhança foram desenhadas e decoradas pela minha mãe, que havia sido uma arquiteta paisagista de colocar sorriso e gratidão nos lábios de qualquer cliente.

Foi difícil no início viver como se ela ainda estivesse ali mas eu não pudesse vê-la ou ouvir sua voz.

Minha casa e local de trabalho não são tão distantes. Mantive o escritório de arquitetura que minha mãe abriu próximo a White Moutains, new Hampshire, á 1,2km e quase uma hora de nossa casa, mas completei o local com um espaço funcionando uma agencia de turismo, onde sou guia e professora de escalada também.

Formei-me arquiteta e paisagista e assim não precisei me desfazer de um patrimônio familiar que era a alma de minha mãe e me ajudaria a manter uma casa a sua altura, pois não era um trabalho tão difícil se tivesse bom gosto e um olhar para tendências.

A Brewer Inn compra, reforma, vende e aluga propriedades. Quase sempre fazemos o milagre de transformar lugares falidos em algo tão disputado que as pessoas matariam para ter. Algo que não foi tão fácil.

Após o acidente a empresa afundou e tivemos que vender quase tudo para segurar mas meu sócio, arquiteto, advogado e amigo de infância me ajudou a reerguer tudo.

Foi a opção que escolhi no lugar de me tornar policial e ter que matar pessoas como papai.

Chego rapidamente ao Escritório enquanto penso que sou sortuda por poder usufruir de uma vida, não feliz, mas agradável. E poder mudar a vida de alguém mesmo que por pouco tempo e através de minhas mãos.

— Noite ruim? — Uma voz surge entrando pela porta da minha sala.

— está tão na cara assim? — resmungo abrindo minha caixa de e-mail.

Ele para à minha frente e cruza os braços ao encostar os quadris na minha mesa, observando cada parte do meu rosto. Na adolescência eu odiava que todos os meus sentimentos transparecesse tanto.

Tenho quase 26 anos e ainda nao aprendi a esconder o que sinto das pessoas.

Aí percebo que isso só acontece quando se trata de Kevin e meu psicólogo.

Todo mundo tem um amigo de infância com quem compartilha as melhores lembranças. O meu era Kevin desde o nosso nascimento. Nossos pais eram melhores amigos e vizinhos, como uma família.

Desde o ventre Kevin é meu norte. E quando meus pais se foram, ele passou a ser todas as direções juntas. Ajudou-me a passar por tudo, e atura meu mau humor melhor do que qualquer psicólogo.

— Podia ter me ligado. Sabe que eu iria até você. — sua voz é rouca, mas firme.

Lembro-me de algo que passou a me irritar desde o acidente. A piedade e preocupação das pessoas. Como se eu não pudesse lidar com tudo sozinha. Por 16 anos esse olhar de “estou aqui para ajudar” está sempre me rodeando, principalmente os dias que as sombras me visitam.

Tia Olga, Jess, Sr.Vasiliev, Kevin.. Eu sou órfã e esse título já faz com que as pessoas pensem que preciso do máximo de cuidado e atenção, como se fosse acometida de uma doença terminal.

— Já lidei com isso.

Antes de sair engoli comprimidos suficientes para me acalmar e manter minha mente limpa até a volta pra cama á noite. E ele sabia o que a minha resposta significava.

— Você esta pálida, com olheiras e a expressão de um lobo prestes a atacar.

É irritante, mas ele não vai deixar o assunto morrer.

— Verei Homero logo após o almoço. — resmungo passando a mão nos cabelos.

— Se alimentou direito?

Eu o fuzilo com o olhar e não posso deixar de admira-lo tão de perto. Kevin tem a pele clara e azeitonada. Não pálido. Nem tampouco pode ser considerado branco. Hoje veste jeans azuis e camisa social xadrez preta com listras misturadas em tons de azul, como seus olhos. Tudo nele vibra calor: seus olhos, sua voz, seu cheiro, sua alma... Seus cabelos loiros em corte militar. Kevin é todo sol. Ama praia e está sempre de bom humor.

