Belo Horizonte, 25 de junho de 1998
— Maria Luísa. – Fala Anna passando a mão na barriga por cima do vestido bege que usa.
Ela está deitada na grama junto com seu namorado, Thiago, olhando para o céu azul que Anna acredita estar da cor dos olhos de seu amado.
— O que tem o nome da minha mãe? – Pergunta Thiago se debruçando sobre a namorada.
— O nome do bebê será Maria Luísa. – Responde Anna sorrindo.
— A minha mãe com certeza irá amar a homenagem. – Comenta Thiago sorrindo também. Ele olha para a barriga da namorada, passando a mão e murmura — Maria Luísa...
— Sim – responde a loira de cabelos cumpridos esvoaçantes.
— Mas e se for menino? – Pergunta Thiago.
— Será menina. – Responde Anna convicta.
— Como pode ter tanta certeza? – Questiona o rapaz de cabelos pretos.
— Eu sonho com ela – Responde Anna pensativa — Todas as noites, sonho com a minha bela menina dos cabelos pretos como a noite e olhos azuis como esse céu. Ela será parecida com você em muitos aspectos.
— Então não sabe de fato se é menina? – Questiona Thiago.
— Não– Responde Anna respirando fundo enquanto acaricia sua barriga — Confirmação só aos cinco meses.
— Daqui dois meses. – Conclui Thiago. Ele passa a mão na barriga de Anna — Espero estar de volta quando for para descobrir o sexo.
— Estará sim – Afirma Anna — Tenho certeza que até lá seu pai estará melhor de saúde e poderá conhecer a neta.
— Você deveria ir comigo – Propõe Thiago sentando — Assim já conheceria a família toda.
— Você sabe que eu não posso – Recusa Anna, abraçando as costas de Thiago — Estou em época de provas, tenho meu emprego que com certeza irão me mandar embora quando descobrirem a gravidez. Preciso guardar o máximo de dinheiro possível.
— Eu já disse que irei sustentar vocês duas... Que vamos nos casar, não precisa fazer nada disso. Eu tenho dinheiro para nós dois... Três. – Argumenta Thiago.
— Não quero – Recusa Anna mais uma vez — Por enquanto prefiro ficar assim. Pelo menos até eu conhecer sua família.
— Não se preocupe – pede Thiago — Eles vão amar você... Assim como eu.
— Eu amo você Thiago – declara Anna — Não se esqueça disso.
— Eu não vou esquecer – responde Thiago beijando a namorada. — Prometa que sairá do seu emprego desde agora.
— Mas como eu irei pagar meu aluguel? – pergunta Anna preocupada. — Me sustentar?
— Tome – fala Thiago tirando uma chave de seu chaveiro —Essa é a chave do meu apartamento, fique nele até eu voltar.
— Eu não posso aceitar – recusa Anna, envergonhada.
— Por favor, só quero que tenha uma gravidez tranquila. – Pede Thiago — Eu volto rápido e veremos um lugar melhor.
— Tudo bem – concorda Anna, relutante, pegando a chave — Só até você voltar.
— Eu estarei de volta antes que perceba – afirma Thiago sorrindo
***
Belo Horizonte, setembro de 1998.
Anna caminha tranquilamente pela calçada segurando as sacolas de compras, faltam apenas duas quadras até o apartamento. Assim que vira a última quadra percebe um belo carro preto estacionado, tem certeza de que não é de ninguém que mora naquela rua, pois virou amiga de todos. Aproxima–se do carro e verifica que a placa era de Curitiba, Paraná. Aquela informação fez surgir no rosto de Anna o sorriso que há muito tinha desaparecido. Ele voltou, pensa correndo em direção ao apartamento.
Abre a porta do apartamento nervosa, percebe que a sala está vazia, mas que inalava um perfume feminino diferente do dela. Verifica a cozinha, o banheiro e quando chega ao quarto, se depara com uma figura feminina. Uma mulher de quase cinquenta anos, com belos cabelos pretos presos em coque, usa um terno preto e óculos escuros.
