Lá fora o dia continua igual: ensolarado e cheio de caos por causa da movimentação das pessoas. Hoje, no caminho que faço para a faculdade, um senhor me deu bom dia. Isso é bem raro, as pessoas não se importam mais com gentileza hoje em dia, pelo menos não comigo. Na faculdade passo despercebida como sempre, nos intervalos das aulas coloco os meus fones e leio meu livro. É a minha bolha, proteção para quem está dentro (eu) e para quem está fora. Principalmente para quem está fora. Chego em casa, faço minhas atividades, me exercito, como a comida de ontem, leio e durmo... Não fico entusiasmada com o dia seguinte... porque eu sei, tudo será igual...
Enquanto durmo, meu subconsciente irá contar para vocês um pouco da minha vida. Meu nome é Anne, tenho 19 anos, faço faculdade de história, não que seja uma área que me identifico, só escolhi ela... isso aconteceu no fim do ensino médio, daí virei bolsista que é o que me sustenta e depois disso só fui empurrando com a barriga. Eu amo o curso, mas não é para mim. Na verdade, nada é para mim, nem esse mundo. Apesar disso estou me dando um tempo aqui para descobrir de certeza.
Meus pais faleceram a muito tempo e depois disso fiquei em casa de parentes temporariamente. Jogada de um lugar para outro quando as pessoas estavam cheias de olhar para uma menina calada e triste. Sim, reconheço essas características até hoje, mas isso não me incomoda. Essa sou eu, apenas eu. As pessoas não me entendem, por isso é mais fácil fazer de conta que não existo. Legal, né?
Depois que completei 18 anos e consegui a bolsa na faculdade, me organizei para ser independente. Isso já acontece a um ano. Não vejo nenhum familiar durante esse ano inteiro, como eu disse, eles me apagaram por não me compreenderem. Mas estou bem sozinha, na verdade eu sempre estive bem e sozinha. Não importa se eles me davam teto e comida temporariamente, amor temporário foi algo que nunca experimentei e ninguém nunca se deu ao trabalho de me dar. Não lembro muito bem da sensação de ser amada, só sei que era quente. Durante os meus 19 anos não me envolvi com garotos, nem garotas. Não tive Crush e nem amigas. Eu vivo bem sem o amor.
Não faço o tipo dos garotos, minha pele é bronzeada como se fosse canela, meu cabelo é longo e ondulado castanho claro, meu corpo é padrão de uma mulher negra de 1, 65 de altura. Meus olhos são castanhos cor de mel... Nossa, parece que eu sou bonita e faria facilmente o tipo de alguns garotos... se não fosse eu. Esqueci de contar que minha suposta beleza fica escondida na garota calada com o olhar triste, cabelo bagunçado, roupas largas... No fim, só eu me vejo da forma que descrevi.
Não sei como me sinto, ser eu é estranho e vazio. Essa sou eu, e no fundo eu sei que só quero me encontrar, porque estou perdida no meu vazio estranho.
Mais um dia. O dia de hoje parece o de ontem... Céu calmo e ensolarado e chão movimentado. Não quero sair da cama hoje, mas eu preciso.
Tomo um banho rápido e me olho no espelho, não sei porque, mas hoje quero me arrumar e ficar um pouco bonita. Decido usar meu cabelo solto, um lado escondendo o meu rosto e o outro atrás da orelha mostrando um pouco. Meio termo é bom. Vou no guarda roupa e pego um vestido largo ombro a ombro, não quero que ele fique tão largo hoje e coloco um sinto prendendo na cintura. Ficou bem bonito. Nos pés um tênis. No rosto, apenas um batom avermelhado nos lábios. É estranho me ver assim. Na última vez que acordei querendo estar um pouco mais bonita, desisti ao colocar o pé na rua e as pessoas me olharem. Ser vista não é bom. Em pensar nisso já quero amarrar o cabelo, trocar de roupa e tirar o batom, mas eu não vou, eu preciso fazer isso por mim. Eu consigo!
Ao sair de casa já vejo alguns olhares, encontro o senhor do dia anterior, além de me dar bom dia ele também sorri, retribuo mostrando um sorriso triste, mas é o único que tenho. Na faculdade faço o mesmo que nos outros dias, a diferença é que algumas pessoas me perguntaram sobre a matéria. O mais engraçado e também triste é que a menina que senta do meu lado a mais de um ano me perguntou se sou nova. Me sinto estranha por ser vista, mas me sinto bem por ter conseguido sair de casa sem minha capa da invisibilidade.
