Eu não me vi gay, eu me descobri gay. A Solange sempre foi uma ótima parceira, eu a amava e queria muito que ela continuasse sendo a mãe de Benjamim e Estela. Quando eu a perdi, eu perdi a vontade de amar novamente e quando eu o vi se mudando para a casa de frente, eu estremeci – por um breve momento não soube lidar com aquele que me cumprimentava com a cabeça de longe. Fabiana, uma velha conhecida do bairro, estava com ele. Há um tempo ela foi embora daí e a paz pode reinar no condomínio novamente.
- Papai, vizinhos novos! – saiu Estela dando volta com sua bicicleta sem rodinhas; ela era muito esperta e sempre me orgulhava de suas conquistas como uma pai babão.
- Sim querida. Teremos mais pessoas nesse condomínio vazio. Quem sabe não tenha alguns amiguinhos para vocês.
Me senti desconcertado naquele momento, como poderia ter aquele sentimento e naquele momento sem saber quem era o homem de bermudão azul escuro e regata; talvez estivesse fazendo a mudança de seus pais, acredito – era jovem, aparentava ter uns dezenove anos e tinha um porte atlético, seus olhos verdes saltava para quem quisesse observar e seus cabelos amarrados para cima evidenciava um desenho perfeito de perfil – estava há bastante tempo sozinho a ponto de acreditar nos mais insensato desvaneio de um homem carente de trinta e cinco anos.
Entrei em casa e Cláudia, minha assistente doméstica, pegou os dois para dar banho. Não sou rico, não moro num condomínio de luxo, porém de classe média alta devido os meus bons tempos dedicados a vida acadêmica como professor universitário de uma faculdade particular e Solange era concursada na Receita Federal. Éramos regrados, não gastávamos mais do que podíamos e nossas viagens eram sempre paga antecipadamente num planejamento que gostava de fazer no papel; nunca deixamos de nós divertir, nunca nos endividados para viver irresponsavelmente e sempre pudemos usufruir de tempos tranquilos. Quando decidimos nos casar, já tínhamos dinheiro suficiente para comprar esta casa que na época era a mais acabada do condomínio – fui uma decisão estratégica, era espaçosa, tinha área externa nos fundos e a reformamos como queríamos, assim que consegui vender um lote de um terreno que comprei em Bacaxá, região dos lagos na época que acreditava ficar solteiro e surfista para sempre.
Foram bons momentos com ela, eu a conheci, namorei por dois anos, aprendemos a fazer planos juntos e a conquistá-los e agora sou eu e duas crianças, uma de cinco e outra de dois anos e meio.
Como era de se esperar, senhora Beth, ou apenas Beth, está observando o novo vizinho de sua janela indiscreta no meio do Villar Morgado; ela tinha visão da casa de frente a minha que antes, ou melhor, onde os donos se mudaram para Portugal para ficar perto dos filhos e sem previsão de retorno, assim Fabiana – uma garota totalmente pirada cuidando de um bebê de colo, foi denunciada aos pais dela por negligência. Lembro de Isabela brincando e esfomeada cheia de mordida de mosquito – cansei de pedi mais cuidado da parte da mãe que logo resolveu dar a guarda da menina sem pai para os avós e esse condomínio pegou fogo: eram festinhas na frente de casa quase todos os finais de semana, carros paravam na porta a todo momento até descobrir que Fabi fazia programa. Nada muito comum para uma garota que nem ela, tem de tudo, mas odiava estudar e se metia nessas comunidades e seus casos amorosos vinham desses bailes funk pesados. outro dia mesmo estava falando com Carlos, que este condomínio só tem essa pais por causa dela e de um miliciano e policial aposentado que mora mais perto da reserva.
- Seu Túlio, cê viu o pão que se mudou na casa dos Guimarães? Meu Deus, fiquei desconcertada quando o vi. Minha nossa! Se não tivesse na igreja e com meu varão recém presenteado por Deus, levaria um cafezinho para ele.
- Cláudia, senhor Túlio me faz me sentir tão velho!
- É costume Túlio, minha antiga patroa, se eu não chamasse até as filhas dela de senhora, eu levava uma bronca toda vez que a visita e elas iam embora. Ainda bem que te encontrei doutor!
- Nem doutor Cláudia. Se bem que tenho doutorado, mas não é nosso caso. Convivemos um ano e meio juntos! Deixa que meu prato eu lavo e levo os biscoitos para as crianças!
- Está bem então, vou lá namorar mais seu novo vizinho! Quem sabe não vire sua vizinha de porta.
- Vai lá, deixa que eu termino aqui com eles. Como meus filhos estão grandes!
Por um lado, me sinto um carrasco em pleno século vinte e um pagando uma empregada de segunda e sexta, por outro tenho que reconhecer que sem Cláudia minha vida não funcionava. Os irmãos de Solange quiseram se intrometer na minha vida assim que ela morreu, até mesmo meus pais e alguns parentes. Jaqueline, irmã de minha esposa, acreditava que um dia abdicaria o direito de ser pai e deixaria meus filhos nas mãos da avô materna, dona Sabrina e na dela. Nunca foi uma opção deixar meus filhos na mão dos outros. Então, nas barcas encontrei minha aliada na criação dos meus filhos e consegui afastar Jaqueline da minha casa, não era uma relação muito boa sabe, era como se eu tivesse uma nova mulher.