— Olá – cumprimenta Anna curiosa com aquela figura imponente — Posso ajudar?
— Você é Anna Braga? – pergunta, a senhora se levantando elegantemente. Ela tira os óculos mostrando o belo par de olhos azuis.
— Sim – responde Anna — E quem é a senhora?
— Maria Luísa Assunção de Almeida – responde a mulher — Mãe do Thiago.
— Prazer em conhecê-la. – Fala Anna estendendo a mão feliz, mas é repelida pelo olhar gélido da mulher — Ouvi falar muito bem da senhora.
— Bom... Não posso dizer o mesmo de você – retruca a mulher, fazendo Anna franzir a testa sem entender — Meu filho pediu para vir até você e lhe mandar um recado.
— Que ótimo – exclama Anna passando a mão na barriga, chamando atenção de Maria Luísa — Nós estávamos preocupadas.
— Thiago disse para você não esperar mais por ele – revela Maria Luísa — Disse que você deve seguir em frente e esquecer que vocês um dia tiveram algo.
— O que? Como assim? – pergunta Anna chocada — Ele não pode ter dito isso... Ele estava feliz... Ele estava feliz com a vinda da nossa filha!
— Filha? – questiona Maria Luísa com um olhar de desprezo — Pois saiba que o meu filho, assim como eu, não acredita que seja dele... Há quanto tempo estão juntos? Um ano... Dois?
— Quase um ano... – Responde Anna.
— Mas não tem um ano, certo? – questiona a senhora Almeida — Como acha que meu filho irá confiar em uma pessoa que pode estar dando o golpe na barriga. Alguém que aceitou morar no apartamento e viver praticamente à custa dele. Olhe, eu sei que deve ser difícil para você ter investindo tanto no meu filho, mas saiba que não alcançará seu objetivo. Se essa criança for mesmo dele, nós daremos uma pensão digna. Mas é tudo o que terá da nossa família.
— Eu não quero o dinheiro de vocês! – reage Anna transtornada — Eu quero meu Thiago! Por favor, me deixe falar com ele. Eu sei que foi um mal entendido.
— Ele não quer falar com você – alega Maria Luísa — E agora sei o motivo. ... Você é insistente, ardilosa... Com esse rosto de santa , o manipula , envenena ele contra a família. Mas a mim você não engana. Já conheci piores que você.
— Por favor – suplica Anna — Eu o amo, jamais quis nada dele. Eu só quero amá-lo e que ele me ame... E quero que ele conheça a filha.
— Não force uma situação, querida – pede Maria Luísa — Quem me garante que esse filho é dele? Pelo que eu vi você pode estar com o pai dessa criança nesse momento.
— Como ousa? – questiona Anna, ofendida — Eu jamais faria uma coisa dessas...
— Bom... Como irei saber que não é assim? – pergunta Maria Luísa — Afinal nem família você tem... Pode ser qualquer que só quer se dar bem... Uma mulher da vida.
— Pare! – grita Anna esbofeteando sua sogra. — Nunca mais ouse a dizer uma coisa dessas a meu respeito!
— Finalmente a santinha do pau oco, deu as caras – comenta Maria Luísa se arrumando – Me entregue às chaves do apartamento. Volte para a rua que é o que merece.
— Tome – Anna entrega as chaves para Maria — Pode ficar... Só quero que se lembre do mal que está fazendo para Maria Luísa.
— Quem é Maria Luísa? – pergunta Maria Luísa intrigada.
— Sua neta. Maria Luísa. – Responde Anna, séria.
— Acha mesmo que colocar o mesmo nome que o meu, fará com que seja aceita na família? – questiona a matriarca cética — Como você é tola.
— Você não tem nada a ver com a escolha do nome da minha filha – rebate Anna — É o nome que ela merece... Ela fará jus ao nome diferente de você.