Voltando para casa, faço o mesmo caminho de sempre. É quase meio dia, a rua tá bem quieta e o céu está fechando como se a qualquer momento fosse chover. Fico olhando para os lados e percebendo que a movimentação é menor do que normalmente. Sem perceber alguém vindo na minha direção, me choco com essa pessoa e caio no chão. É tudo muito rápido, a pessoa se agacha e me pergunta se estou bem, sinto um ardor nos cotovelos e também gotinhas de chuva. Olho para a pessoa e também sinto falta de ar. Tem um garoto na minha frente com olhos preocupados e cuidadosos. Ele avalia os meus cotovelos e me coloca de pé no mesmo passo em que respondo que estou bem.
- Precisamos nos abrigar, vai começar a chover forte.
Ele diz me conduzindo até embaixo de uma parada de ônibus. Ainda estou querendo silenciar os meus pensamentos para enfim respondê-lo. Olho ao redor e por incrível que pareça as pessoas se dessiparam e estamos sozinhos.
- Você realmente tá bem?
- Sim, estou. Não se preocupe.
Dou o sorriso mais sincero que posso e então ele relaxa. Acho que ele não encontrou o meu sorriso quebrado, ou apenas ignorou a parte quebrada.
Nem percebi, mas minha casa é logo de frente da para de ônibus que estamos. Então, perdida nos meus pensamentos ele me puxa de volta.
- Sou Rafa...Rafael. Sei que não é o melhor momento para apresentação já que te atropelei.
Dou mais um sorriso sincero e respondo: - Não se preocupe, eu também estava um pouco distraída. Sou Anne.
- É bom conhecê-la, Anne.
Ele diz essas palavras olhando nos meus olhos e me deixando mais uma vez sem ar. Já não escuto mais os pingos de chuva, só a voz dele. Sem reação apenas repito o comentário dele.
- É bom conhecê-lo, Rafa... Rafael.
Ele sorri. É um sorriso lindo, mas parece tão quebrado quanto o meu.
- Posso te deixar perto de casa se você não quiser ir sozinha, eu moro por aqui.
- Acho que você já deixou, moro logo ali.
E aponto para minha casa. A chuva está aumentando. Inconsciente, digo: - Tenho um guarda chuva, você pode usá-lo para chegar em casa, ou se preferir pode esperar a chuva passar.
As palavras saem rápido demais e só depois percebo que convidei um estranho que acabei de conhecer para minha casa. Logo em seguida percebo que falei mais com o Rafa em minutos do que com a minha turma da faculdade de um ano.
- Se não for incômodo para você.
- Não é.
Então, corro em direção a minha porta e ele me segue. Quando abro a porta ele entra logo depois de mim.
- Eu tenho umas camisas e calças masculinas grandes, acho que cabem em você. Quer tomar um banho e trocar de roupa?
- Não quero abusar da sua gentileza, Anne. Agradeceria se você me emprestasse o guarda chuva, te devolvo logo.
Olho por fora da janela para analisar se a chuva está muito forte para o meu pequeno guarda chuva aguentar. É nessa hora que tenho um susto e o Rafa percebe. Olho para o relógio, é meio dia... não é possível! O céu está escuro como se fosse noite, a chuva não para de cair. Ligo a televisão para ver se há alguma reportagem explicando o que está acontecendo. Tudo o que eu faço Rafa me segue com os olhos. Na televisão há um repórter dizendo para não sairmos de casa, essa chuva é maléfica por causa da coloração do céu em pleno dia. Ele alerta que as pessoas que se molharam com a chuva estão isoladas porque andam tendo uma reação alérgica. As últimas palavras me assustam: - Há um vírus na chuva e ele é facilmente disseminado.
Entro em choque. Os olhos do Rafa demonstram preocupação. Há caos no mundo e caos no meu coração.
Passamos vários minutos imóveis depois de ouvir a notícia. O mundo está de cabeça para baixo. Estou apavorada, mas tentando ser racional.
- Rafa, acho melhor a gente tomar um banho e colocar roupas secas, além de limpar onde quer que tenhamos molhado.
Quando se vira na minha direção percebo pelo seu olhar as várias perguntas que se formam na sua cabeça, são as mesmas que estão na minha. Tomar banho vai resolver? o que esse vírus faz? Ainda estava claro quando pegamos a chuva, isso quer dizer alguma coisa? A gente vai ficar bem?... Tento não pensar nas interrogações que surgem uma atrás da outra. Apenas respiro e digo:
- Ficaremos bem. Vamos tomar um banho, enxugar a água e ver as outras notícias sobre o que está acontecendo. Não vamos nos precipitar, tá bom?