Quando me olha penso em três palavras. Segurança. Paz. Lar.

— Sim papai. Comi tudo e escovei os dentes quer ver?

Sou irônica e ele sorri.

— Tudo bem, vamos trabalhar. — Cantarola saindo.

Olho para a tela do celular. Nenhuma mensagem de minha prima.

Tento focar em todo o serviço que vem pela frente.

Minha agenda está agitada, mas como sempre organizada. Tenho sessão com o terapeuta ás 14h e depois um grupo de turistas pra encontrar e levar em um tour pela White Moutains.

A parte mais gostosa do dia é quando me torno guia e instrutora. É quando passeio pelos lugares mais belos da cidade.

Sinto-me mais perto do paraíso que tanto ouvi nas missas que frequento desde criança. Não que eu seja de fato Religiosa.

Perto do meio dia ouço batidas na porta. Hora do almoço diário com meu sócio e amigo.

No caminho para o restaurante, recebo uma chamada do Dr.Vasiliev, cancelando a sessão de hoje. Faço terapia desde o acidente, e nunca senti que estava bem totalmente para parar. A verdade é que eu sinto alívio de poder conversar abertamente com alguém que não fosse kevin e eu mesma.

— Os Satorys ficaram com a casa de oeste palmer — Kevin anuncia enquanto nos acomodamos na mesa de nosso restaurante favorito.

— Mirror Lake é abençoado — Afirmo realmente impressionada.

— Eu não sei como conseguiu. Ninguém queria aquela casa. — Kevin também estava impressionado. Mais de dois anos tentando vender um imóvel no meio de um lago que dizem ser assombrado no inverno.

As pessoas alugavam em alta temporada, mas jamais morariam por ser no meio da floresta. Havíamos gastado mais do que o necessário e quase avaliamos a opção de doar para o estado para construírem um forte pra admirar aquela parte do lago.

— Eu sei. É algo rústico e vulnerável demais. A casa perfeita para um grupo de vampiros.

— Eu não moraria lá. Ninguém se atreveria. — Ele passeia pelo cardápio — Mas o casal se encaixou muito bem no perfil da família adams. Disseram que não mudariam nada lá, acredita nisso?

A primeira coisa que eu faria era esconder toda aquela vidraçaria.

A casa era como um chalé exposto. Não havíamos mudado a estrutura, apenas estética. O charme era ser aberta com vidros por todo lado onde deveria haver apenas tijolos e cimento. Era lindo, mas fora do comum.

Recebemos uma ligação no escritório de alguém interessado, não em alugar, mas comprar. A negociação foi rápida e limpa. Tudo por telefone e transação bancária.

— Vamos pedir? — Kevin diz parecendo faminto.

Meu celular toca. Não demoro pra atender.

— Já vamos pedir, cadê você?

“No estacionamento” responde a voz abafada.

Não preciso dizer em qual mesa estamos. Comemos no mesmo restaurante desde pequenos.

— Quer jantar lá em casa hoje? - convida Kevin — Meus pais chegam ás 23h de viajem. Querem te ver.

— Ok. Assim que sair do tour eu te aviso. Parece que tem uma brasileira no grupo de 65 anos.

— É sempre bom ter uma aventureira.

— Oi pessoal

Jess surge de repente com a voz cansada. A encaramos e ela congela á nossa frente, aparentemente envergonhada.

— Me perdoem. — Ela parece arrependida. Mas nem tanto.

— É tudo o que a cinderela tem para falar? — Kevin demonstra a mesma preocupação e insatisfação que meu rosto deve estar demonstrando — Me sinto honrado com sua companhia para o almoço.

Jess se senta de frente para nós.

Fico calada, embora a vontade seja de soca-la. Espero ela falar, mas está claramente sentindo muita vergonha agora. Não só por ter sumido sem deixar rastro, mas por não ter avisado Olga.