— Olhe, Anna – começa Maria Luísa pensativa – Saiba que estou inclinada a fazer um acordo.
— Eu não quero acordo nenhum com você – recusa Anna irritada.
— Não é por você e sim por essa criança que não tem culpa de nada – rebate a matriarca secamente.
— Não preciso da esmola de vocês – alega Anna.
— Essa criança precisará de apoio – argumenta Maria — Então deixe de falso orgulho e aceite a proposta que o Thiago fez.
— Thiago jamais faria uma proposta desse tipo. – Alega Anna.
— Mas não foi uma proposta que a fez mudar para cá? – questiona Maria Luísa.
— Foi – admite Anna, amargurada — Mas é por ter cometido esse engano que eu não irei fazer acordo algum... Nunca.
— Aposto que vai, na hora que apertar – comenta Maria Luísa estreitando os olhos — Ainda mais agora que está no olho da rua.
— Não irei. Darei meu jeito... – retruca Anna, séria. Ela abre o guarda roupa e tira suas poucas roupas de dentro, jogando–as em sua antiga mala.
— Não precisa sair agora –fala Maria se aproximando — Permito que fique até o fim da semana.
— Não – recusa Anna nervosa. Ela fecha a mala e encara Maria — Pode ficar... Com tudo. Mas saiba que eu não acredito em nada do que disse... Assim que o Thiago aparecer, contarei para ele.
— Como quiser – concorda Maria Luísa abrindo a bolsa — Mas caso se canse de ser orgulhosa, tome meu cartão. Assim que me ligar, digo a ele para enviar a pensão.
— Fique com seu cartão – rebate Anna segurando a mala com as duas mãos.
— Jovem tola – comenta Maria Luísa colocando o cartão no bolso da jaqueta de Anna — Sei que ligará.
Anna se vira e sai do apartamento praticamente correndo. Não imaginava que seu dia acabaria daquela forma. Está no olho da rua e não tem para onde ir. Senta na calçada chorando, não consegue acreditar que Thiago estaria por trás de tudo aquilo. Passa mão na barriga, onde o bebê chuta forte. Agora somos eu e você contra o mundo.
Seca as lágrimas e começa a andar pela rua , quando encontra Aline , uma jovem de cabelos punk vermelho que morava no prédio da frente, Anna era única da rua que conversava com a moça. Ela encara a loira preocupada, enquanto se aproxima.
— Aninha tudo bem? – pergunta segurando no braço de Anna que está cambaleando. — O que faz aqui fora? E que mala é essa?
— A mãe dele me tocou do apartamento, estou no olho da rua. — Responde Anna tonta.
— Venha, vamos para minha casa – determina Aline pegando a mala da grávida — Venha morar comigo.
— Você não entende – alega Anna chorando — Eu não tenho como pagar você.
— Anna, não se preocupe – garante Aline — Um dia você retribuirá esse favor. O que eu não posso, é deixa-la aqui no meio da rua. Vamos.
— Obrigada Aline – agradece Anna, emocionada — Eu prometo que um dia retribuirei o favor.
— Eu sei – concorda Aline caminhando ao lado de Anna.
***
Na semana seguinte foi chamada pelo seu chefe e mandada embora. A justificativa foi o corte no orçamento, vendas baixas, mas ela sabia que o motivo real estava embaixo de seu uniforme alheio aquela injustiça. Aline passou a pagar as contas da casa, mas Anna não gosta que sua fique sustentando as três. Precisa dar um jeito naquela situação, porém a única forma seria entrar em contato com Thiago e exigir que ele ao menos reconhecesse sua filha. Mas o telefone deixado por ele estava sempre desligado.
Sente–se perdida , até lembrar–se do cartão de visitas que a senhora Almeida havia deixado. Demorou algumas semanas até de fato ligar para o número do cartão, afinal só ligou porque elas tiveram de mudar do apartamento já que não conseguiam mantê-lo e ir para outro lugar, sendo forçada a escutar a voz daquela que havia revirado seu mundo.
