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Amor Para Libertar

Capítulo 1

“Mais um dia!” - estou parada na frente da janela do meu quarto olhando a paisagem. Tento me obrigar a caminhar para o banheiro e tomar uma ducha rápida e colocar uma roupa o mais rápido possível.

Meu sobrenome devia ser atraso. Pego uma blusa de manga comprida, calça bailarina, meias e tênis. Vou até a janela e abro uma fresta e o vento gélido saúda meu rosto.

Mais um dia de frio intenso. Pego um casaco e um par de meias grossas, meia calça e começo a me vestir.

Uma batida na porta me avisa que minha amiga já se levantou e deve estar pronta para mais um dia de trabalho.

- Estamos atrasadas. – ela fala da porta.

- Desculpe. Não dormi direito mais uma vez. – falo.

- Então anda logo. Seu café já está na mesa e vai esfriar. Se é que já não está frio.

Coloco a camiseta abrindo a porta e estou de frente com Mikaella. Olho em seus olhos e vejo que ela deve ter dormido menos que eu.

- Cansada? – pergunto

- Não vejo a hora de acabar este concurso logo e podermos descansar e curtir um pouco a cidade. – ela caminha pelo pequeno corredor do minúsculo apartamento que alugamos por estes meses.

- Pensei que queria ir embora assim que acabasse. – falo

Ela se vira e me olha com seu sorriso predatório.

- Sem conhecer um gato? Jamais. Acertei mais um mês de aluguel e como sei que vamos ganhar o concurso, ficaremos por mais algum tempo.

Dou risada e pego a xícara de café tomando alguns goles da revigorante bebida. Pego o sanduíche de queijo branco e depois de uma mordida, visto meu casaco e coloco um gorro  sobre meu cabelo trançado. Luvas e um cachecol.

O frio aqui é implacável e sofro com este tempo, assim como Mikaella. Somos de uma cidade mais quente.

Pego minha bolsa, desligo a calefação e vamos para a rua. Mikaella choraminga pelo frio e dou risada. Olho em sua direção e vejo que ela está como sempre, mas pego meu cachecol e passo por seu pescoço.

- E você? – ela fala batendo os dentes.

Levanto a gola do meu casaco e sinalizo para um táxi que se aproxima. Peço que nos leve até Hospital Infantil Joana Gusmão.

Uma cidade litorânea que nos castiga no inverno com um frio cortante. Descemos, pago a corrida e caminhamos para a parte de dentro onde deve estar bem mais agradável que o lado de fora.

Entramos e todas as meninas que trabalham hoje começam a sorrir e nos cumprimentar. Vamos para a parte mais funda e chegamos a uma sala de portas duplas de vidro. Do lado de uma pequena sala de espera.

Estranho o fato de ninguém estar ali nos esperando e olho o grande relógio na parede do fundo e vejo que ainda faltam dez minutos.

Abro as portas e vou até as janelas e aciono a abertura das cortinas. Mantenho as janelas fechadas pois o frio deve ficar do lado de fora.

Coloco minha bolsa na grande gaveta de uma mesa que tem num dos cantos e Mikaella faz o mesmo. Ela tira seu casaco, luvas e cachecol e vejo que por baixo está com uma regata preta e calça legging também preta, meias que chegam ao seu joelho cor-de-rosa.

Vejo suas tatuagens surgirem. Ela tira o gorro e seus cabelos negros caem por suas costas. Ela me olha e faz um gesto que quer dizer “O que foi?”, balanço a cabeça e tiro meu casaco e o coloco nas costas da cadeira, tiro meus tênis e calço minha sapatilha de dança.

Mikaella vai até o aparelho de som e coloca uma música para tocar e ficamos fazendo alguns alongamentos. Ela faz alguns movimentos, dou risada da sua cara de espanto ao parar e dar de cara com Clara.

Clara é uma morena de cabelos curtos e castanhos, olhos cor de mel que é assistente de um dos diretores do hospital. Ela sempre vem nos informar quando teremos visitantes que querem ver como andam as coisas por aqui.

Clara entrou em contato comigo há três meses com uma proposta de levar um grupo de dez meninas que estão em tratamento no hospital para um concurso de dança e depois de dois meses árduos de aulas estamos prontas para apresentar nosso trabalho.