Sinto um arrepio na nuca, porque agora estou detectando uma vergonha sem pudor de algo maior do que seu desaparecimento, mas à princípio não consigo identificar. E isso não é nada bom.

— Não sei qual das duas está pior hoje. Está acontecendo alguma coisa que eu não sei?? — meu amigo tenta quebrar o silêncio que se instala. — Deram uma festinha do pijama e esqueceram de me chamar?

Agora ele esta sendo irônico.

Até então nada havia me feito pensar que algo ruim poderia estar acontecendo. Ao longo desses três meses minha prima estava sempre eufórica, animada e falante; preocupada com a aparência ao comprar roupas novas, andar perfumada. Quadro clínico visível de paixonite aguda e eu confesso que nunca tinha visto ela tão feliz.

Jess não é namoradeira. Mas ultimamente ela estava diferente. Sua pele é muito branca, como Olga e minha mãe. Genética essa que eu não havia herdado do lado feminino, pois como meu pai eu sou morena. Seu rostinho é redondo, o que deixa claro que não havia mudado nada desde os doze anos. Seus olhos castanhos com profundas olheiras, hoje, não estavam cobertos pelos óculos de grau que sempre usou; nem seus cabelos negros estavam como de costume num rabo de cavalo curto, hoje pareciam cheios e desarrumados.

Algo não está bem e isso faz meus ouvidos apitarem. Já sentiram essa sensação que embrulha o estômago e faz um piiiiiii dentro da sua cabeça, como se os tímpanos estivessem despertando?

“Será que Jess está se drogando?” Penso. “O namorado era da pesada e por isso todo esse segredo?”

Resolvo quebrar o silêncio, antes que Kevin tivesse um ataque.

— Está tudo bem, Jéssica? Precisa de ajuda?

— Eu tô bem.

É tudo que o defunto sentado a minha frente tem coragem de dizer.

Uma Jess falante e enérgica parece agora um personagem da noiva cadáver. Morta. Expressão sem vida. Como se falar, exigisse muita energia.

A observo levar a mão até o rosto e colocar o cabelo atrás da orelha, para logo em seguida ajeitar o local onde estariam os óculos. Ao que ela se dá conta da inexistência e olha ao redor desorientada. Havia deixado em algum lugar.

“Como não percebeu se é quase cega sem ele?”

Ok. Aqui vai o lado ruim de fazer terapia. Você começa a enxergar de forma clínica as pessoas ao seu redor. Você se apega a detalhes rotineiros, vícios e manias que quase ninguém percebe.

— Você está de porre, Jéssica? -questiona Kevin — Pelo menos se lembrou de usar camisinha?

Bom, agora ele parecia pai dela também, como fez comigo essa manhã. E eu não tiro a razão. Sou uma mãe preocupada agora mesmo.

— Onde esteve? — Sou direta e estou prestes a agredi-la se não me dar mais do que um “Eu tô bem”

— Eu... — Gagueja respirando fundo, como se sua resposta fosse delicada demais. — Eu não sou assim, gente. Eu só não sei o que aconteceu. Não me lembro de quase nada. Raziel e eu fomos a uma festa e...

Ela para vasculhando sua memória.

— Drogaram você? Esse seu namorado...

— Não! — Se defende — Raz não faria isso comigo. Não sinto gosto de nada alcoólico, acho que não bebi. Eu só... Só apaguei. Não me lembro de quase nada. Só estou um pouco cansada.

— Se lembra de onde foi essa tal festa?

— Onde o desgraçado está agora? — Questiono após a pergunta de Kevin. E sinto vontade de surrar quem fez isso.

Não era o perfil dela beber ou se drogar.

— Ele me levou para a floresta, uma casa grande, havia uma festa. — Ela fecha os olhos tentando lembrar. — Me lembro depois de entrar no carro para ir embora e apagar... Quando acordei estava na casa dele. Sozinha. Então peguei um taxi pra cá.