— Maria Luísa, aqui é Anna – diz a jovem séria ao telefone — Precisamos conversar.
— Quer dizer então que está disposta a aceitar o acordo? – conclui Maria Luísa indo direto ao assunto.
— Sim – responde Anna — Mas antes, desejo ouvir a proposta da boca do Thiago. Quero fazer o acordo com ele... Pessoalmente.
— Impossível – recusa Maria Luísa secamente — O Thiago não poderá fazer isso... Ele está ocupado.
— Isso é mais importante do que qualquer coisa que o esteja impedindo de falar comigo – alega Anna irritada — Eu preciso fazer esse acordo com ele.
— Ele está organizando o velório do pai... – revela Maria Luísa sem qualquer pesar — E Não irei perturbá-lo com esse... Problema. Vamos resolver isso entre nós e o deixarei a par de tudo, não se preocupe.
— Meus pêsames, mas eu não confio em você – confessa Anna brava.
— Guarde suas condolências para quem precisa. E eu também não confio em você – retruca Maria Luísa — Mas esse acordo é para o bem dessa criança... Então seja madura e vamos ao que interessa.
— Qual é a proposta? – pergunta Anna.
— Ela receberá um valor mensal para suprir todas as suas necessidades e garantir que tenha sempre as melhores oportunidades. Porém, queremos sigilo sobre esse pequeno incidente da vida do meu filho. – Propõe Maria Luísa.
— Então vocês não querem que ninguém saiba sobre a Maria Luísa? – questiona Anna horrorizada.
— Exatamente – afirma Maria — Acho que esse pequeno deslize poderá prejudicar meu filho e sua carreira, permanentemente. Mas não preocupe, daremos um jeito dela ter uma vida confortável.
— Quero que a reconheça como membro da família de vocês – exige Anna transtornada — Quero o nome de vocês na minha filha. Caso contrário, levarei esse deslize a público.
— Como quiser. Assim que essa criança nascer, mandarei um advogado com a papelada e a autorização para colocar o nosso nome. Porém, a partir do momento em que ela usar o nosso nome, nós teremos o direito a guarda e poderemos reivindicar a criança, quando quisermos. Você aceita o acordo? – pergunta Maria.
— Sim – responde Anna sentindo asco ao aceitar.
— Então em breve receberá toda a documentação necessária. Passar bem – finaliza Maria Luísa.
Ela demora ainda para colocar o telefone no ganho, tenta se convencer de que aquilo seria bom para sua filha, mesmo sentindo que tinha vendido sua alma para o Diabo. Ela toca em sua barriga, chorando:
— Desculpe–me por estar fazendo isso com você, meu bebê. Espero que um dia entenda que é para o seu bem.
Assim que Aline chega do serviço , Anna conta da conversa nada agradável que teve, deixando a amiga contrariada.
— Eu não quero o dinheiro desse povo! – esbraveja Aline socando a mesa da cozinha — Eu prefiro continuar pegando turnos extras no bar do hotel a aceitar qualquer coisa deles! Como Pôde fazer isso?
— Você não tem a obrigação de nos sustentar, Aline – argumenta Anna — Agradeço o que está fazendo, mas não quero que se mate de trabalhar por nós duas.
— Anna, vocês são a família que... Eu nunca tive – responde Aline — Eu não posso aceitar isso. Eu jamais deixaria que uma irmã minha tivesse que submeter a esse tipo de coisa. E você é a minha irmã, a Malú não precisa deles. – Cita o apelido que deu a criança, já que odiava falar o nome que era o mesmo da matriarca dos Almeida. —Eu faço qualquer coisa por ela.
— É tarde demais –alega Anna — Eu aceitei. E mesmo que você seja contra e me odeie, não posso mudar isso. Sinto muito.
— Então prometa que esse dinheiro será usado somente com a Malú. – Pede Aline, frustrada — Pelo menos ela terá tudo o que precisar.