Mikaella e eu sempre trabalhamos com crianças. Nascemos em São Paulo mas fomos criadas em Brasília devido ao trabalho de meu pai e de sua mãe.

A proposta foi tão irrecusável que nem pensamos para onde íamos e acabamos arrumando as malas e vindo para cá numa viagem de horas.

Como o concurso é para várias categorias inscrevi Mikaella e eu, nos apresentaremos na categoria adulto. Estou nervosa, não pelo concurso mas pela carga emocional que ele me traz.

Meu maior defeito é ser perfeccionista.

Clara se aproxima já nos falando.

- Alex, hoje vocês terão a visita do dono da empresa que realizou o trabalho de construção da nova ala hospitalar. Eu fiquei atarefada e acabei não tendo tempo de avisá-la ontem.

- Tudo bem, vamos nos preparar para recebê-lo.

Vejo as alunas chegando aos poucos, tirando seus casacos e calçando suas sapatilhas, se colocando em posição.

- Bom dia meninas queria avisá-las que hoje temos visita e espero que seja breve para não atrapalharem nossos ensaios. Tudo bem?

- Só espero que façam como os outros e tudo ficará bem. – fala Mikaella

Isso quer dizer que eles entram assistem e vão embora sem nem notarmos sua passagem. Dou risada e Clara sorri.

- Bem, dessa vez vai ser um pouco diferente pois uma das pessoas gostaria de conversar um pouco com você, Alex. – ela fala e olho na sua direção franzindo as sobrancelhas.

- Posso saber o motivo? – pergunto

- Ela conhece seu trabalho e já te viu dançando...

Dou um aceno de entendimento e vou até Mikaella para ajudá-la a alongar e aquecer a musculatura das meninas.

Peço para as mães voltarem depois da aula e todas saem calmamente. Fico observando a porta do elevador se fechar.

Clara já se foi antes de poder perguntar quem é essa pessoa e fico imaginando quem poderia ser. Meu passado é cheio de mistério para algumas pessoas e apenas Mikaella sabe por tudo que passei. Ela sempre esteve comigo.

Olho para ela e vejo como se dedica a cada coisa nova e dou um sorriso. Recordo do dia que nos conhecemos...

 

Estava trabalhando na antiga escola e ela chegou perguntando se poderia aprender a dança. Dizia que era desengonçada.

Ela virou e me disse:

- Se me fizer dançar eu juro que te sigo até o inferno.

Dei um sorriso e respondi:

- Fácil. Então se prepare pois de agora em diante vou ter uma amiga para o resto da vida.

Capítulo 2

Mikaella tem vinte e oito anos e eu estou com trinta e oito. Somos amigas há seis anos e ela nunca me deixou.

Ela se aproxima e fala baixinho:

- Que cara é essa?

- Lembrei do dia que nos conhecemos.

- Nossa você poderia lembrar de tanta coisa e lembra justo disso? Está nostálgica hoje?

- Talvez por saber que falta pouco para irmos para casa. – respondo.

- Você quer mesmo ir? Pensou na proposta de Klaus de irmos para Porto Alegre e ficarmos por lá?

- Ainda não sei o que vou fazer. Pensando no que será melhor mas quero ir para casa por pelo menos duas semanas. Preciso ver minha mãe.

- Ok, vamos segurar as pontas. Já que amanhã é o grande dia.

Sinto um frio percorrer minha espinha e sei que é pela expectativa da apresentação que iremos fazer.

Balanço a cabeça e começo a fazer as meninas dançarem e a repetirem a coreografia até que tudo esteja adequado.

Estamos na terceira passagem quando vejo Clara surgir com um grupo de pessoas. Vejo-a conversando e apontando para a sala de forma generalizada.

Ela os acompanha até as cadeiras a direita da sala e eles se acomodam silenciosamente.

Mikaella se aproxima e me olha com cara de espanto.

- Você viu quem é? – sussurra

- Qual a parte de passarem despercebidos, você não entendeu? – pergunto

- Alexandra! Você está de frente para...

- Alex? – escuto Clara me chamar – Poderia vir até aqui, por favor?

Meu olhar deve ser mortal, pois ela chega a dar um passo para trás. Caminho até ela e antes de alcançá-la olho na direção da Mikaella e faço um gesto para continuarem.