Nós três nos encaramos. Muitas perguntas pairam no ar, mas eu só sinto vontade de socar alguém. Jess era um bom alvo. Devia estar louca por agir feito uma adolescente irresponsável.

— Tá legal — Kevin pega o cardápio — Quem nunca tomou um porre num encontro?

— Principalmente quando ele é ruim. — Sou má e eu sei disso.

Inesperadamente ela ri. E kevin também.

— Acho que mais alguém aqui está precisando de um porre e um sexo ruim.

As risadas aumentam e eu faço um bico tentando não rir. Isso diminui o clima pesado e por um instante penso que ela talvez esteja bem. Eu sei como é beber e esquecer quase uma noite inteira.

— Mesmo não me lembrando de muita coisa — Diz Jess fazendo sinal para o garçom enquanto foca em seu pedido. Parece que saiu de um filme de terror. — Me sinto. Muito... Realmente satisfeita. Um pouco dolorida.

— Nossa. Poupe-nos dos detalhes sórdidos. — peço fazendo-os riem de novo.— Na próxima, pelo menos lembre de informar sua mãe. Algo além de apenas uma mensagem de texto.

Percebo que ela realmente parece satisfeita. Bochechas coradas e ar de rainha da Inglaterra.

E talvez ela estivesse certa e eu precisasse de sexo sem compromisso. Este dia não fez meu humor melhorar. O meu segredo era, sexo sem compromisso.

Eu geralmente saio a noite, transo com alguém que me chame atenção e depois nunca mais o vejo. É mais fácil, prático. Apenas necessidade.

Não tenho tempo para relacionamentos sérios. Sem espaço para amar. Fiquei com tudo o que restou de importante e é isso que torna minha vida superável.

Perdi minha fé, embora ainda me force ir às missas dominicais na mesma Paróquia que ia com meus pais. Todos os domingos após aquele. Todos os meses e anos até hoje. Jamais deixei um homem chegar perto demais do meu coração.

Dr. Vasiliev diz que tenho medo de ser deixada sozinha novamente. E por isso criei um muro de proteção onde só exitem 3 pessoas nele. Olga, Jess e Kevin. Porque eu não confio nem em mim mesma para me manter dentro. Ele ainda tenta acessar minha mente para entender como consegui continuar vivendo de forma equilibrada sem uma âncora para me prender a esta vida. Seu histórico diz que pacientes como eu, tende a enlouquecer, se drogar ao ponto de querer se matar. Mas eu convivo com minhas sombras e prendi a dividir minha vida com elas.

Sou uma sobrevivente que precisa continuar vivendo, pra valer a pena o esforço que o destino fez pra me manter viva naquele carro quando tudo o que havia nele tinha sido esmagado.

Terminamos nosso almoço com o clima leve. Parecíamos três amigos que cresceram juntos e desfrutavam de um momento descontraído.

Mesmo que a raiva não tivesse dissipado totalmente, eu entendo que Jess precisa de espaço e tempo pra confiar no relacionamento deles, até o ponto de apresenta-lo pra sua pequena família.

— Você veio de taxi. Quer ir pro escritório conosco? — Convido

— Não dá. Preciso ir pra casa pra falar com minha mãe. Você tem algum tour hoje?

Olhamos pro relógio.

— Sim. Daqui á duas horas vou encontra-los no Caves Park. Eles querem começar pelo Flume Gorge.

— Posso te encontrar no Mirror lake?

Consigo sorrir.

— Claro. — Puxo minhas chaves do bolso — Vai com meu carro. Volto pro escritório com o Kevin e uso a van da empresa depois.

Ela aceita.

— Obrigada. Te vejo depois, Kev.

Ele sorri e lhe beija no rosto.

— Se cuida. E tenta aparecer com esse namorado ou teremos que acionar meus amigos do FBI.

Jess segue para o estacionamento. Eu e Kev seguimos a pé para o escritório, que não era longe. Preciso me arrumar para guiar.