Não sei como consegui, mas falei de forma controlada e suave, isso visivelmente o acalmou e a mim também.
- Tá bom. Obrigada, Anne. Manter a calma é crucial e acabei fugindo dela um pouco.
- Vai ficar tudo bem. Pode ir primeiro, tá?! Vou lavar as mãos e pegar as roupas para você.
- Grato.
Ele tomou banho primeiro e eu fui logo em seguida, enxugamos e fomos desinfetando onde tinha água da chuva e ficamos de frente a TV tentando entender tudo o que estava sendo dito pelos jornais de notícias. Aparentemente era um vírus mortal que tinha atingido o mundo inteiro. Pelo que entendi choveu aqui e em todos os países do mundo ao mesmo tempo e por todo lugar também está escuro como a noite. Entre os sintomas do vírus estão febre, dor de cabeça, falta de ar e desmaios... Agora são 14:30 da tarde, mas o céu se mostra como se fosse 20:00 horas da noite. A chuva não parou desde que começou e não se ouve nada na rua. Alguns cientistas já pegaram amostras da chuva, mas aparentemente é uma chuva normal. O contágio do vírus é pela chuva e por contato físico. Já há óbitos e vários indícios que se o vírus estiver em você, você vai morrer independente da idade ou de como está a sua saúde. Minha cabeça está girando em um ciclo infinito de alguma coisa que não consigo nomear. Olhei para o Rafa e quis abraçá-lo, acho que partilhamos o mesmo sentimento agora. Mas da maneira que estou, tenho medo que o meu abraço não seja benefício. Então esqueço. Lembro que não almocei.
- Você já almoçou?
Ele fica em silêncio por um estante tentando entender o que eu estou tentando fazer. Vejo confusão em seu rosto. Até eu estou um pouco confusa. Como eu posso falar de comida, sendo que acabamos de ouvir que provavelmente, muito provavelmente iremos morrer?! Nossa, eu sou louca! Tento me explicar.
- Desculpa, eu só senti um pouco de fome e de forma espontânea pensei que você também não tivesse comido e perguntei sem analisar o que estava saindo da minha boca.
- Tudo bem. Só fiquei um pouco atordoado com a pergunta, ainda estou tentando processar o que acabamos de ouvir. Eu ainda não comi, quando nos encontramos eu tinha acabado de sair do trabalho e estava indo para casa justamente para comer.
- Ah, então vou fazer alguma coisa pra gente. Você gosta de macarrão com queijo?
- Claro! Posso te ajudar.
- Seria ótimo.
Enquanto fazíamos o macarrão não conversamos muito, acho que a nossa cabeça ainda estava em tudo o que aconteceu num intervalo tão curto de tempo. Ele estava pensativo e eu também. Terminamos de comer e ficamos sentados no sofá ouvindo várias outras notícias e a quantidade de óbitos subindo progressivamente.
- Rafa, acho que precisamos de um tempo dessas notícias para tiramos nossas próprias conclusões, você não acha?
- Acho que sim. Não sei se aguento ouvir mais a quantidade de mortos.
Desligo a televisão. E pretendo fazer o mesmo que costumo fazer quando preciso pensar. Vou até a cozinha faço um chá pra gente, pego dois lençóis e sento no sofá entregando para ele um lençol e uma xícara. Me sinto segura com ele, então peço que se enrole e comece a beber o chá. Também digo que ele pode me dizer o que está pensando, se quiser.
- Estou assustado, não sei muito bem o que dizer.
- Eu sei, me sinto do mesmo jeito. Sendo sincera nunca esperei muito da vida, eu nem sabia se ela era para mim, mas vendo agora que posso perdê-la, me arrependo. Eu deveria ter feito mais coisas.
- Eu também. A única coisa que se passa na minha cabeça é arrependimento.
Ele diz essa frase com tanta tristeza que meu coração se parte só pelo som de dor que essas palavras formam. Quero perguntar de quê ele se arrepende, mas não consigo. Eu não sinto que tenho esse direito. Quando levanto e estendo a mão para pegar a sua xícara, toco levemente a sua mão e me assusto, tanto que a xícara cai no chão e se quebra. Não ligo para xícara, não ligo que estou pisando nós cacos de vidro e cortando o meu pé, não ligo que ele é um estranho, apenas vou na direção dele e coloco a mão na sua testa... ELE ESTÁ ARDENDO EM FEBRE!
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