Confesso que fiquei inseguro em relação aquela casa grande. Ainda tinha coisas muito valiosas e de bom gosto no interior dela e minha responsabilidade só aumentava a casa cômodo que visitava – com o molho de chaves nas mãos, coloquei algumas coisas dentro dos dois quartos que tinham a função de depósito e guardava desde obra de arte a armários de cozinha velhos, os quartos eram grandes e no seu auge foi muito bem utilizado por crianças – o primeiro em frente ao meu era de uma menina e o outro de um garoto adolescente – pelo menos dava essa ideia de seus últimos proprietários. Eu queria ficar sozinho por um tempo até me organizar e conseguir dar aula de balé e quem sabe, se aproximar dos meus pais. Precisava da ajuda de Fabi para me posicionar nessa realidade, sem necessariamente estar perto dela. Era bom ter amigos de um passado onde não media consequências – mas entendia que minha vibe era outra e as loucuras de outrora, não fazia parte desse novo eu, fugitivo de uma organização criminosa e cheio de traumas.
- Cadê meu dinheiro Zaci? Não ficarei no prejuízo por sua causa! Caralho, por que fui confiar em você!
- Vou te dar, disse que o dinheiro é seu, mesmo me tratando indiferente aqui. Na Europa você me via de maneira mais amoroso e agora se mostrou um cara todo seletivo!
- A gente aprende, Zaci. A gente aprende.
- Vick, eu sou um ninguém sem você!
- E vai continuar sendo um ninguém! – desligo.
Sem paciência, fechei os olhos não acreditando ter perdido cinco mil euros para o canalha do meu ex namorado. O primeiro, parecia um príncipe e acreditei em cada palavra que ele me disse até ele me convencer em passar a temporada me prostituindo na Europa – não necessariamente dessa forma – a proposta era de nós mudarmos para Paris e tentar uma vaga nas academias de balé de lá; tudo ia bem nos primeiros meses, clientes legais, pessoas legais, mas depois se tornou insuportável, eu não tinha noção do que estava por vir. Eu realmente acreditei nele, meu apego emocional me fez ficar cedo, e precisava fazer coisas..., que nem gosto de lembrar e esse último só deu sequência nos abusos em relação ao meu corpo e o que fazer com ele. Não é justo perder dinheiro tão suado.
Me acalmei e desci para ver o que mais iria guardar e Fabi estava sentado no sofá de estampa de flores que colocamos no lugar após arrumar mais ou menos a sala.
- Fabiane, obrigada por me ajudar, de verdade!
- Qualquer coisa você liga. Meus tios estão morando em Portugal sem previsão de retorno, meus primos moram em apartamentos tão confortáveis e estão acostumados a vida no antigo continente. Pelo menos você cuida da casa e por favor não vai mudar nada aqui, se quiser pintar uma parede ou duas, você pode e se caso atrasar o aluguel, me fala que eu falo com o administrador do imóvel. Como já disse, você tem uma ano para morar aqui, mais, terei que aumentar o aluguel e fazer um contrato caso fique mais.
- Espero que daqui a um ano eu tenha condições de comprar enfim um apartamento para mim. Mas sairei para procurar emprego como professor de dança, até mesmo um operacional por enquanto.
- Sabe o que eu faço Vick. Sei que você está traumatizado com a Europa, mas você fala Francês, se dá bem também no inglês, já morou na Espanha e sabe um “poquito” de espanhol... – brincou ela. Se referindo a Casa de Mae Bi, um site adulto e agência de prostituição de luxo.
- Por enquanto eu quero tentar ficar longe disso. Eu nunca quis isso pra mim e quem sabe eu tenha sorte. Qualquer coisa eu volto para o Mato Grosso e meus irmãos terão que me dá a metade das terras da minha avó. Mas também não quero isso.
- Perfeito então! Vou trabalhar, tenho um cliente às 18:00.
O único passo errado na visão dos familiares de Fabiana foi ela ter se metido com um traficante barra pesada na adolescência. Ela sempre estudou nos melhores colégios de São Paulo e chegou a dançar balé comigo até conhecer a Cracolândia de perto. O tralha morreu um lance de assalto a banco e ela se descobriu grávida meses depois – a família só ajuda ela por medo de perder Isabela, a recompensa dos avós por ter suportado uma filha rebelde e problemática. São histórias tão difíceis a nossa que dá para fazer uma longo livro de terror, medo e insegurança e de cara a princesa as avessas – a garota que trocou os mimos de uma tradicional família de São Paulo para o mundo da prostituição do Rio. No acordo com Fabi, não poderia em hipótese alguma trazer cliente para aquela casa, mesmo estando longe, eles vigiam a casa por aplicativo e como pagarei a metade do aluguel considerável para a localidade – e olha que é mais que que eu estou conseguindo juntar no mês, porém ainda tenho um bônus de três meses como se eu tivesse dado uma entrada que nunca existiu, meus ex ferraram a minha vida!