Humilhada pelas sombras

O parque Nacional de New Hampshire é a atração principal de quem visita os Estados Unidos, é lá que encontrarei os turistas que desejam conhecer a tão famosa cadeia de montanhas do apalache.

E enquanto dirijo pela Kancamagus Cornway, que também liga Lincoln a North Cornway, aprecio a beleza que somente essa estrada oferece. Um espetáculo de cores e montanhas que levam até o park, e te faz sentir o desejo de parar e tirar uma foto, ou pintar um quadro.

Meu coração sempre aperta quando faço a curva acentuada próximo ao local do acidente onde perdi meus pais.

Entro com minha pequena Van no estacionamento externo do Park. Está movimentado, estamos na primavera e isso atrai os amantes da natureza. Pego minha mochila, celular, mapa alterado com os principais destinos daqueles turistas em específico e aperto as minhas botas de exploradora que ajuda a guiar de forma confortável e elegante.

Caminho um pouco até o Caves Park e aguardo. Não espero muito e meu grupo chega.

— Olá! Me chamo Katherine e serei a sua Guia. — Digo sorrindo e recepcionando um grupo de 5 pessoas. Entre elas uma Cigana brasileira de 65 anos que fala inglês fluentemente e é viúva á 15 anos. Fico curiosa e pergunto o motivo de estar viajando sozinha.

— Meu marido apenas mudou de roupagem. Ainda está aqui ao meu lado. Prometemos um ao outro viajarmos por todo o mundo. — Ela abre um sorriso amarelado — E antes de chegar a minha vez, aproveitaremos o máximo.

Sinto um arrepio com sua resposta. Acho fofo ela manter o esposo vivo em suas lembranças e mesmo nesta idade estar viva, bem disposta e feliz, seu ar é jovem apesar das rugas e sua energia é forte apesar de seu corpo pequeno.

Me vejo como ela aos sessenta anos. Com todos esses pontos, menos a lembrança de um marido morto, porque preciso ser sincera, ficar sozinha é viciante e tem suas maravilhas.

Pegamos o teleférico para subir. E como sempre, os turistas vibram de emoção com a beleza do park. Não posso negar, cada vez que o exploro consigo ficar impressionada.

— Kate porque as montanhas levam esse nome? — Pergunta a turista mais velha. A todo tempo ela parece interagir com alguém, que não é nenhum dos amigos turistas que ela fez. Nem comigo.

— Toda a White Mountain é composta por árvores Vidoeiro-branco, também chamada bétulas brancas. Há quem diga que as cadeias montanhosas que faz parte dos montes apalaches tem esse nome por causa das Bétulas, mas acredito que seja pela beleza que ela possui no Outono e Inverno. Tudo é lindo por aqui nessa época.

Como uma cobertura branca num sorvete de chocolate.

O teleférico nos permite ter uma linda visão do alto. Nosso Tour se dividirá em 2 dias que inclui a estação de esqui Loo Moutain, trilhas, alguns lagos históricos, o monte whashington, o zoológico Polar Caves Parke e uma escalada no Alpines adventures.

— Dá pra ver que você gosta muito deste lugar.

O comentário de Kahina, a senhora brasileira me faz olha-la.

— Venho muito aqui. — Digo num tom baixo — E a senhora não iria acreditar se eu dissesse que nunca me acostumo com a beleza desse lugar.

— Acredito, minha filha. — Ela diz de forma carinhosa. — Você tem uma conexão de outro século com este lugar. Sinto isso quando olho pra você.

Respiro fundo. Como se ela soubesse de tudo que me prende a esta terra.

Cada pedaço do White mountain me faz sorrir. Lembro de quando meus pais me traziam para fazer trilhas desde muito nova. Quando criança eu amava o Story2Land, um dos melhores parques de diversões da cidade. Eu amo este lugar e amo ter que visita-lo como guia turístico.

Estar aqui é algo que dinheiro nenhum pode comprar. Estar aqui é fazer meus pais estarem vivos, e de certa forma me sinto como Kahina e me identifico com sua história sobre visitar lugares e manter memórias.