Ela chama as meninas e começa a ensaiar novamente. Olho para Clara e ela está um poço de nervoso e me puxa pelo braço, nervosa. Me faz parar em frente a uma senhora de cabelos loiros quase brancos num corte channel clássico que a deixa ainda mais jovem.

Sou saudada por olhos azuis expressivos. Ela não aparenta ter a idade que deve ter. Seu sorriso caloroso aumenta conforme me aproximo. Retribuo sem sentir.

- Alex esta é Catarina Bittencourt, ela é uma das nossas maiores colaboradas junto com seus filhos, Ivan Bittencourt e Enzo Bittencourt.

Olho para Clara e ela percebe que não estou confortável com essa revelação. Estendo minha mão e aperto a sua delicadamente.

- Prazer em conhecê-la Sra. Bittencourt. – respondo.

Seu caloroso sorriso me abraça e apesar de tudo me deixo ser presa em um breve abraço.

- Você é uma moça adorável e estou muito feliz por ter finalmente aceitado vir ajudar nossas crianças. – ela fala em sua voz suave cheia de uma doçura que me deixa desconcertada – Tive sorte de vê-la dançando em São Paulo e Rio de Janeiro e sei que você tem muito a doar a estas meninas. Já está com seu estúdio montado nesta cidade?

- Não, senhora, assim que terminar este trabalho retorno para casa. Tenho algumas propostas, mas nada acertado ainda. – respondo e vejo seu olhar se entristecer.

- Entendo. Bem, esses são meus filhos Ivan e Enzo, falei a eles sobre sua apresentação e estão muito curiosos em vê-la dançando. – sua voz tem uma nota de alegria quase contagiante.

Olho para o mais novo e como ele se mantém ereto me olhando com cara de poucos amigos apenas aceno ligeiramente com a cabeça. O outro parece ser mais velho e estende sua mão e aperta a minha por mais tempo que o necessário.

Sou apresentada a um casal que os acompanha e descubro que são Bruno e Bárbara. Esta é uma linda mulher com uma beleza única e exótica.

Assim que aperto sua mão ela fala de sua paixão pela dança moderna e ficamos conversando por alguns minutos.

Olho para Mikaella e vejo que já está começando a se esgotar. Peço licença e caminho para trocar de lugar com ela.

Apesar de estar de costas sinto um arrepio passar por meu corpo. Me obrigo a caminhar.

Quando viro posso ver que o Bittencourt mais novo me engole com olhos nada amigáveis.

Capítulo 3

Olho para Mikaella e faço sinal para que volte a música. Os primeiros acordes chegam aos meus ouvidos.

As meninas se posicionam e a dança começa a encantar. Fico na frente olhando os movimentos e acompanhando. Olho para minha amiga e vejo que seu olhar está do outro lado da sala.

 

Agora eu vou lhe dizer o que fiz por você

50 mil lágrimas eu chorei

Gritando, iludindo e sangrando por você

e você ainda não me ouve

(Eu estou afundando)

não quero a sua ajuda, dessa vez eu me salvo sozinha

Talvez eu acorde uma vez

sem estar atormentada diariamente, derrotada por você

Justo quando eu pensei que já tinha chegado ao fundo

Estou morrendo novamente

Vou para os fundos e ajudo com o refrão.

Estou afundando

Me afogando em você

Estou caindo para sempre

Tenho que me libertar

Estou afundando

 

Espero-as se preparem para a segunda parte e vamos em conjunto e vejo aos poucos meu corpo relaxar. Me esqueço de todos que estão observando.

 

Manchadas e confusas a verdade e as mentiras

Então eu não sei o que é verdade e o que não é

Sempre confundindo os pensamentos em minha cabeça

Portanto eu não posso mais confiar em mim

Estou morrendo novamente

Estou afundando

Me afogando em você

Estou caindo para sempre

Tenho que me libertar

 

Então vá em frente e grite

Grite pra mim, eu estou tão longe

Eu não vou desabar novamente

Eu tenho que respirar, não posso continuar afundando

Estou morrendo novamente

 

Estou afundando

Me afogando em você

Estou caindo para sempre

Tenho que me libertar

Estou afundando

Afundando

Estou afundando[1]

 

Pelo espelho vejo uma loira alta e magra abrir a porta e se encaminhar até onde os outros estão. Coloco minha atenção na dança e tento não me incomodar com qualquer tipo de interrupção.