— Eu pensei nisso quando liguei. – Confessa Anna emocionada — Quero que a minha filha tenha a oportunidade de ser alguém que eu perdi por amar... Por amar o pai dela incondicionalmente.
— Depois de tudo isso, ainda o ama? – questiona Aline —Depois de toda a prova do Thiago ser mau caráter?
— Sim. Eu amo e infelizmente, acho que estou fadada a amá-lo para sempre – admite Anna chorando — Eu rezo para tirar ele da minha vida, para esquecê-lo, mas no fundo tenho esperança que ele não está aprovando esse tipo de coisa. Que ele nem sabe o que a mãe dele está fazendo. Eu sei que um dia vou revê-lo e tudo virá à tona e espero que Malú o receba de braços abertos. Tenho um pedido a fazer para você.
— Diga. Faço qualquer coisa – responde Aline
— Não quero que Malú descubra sobre nada disso. Quero que ela tenha a oportunidade de conhecer o pai sem nenhuma influência. Desejo que ela tenha seus próprios pensamentos a respeito dele. Prometa que fará isso, mesmo se algum dia eu faltar a minha filha, não quero que ela saiba de nada disso.
— Tudo bem – concorda Aline, contrariada — Não concordo, mas você é a mãe e sabe o que é melhor para ela.
— Eu espero que sim – responde Anna tocando em sua barriga.
***
Belo Horizonte, 24 de dezembro de 1998.
Aline procura nervosa algo no sofá, onde está Anna deitada com seus pés inchados e sua barriga de nove meses. Ela não tinha reparado como os últimos meses tinham passado tão rápidos.
— Tem certeza de que ficará bem? – pergunta Aline pela décima vez — Eu fico em casa, você sabe que não gosto muito de comemorações. A gente come um miolo, assiste a um filme de natal, choramos um pouco e rimos. Ou você vai comigo e nos divertimos fofocando sobre o pessoal do hotel.
— Agradeço o convite, mas ninguém vai querer uma pata choca dançando no salão – recusa Anna sorridente — Sem contar que nem posso mais, já que a Malú ainda não quer sair. E não quero que fique aqui comigo, você precisa se divertir. Esses últimos meses você só trabalhou, não é justo que fique em casa. Vá e se divirta por nós duas.
— Tudo bem – concorda Aline, respirando fundo — Mas prometa que vai ligar naquele número que eu deixei na geladeira, se acontecer qualquer coisa. QUALQUER COISA! Até um chute, você me liga.
— Não se preocupe – pede Anna — Se algo acontecer, será a primeira, a saber. Agora vá e espero que se dê bem essa noite.
— A noite promete, mas eu pretendo voltar para casa cedo – comenta Aline.
— Aline – repreende Anna — Só tem uma grávida aqui e sou eu.
— Sim, mas eu não vou sair do seu lado enquanto a Malú não nascer, pode esquecer. – Ela anda até a porta — Não se esqueça de ligar.
— Tudo bem – fala Anna olhando Aline fechar a porta e murmura — Sortudo será o homem que tiver você ao seu lado.
***
Anna acorda sentindo sua cama molhada se levanta e percebe que sua bolsa estourou. Vai à cozinha e olha para o relógio, ainda são dez horas da noite. Ela tenta por algum tempo, contato com Aline sem sucesso, até que sua primeira contração acontece. Ela decide então colocar um vestido e tentar pegar um táxi ou ônibus que a leve para a maternidade.
Assim que chega à rua, nota que será difícil conseguir um transporte, pois o ponto de táxi está vazio e não passará um ônibus aquele horário. Tenta acionar o síndico, mas ele já não se encontrava no prédio. Sobe mais uma vez ao seu apartamento e tenta ligar para Aline, mas ninguém atende. Respira fundo e tenta ligar para a maternidade e pedir uma ambulância, mas a linha está ocupada. Pega sua mala de maternidade e caminha novamente para a rua. Anda devagar até ter mais uma contração que a faz segurar em um dos portões de sua rua. Nesse ritmo, acabaria dando à luz na rua, conclui preocupada. Respira fundo e se endireita, segura as próximas contrações o máximo que consegue.