Mesmo assim, estava começando a ficar desconfortável com cada comentário seu.

O grupo é bem animado, mantendo conversas e perguntando sobre cada parte histórica. Pegamos o Flume Gorge que nos leva á vários cantos do parque. É um desfiladeiro natural que nos deixa sem fôlego, é como uma trilha, mas de escadas de madeira se moldando a cada parte do lugar, ao ponto de descermos dentro de uma cachoeira, ou passarmos sobre piscinas naturais e poder toca-las com o pé em determinados momentos.

Vemos o lago Echo lake e o profile Lake. Voltamos a subir por outro lado do desfiladeiro rumo ao monte whashington. É o pico mais alto da região e nos rouba 2h de caminhada com muita dificuldade, de expresso conseguimos chegar em meia hora, me lembro de sugerir para o dia seguinte caso eles decidam voltar ao pico. Em dado momento pergunto se Kahina está bem, mas ela parece uma criança de 10 anos empolgada e cheia de energia.

Estava batendo 22°c embaixo, no cume mais alto estávamos a 9°.

Alguns dos turistas estavam tremendo de frio. No verão NH tem máxima de 28°, o mais quente que podemos esperar da região.

— Este é o Monte Whashington, com 1917 metros de altitude é o ponto mais alto e perigoso do apalache. No inverno os ventos chegam á 372km/h e a temperatura á -45,6°, sensação térmica causada pelo vento de -75,0°.

— Era conhecida como Agiocochook. — Diz Kahina maravilhada. — Casa do grande espírito antes dos colonizadores.

Estremeço mais uma vez, e não é de frio.

— Sim, Kahina. Dizem que havia o espírito de um Valente nesta montanha, que havia sobrevivido ao dilúvio escondido em uma caverna em Lost River. — Mudo de assunto rapidamente — É hora de descer. Quero mostrar a vocês um dos lugares mais bonitos de New Hampshire antes de finalizarmos o tour de hoje.

Começamos a nossa descida, percebo que em 4h começará a escurecer. Preciso apressa-los, não queremos ficar no parque á noite após o fechamento.

— Este é o Mirror Lake. — Anuncio ofegante após nossa chegada. Fizemos uma conexão até as proximidades de Maine, seguimos de carro até um ponto e tivemos que caminhar por pelo menos 40min até ali. Parando apenas para fazer um lanche.

Todos estão claramente exaustos, mas suas câmeras não param em seus cliques, e a satisfação de olhar para um lugar como esse logo venceu toda exaustão física.

— É o lago mais bonito de New Hampshire sob minha perspectiva, e podemos ver algumas construções antigas dentro dele, onde só tem acesso nadando ou com pequenos barcos. Mas todas elas são privadas, muitas inabitadas. Uma das cachoeiras que passamos fornece o lago, mas o local onde desagua é de difícil acesso. Por isso não está incluso no Tour.

Aproximo-me do lago e deixo os turistas explorarem e tirarem suas fotos, encantados. Como não poderiam ficar? O lago é famoso por sua água ser tão calma que reflete tudo ao seu redor. Cada pássaro, cada folha... Cria uma duplicata perfeita. É o mais gelado do parque e chega ate doze metros de profundidade. É cercado por pinheiros e montanhas magníficas.

É um lugar que todos procuram principalmente no fim de tarde, é como estar no céu. Ou pelo menos o mais próximo dele. Aqui, sinto meus olhos lacrimejarem. Porque aqui, foi onde vivi as melhores lembranças da minha infância. Todo fim e semana, separávamos um dia para ficar ás margens do lago. Contando histórias, fazendo pique nique jogando pedras ou simplesmente observando por horas e horas. Doía tanto vir aqui nos primeiros anos após o acidente, que só sentava e chorava até o anoitecer.