Vamos Estela, acorda!
- Aí, pai, eu posso faltar hoje, estou com dor nos pés!
- Engraçadinha, vamos! Seu irmão já está arrumado e você nessa preguiça.
- Nossa, é chato ter que ir para a escola.
- Você não quer ser médica?
- Mas quando crescer pai. Enquanto eu não cresço, nem vale fazer tanto esforço!
Estela arrumava muitos argumentos não sei de onde. Acordar cedo nunca foi seu forte desde bebê, Solange precisava pegá-la no colo, mexer nela até ela despertar para mamar. E se não fizesse esse processo direito se tornava uma criança chata o dia todo – amo muito meu bebê rosa, mas tinha que admitir que Estela era muito temperamental e controladora quando queria.
- Vamos filho, toma logo esse leite, já estamos atrasados. Estela, cadê você!
De manhã, minha rotina é sempre essa; acordar, preparar o café para mim e para eles e deixar para Cláudia, preparar as lancheiras e depois arrumar Benjamim que era de boa, e depois preparar Estela e aguentar as mais diversas desculpas para não ter que ir a escola, mas chegando lá, ela mudava seu comportamento e se dava bem com os colegas de sua sala e ainda fazia sessão com uma fonoaudióloga – quando Solange morreu, ela sentiu muito e regrediu um pouco na fala – mesmo com o nascimento de Benjamim ela nunca transpareceu ciúmes excessivo do irmão, mas sempre teve sua mãe até Solange não poder mais ficar em casa.
- Papai volta para buscar vocês, beijos, amo vocês!
- Te amo pai! – ela seguia pelo corredor enquanto seu irmão fazia uma fila para seguir no maternal.
- Oi, Túlio, não é?
- Sim.
- Sou a mãe da Noemi. Você é pai de Benjamim, eu queria te entregar esse convite.
- Ah sim, obrigado!
- É só aparecer na festa, ano passado ela não teve por causa da pandemia, mas agora resolvemos fazer uma festa melhor para ela.
- Certo! Eu darei uma olhada quando voltar da acadêmia.
- Está bem então. Homem bonito né...
Dei meia volta para sair com o carro e deixei minhas fãs falando de mim na porta daquele colégio. Por incrível que pareça, eu tentei flertar uma Vanessa, mãe de Jéssica da sala de Estela e assim que Benjamim entrou para escola, sai duas vezes com Bibiana e dei graças a Deus por ela decidir volta com o marido. Ficamos amigos, até hoje costuma tirar dúvidas quando acontece de meus filhos ficarem doentes, mas não superei Gilberto. Hoje, mesmo não querendo reconhecer que Solange foi sim muito importante na minha vida, mas eu era acomodado com a ideia de ser uma família tradicional brasileira. Gil foi uma aluno meu na faculdade e quando Solange estava no auge da doença, ele se mostrou meu melhor amigo, confidente e muito prestativo até beijá-lo em uma das minhas crises de ansiedade e passar os próximos meses me descobrindo junto com ele. Assim que Solange descobriu ela disse que já desconfiava que eu era homossexual – disse meses termos. Mesmo dizendo a ela que não passava de um deslise e Gil era sim um apoio que precisava na época, eu ainda não aceitei de cara esse relacionamento e acreditava ser fase; resolvi manter esse relacionamento mais discreto possível e nossos encontros eram rápidos e em motéis distantes do meu círculo de convivência. Gil era um cara muito bem resolvido e eu cheio de incertezas e uma esposa para cuidar. Quando chegamos a fazer seis meses juntos, Gil conseguiu uma bolsa para se especializar no Canadá – como ele mesmo disse, não foi algo planejado, ele se inscreveu e passou nos testes para a vaga e não tinha direito de segurá-lo aqui e também não podia abandonar Solange para viver o que eu chamo de encontro de almas – eu realmente o amava e talvez por isso, o deixei partir.
- As crianças estão bem, deixarei elas passarem o final de semana aí com vocês e vejo um presente para levar a Helena. pode deixar que dou um jeito. – disse a Sabrina.
Não gostava de deixar meus filhos com ela, mas eu precisava ter um tempo só para mim e era aniversário da prima deles.
- Cláudia, nesse final de semana eles irão ficar na casa da avó e aniversário de Helena, prima deles, irei ao shopping na sexta e ainda tem o aniversário da Naomi nesse final de semana.
- Compra uma lembrancinha e entrada segunda , dona Sabrina está namorando, vi no Instagram dela!
- É verdade, só eu que não.
- Se você for, sua cunhada está te esperando! – Cláudia ria das Ns situações que presenciou até conseguir me livrar de Jaqueline.
- Jamais Cláudia, jamais!
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