Assim que acabamos escuto palmas e vejo Catarina de pé aplaudindo e seu filho mais velho se junta a ela nessa tarefa.

- Descansem por alguns minutos. – falo e percebo que estou quase sem fôlego.

Vou até o som e Mikaella se aproxima e me sussurra.

- O que está acontecendo? Um dos acompanhantes te olha como se quisesse te matar.

- Bem, eu nunca o vi mais gordo ou mais magro, então não sei o motivo para isso.

Dou de ombros e ela coloca sua música para tocar no aparelho.

[1] Going Under – Evanescence

Mikaella se posiciona e começa a dançar. Todos a seguem com os olhos e percebo seu nervosismo aumentar a cada minuto. Ela denuncia seu estado através do sorriso nervoso que tem.

 

Desista do jogo

Antes que outra pessoa te tire da armação

Coloque seu nome na vergonha

Cubra seu rosto você não pode participar da corrida

O passo é rápido demais, você não vai durar

 

Você adora o jeito como olho para você

Enquanto você aproveita nas coisas horríveis em que me coloca

Você vai embora se eu deixar

Minha vida, meu orgulho estão abalados[1]

 

Quando o último acorde toca vou até o aparelho e volto a música, ela apenas ouve minha voz inflexível:

- De novo.

Me coloco atrás dela e começo a dançar. Acompanho seus passos e ela começa a se soltar. Depois de metade da música vejo sua expressão relaxar. Ela me olha pelo espelho e seu sorriso transmite garra e determinação.

Ela trabalha os movimentos graciosamente e quando escuto pequenos cochichos vindos da plateia, olho para Clara num pequeno aviso de que não estou gostando.

Ela se vira para falar mas antes que possa fazê-lo o silêncio retorna.

Mikaella e eu estamos em sincronismo e dou um sorriso que atinge minha amiga.

Sinto o suor banha minhas costas e braços e agradeço pela blusa de manga comprida. Algumas gotas escorrem pela lateral do meu rosto.

A música termina e ela me olha sorrindo de forma matreira.

- Fala. Vamos Alex. Fala que ficou ótimo. – ela está sem fôlego e dou minha primeira risada há dias e balanço a cabeça caminhando até o aparelho.

- Já descansaram? – pergunto e nem preciso olhar para vê-las em formação para mais uma passagem.

Fico olhando as meninas dançarem e acabo sentando no tampo da mesa.

Minha mente se toma pela única preocupação que pulsa em meu corpo: como dançar com todos me olhando.

Pior! Como dançar com esse olhar mortal me perseguindo o tempo todo? Posso sentir seus olhos cravados em mim mas o medo de encará-lo é maior e tento relaxar o máximo possível.

Clara aparece ao meu lado e sorri me fazendo a pergunta que eu mesma me fazia até pouco tempo atrás.

- Você vai dançar?

- Quero? Não, mas preciso. Além disso gostaria de entender porque o Sr. Bittencourt está me olhando com cara de poucos amigos o tempo todo. Estou preocupada por não saber o motivo. – falo

- Eu não entendo porque ele está assim. – ela fala – Sempre foi tão simpático com todas as pessoas por aqui.

- Talvez ele não goste de mim gratuitamente? – questiono

Olho em sua direção e dou um sorriso, ela retribui e me surpreende.

- Ele pode até não gostar, mas onque importa é que as meninas te adoram e isso vale muito mais.

Confirmo com um aceno e olho para ela pensando que talvez haja uma forma de melhorar o clima e faço meu pedido.

- Clara, teria como falar com a Sra. Bittencourt? Explicar o que acontece de forma carinhosa? Ou tentar descobrir o que o deixa tão desconfortável na minha presença?

- Alex não existe motivo para ele não querer que dance. Você é livre para isso.

- Eu sei, mas faça isso. Por mim.

Ela confirma e caminha até onde Catarina está e posso vê-la conversando por alguns minutos.

Posso ouvir Clara sendo honesta e contando que percebi certa aversão de seu filho mais novo por mim, e que me sinto incomodada com isso.

Ela o olha por alguns segundos e depois de bater sua delicada mão no ombro de Clara com um sorriso se vira e fala com ele em tom baixo.

Agora é a hora da prova de fogo e vejo a coreografia das meninas se encerrar pela segunda vez.

[1] Points of authority – Linkin Park

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