Porque eu faço questão de manter esse lugar pra mim? Porque é o que tenho. Aqui não me sinto sozinha. É como se estivessem ao meu lado, mamãe acariciando meus cabelos e papai massageando meus pés. Como cantávamos Patience, do guns n roses e Always do Bom Jovi. Eu consigo sorrir com a lembrança. Meu coração é livre aqui. Como se me sentisse a mesma menina e tivesse congelado no tempo.

Retiro minha garrafinha de água da lateral da calça camuflada e tomo um gole.

Recebo minha dose do Lago espelho e sinto paz. Uma tranquilidade que ioga, igreja e spa nenhum já conseguiu me dar. Tudo se resume a este lugar. A conexão que minha alma tem com cada folha, grão de areia e reflexo...

— Kate!

Ouço uma voz animada me gritar.

É Jessica. Havia esquecido que marquei um encontro com ela.

A vejo se aproximar e lhe abraço.

— Estava te procurando. — ela diz com um sorriso de orelha á orelha.

Olha pra trás procurando algo e diz — Ah, Meninos! Vem cá, a encontrei.

Dois homens se aproximam e eu peço licença ao grupo que me acompanha. Consigo franzir a testa para minha prima que parece uma adolescente eufórica.

— Priminha — Ela diz em tom de surpresa e eu quase não acredito no que ela está fazendo. Jess cruza seus braços com o desconhecido e para bem a minha frente, orgulhosa e feliz.

— Este é Dylan, meu amigo e este é Raziel, meu namorado...

Eu poderia dar uma risada histérica e isso resumiria o estado de espírito de minha prima, eu também poderia brigar como uma mãe que não espera ver o namorado da filha tão cedo, estou com raiva por ter demorado... Mas eu só consegui fixar meus olhos no primeiro individuo para tentar avalia-los enquanto ela completa.

— E esta é minha prima, Katherine.

Um deles é bem forte, pouca coisa mais alto que eu e pele morena como a minha, cabelos negros em corte militar, olhos grandes, uma cicatriz no rosto e um jeito leve, brincalhão. Ele abre um sorriso enorme e estende a mão que pego de forma simpática.

- Kate... Prazer em te conhecer.

Consigo sorrir.

Viro minha atenção para o próximo rapaz.

Raziel.

É esse o nome.

Assim que nossos olhos se encontram sinto o corpo gelar e minha boca ficar seca, como se tivesse peregrinado um dia inteiro no deserto.

Ele estende a mão. Procuro as minhas, porque meu corpo parece ter se despedaçado em um segundo. Estendo a mão vacilante, a sua é grande o suficiente para engolir a minha pequena. Mas não consigo dizer nada. Que ridículo!

— Prazer em conhece-la, Katherine. — Sua voz é grave e dura como um bloco de aço. E ela me atinge, me deixando perplexa e estranha.

Procuro em seu rosto o que pode ter me causado tanta perplexidade. Raziel tem a pele branca, cabelos escuros e longos o suficiente para deixar as pontas tocarem em sua testa firme. Lábios finos e bem desenhados sobre um queixo perfeitamente esculpido. Queixo europeu, com certeza.

Era alto, pelo menos 1,80 e forte, observo pelas veias definidas de seus antebraços. Sua postura é digna de realeza. Uma presença nada comum, pelo menos, nada com que eu já tenha tido que lidar durante minha vida.

Após um breve reconhecimento corporal entendo o que me calou.

Seus olhos. Raziel tem os olhos negros, profundos como a noite e sua iris tem tons esverdeados, como topázios. O problema não está na cor mista e incomun, mas na intensidade como esta me avaliando agora mesmo.

Um arrepio sinistro corre por todo meu corpo. Os olhos de Raziel são como os de um felino. Um leão. Um leão sem alma e sem piedade.

Me dou conta de que ainda seguro a sua mão. Dou um pigarro numa tentativa de achar minhas cordas vocais.

— N... Nome incomum. — Gaguejo e imediatamente quero me socar. Sério que é o que consigo dizer?

Desvio meu olhar dele e foco em minha prima, o que me ajuda a respirar melhor.

Jess está... Feliz. Mas não contrasta com a expressão do namorado. Ele não está radiante, e isso me preocupa.

— Origem Aramaica. — Sua voz grave explica e seus olhos prendem o meu denovo como um predador segura uma presa fácil. — Meus pais eram amantes de anjos caídos — ironiza.

De repente me sinto ser invadida por uma sensação de perigo. As sombras dão ao meu corpo um sinal.

Um alerta, que todo ser humano tem em sua mente capaz de fazer seu coração bombear sangue mais rápido e em maior quantidade para todos os membros, preparando seu corpo para fugir de uma situação que seu cérebro reconheceu como risco. Mas olho ao redor e está tudo normal.

Nenhuma situação que exija pânico.

Mas o pânico me atinge, como na noite do acidente só que sem nenhuma explicação lógica.

Levo a mão ao peito.

“Não posso estar tendo uma crise de pânico agora. Tomei minha medicação esta manha.” Penso comigo mesma.

O ar sai de meus pulmões me deixando desorientada e a sensação é de uma jibóia se enrolando em volta do meu pescoço, lentamente me asfixiando.

— Kate, você está bem? — Jess vem ao meu socorro. — Está tendo uma crise?

Puxo o ar. E tento me controlar.

Está tudo bem, Kate. Respire fundo. Não está dentro do carro. Está em pé. No lugar lindo. Só respira.

Meu corpo se retrai como se eu fosse vomitar. Merda! Que grande hora de surtar.

— Eu estou bem. — Digo sufocada. Queria dizer “Tire esse cara daqui! Não está vendo que ele fez isso comigo?”

Mas minha atitude seria irracional.

Olho para o lago e agacho apoiando o cotovelo nos joelhos e respirando fundo. Como Dr. Vasiliev diz para fazer. E aos poucos vou retomando o controle.

O grupo de turistas está a minha volta, preocupados. Minha prima ao meu lado acariciando minhas costas, me sinto humilhada pelas Sombras. Com raiva, por estar numa situação difícil na frente dele.

Levanto e o encaro. Me surpreende que sua expressão continue intacta. A mesma. Como se soubesse o efeito que causa quando olha daquele jeito para os outros. Algo em Raziel me fez querer vomitar ali. Esmurra-lo.

— Kate, quer ir ao hospital? — Pergunta Jess.

— Não. — respondo tentando sorrir para o grupo. — Vou deixa-los no Hotel e encontrar Kev na casa dele.

Ela assente.

— Foi um prazer conhece-lo, Raziel. — Digo imediatamente chamando o grupo para me acompanha.

Preciso fugir.

— Podemos ir com você.

— Não vejo necessidade, Jes embora precise conversar com você a sós.

— Posso deixar seu grupo no Hotel. — Diz Raziel entendendo meu desejo — E depois encontro vocês.

Respiro aliviada aceitando a deixa. Pergunto ao grupo se tem algum problema outra pessoa acompanha-los ao Hotel. Eles dizem que não. Então seguro a oportunidade de conversar com minha prima e afastar o namorado ela.

— The Notch Hostel — Digo alto para ele. Seguindo-os para fora da floresta. Observo minha BMW Preta, que havia emprestado a Jess estacionada ao lado da minha minivan de trabalho.

— Vão com a Van.

Tiro as chaves do bolso e lhe entrego.

Jess e ele se despedem com um beijo, mas quando a beija mantém os olhos fixos em mim. E isso me causa outra onda de náusea.

— Obrigada.

Digo fugindo para meu seguro carro e os deixando finalizar as despedidas.

Seja qual forem os eventos que se seguirão, eu jamais esquecerei esse dia. Jamais esquecerei a sensação de perigo diante das sombras que não vinham assim tão agressivas e tão de repente faziam anos.

Acho melhor enviar uma mensagem para o Doutor adiantando minha sessão de 1x na semana para o dia seguinte. Isso se eu sobreviver esta noite.

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