Já está próxima a rua principal, quando vê um ônibus encostado na linha. Tenta caminhar mais rápido, erguendo os braços para chamar atenção do motorista. Faltava pouco mais de uma quadra , quando uma contração forte a faz arquear em cima de sua barriga , quando olha para o ponto, vê o ônibus se afastando, alheio à sua dor. Tenta gritar, mas apenas um sussurro de pare sai de sua garganta.
Caminha devagar, a dor é quase insuportável. Meu Deus, não posso ter meu bebê, aqui. Por favor, me ajude. Não nos desampare, agora. Por tudo o que é de mais sagrado, pela minha filha, me ajude. É tudo o que te peço, roga Anna olhando para a noite quase sem estrelas.
— Venha, irei ajudar – fala a voz masculina, atrás de Anna.
As súplicas da moça foram atendidas
***
Ícaro é o nome do homem que acelera seu carro para a maternidade. Anna não teve tempo de perguntar muito a respeito dele, pois suas contrações mal a permitem respirar. Sua aparência revela que está na faixa dos trinta anos, cabelo em um tom de castanho acobreado muito bem cortado, além de usar um terno escuro que mais parece um uniforme. Segurança, talvez, pensa Anna o encarando de relance. Tem a sensação que o conhece de algum lugar.
Eles dão entrada pela emergência do Pronto socorro, mas não permitem que Ícaro a acompanhe até a sala do parto.
— Muito obrigada por tudo – agradece Anna emocionada segurando a mão dele, enquanto o enfermeiro empurra a cadeira de rodas. — Que Deus o abençoe e lhe dê tudo o que deseja. Espero um dia recompensá-lo por esse ato, se nos reencontrarmos.
— Nós vamos nos reencontrar antes do que imagina Anna– revela Ícaro enigmático, soltando da mão de Anna que o encara confusa.
Ela tenta olhar para Ícaro mais uma vez, porém as portas da emergência a impedem. Ela respira fundo e tenta se concentrar no que é mais importante naquele momento: Maria Luísa.
***
— Empurra – ordena o médico entre as pernas de Anna. Assim que o obstetra avaliou a dilatação de da jovem, decidiu que o parto normal seria o mais indicado, já que o bebê estava na posição correta — Força Anna!
— Errrrrrrrrrr... AAAAAHHHHH– geme Anna, forçando cada vez mais a saída de sua filha. Ela deita na cama, cansada e desesperada — Eu não aguento mais! Não era para ser assim... Não posso fazer isso sozinha... Eu não vou conseguir.
— Anna, você conseguirá – garante a enfermeira ao lado da moça — Esse será um belo presente que dará a todos nós. Então, se quer essa criança, faça por merecer e a ajude a conhecer o mundo.
— Está pronta? – pergunta o médico — Eu preciso que empurre com toda a sua força. Agora!
— Eeeeeeeeeeeeeeeeerrrrrrrrr... Rrrrrrrrrr... Errrrrr... Aaaaaa aaaaaaaaaaaaaaaa hhhhhhhhhhhhhh – grita Anna se contorcendo na cama, enquanto sente um puxão em sua barriga. Ela se joga novamente na cama, ofegante. Sente o suor de sua testa correr pelo seu rosto. Mas nada daquilo importava, só deseja ver sua filha.
Em poucos minutos o choro do bebê ecoa pela sala de cirurgia, fazendo Anna sorrir e chorar ao mesmo tempo, aliviada. A enfermeira arruma à recém–nascida e a coloca nos braços da loira que chora emocionada. Ela toca os cabelos pretos de sua filha e beija sua testa. Segurando sua pequena mão, então diz sorrindo entre as lágrimas:
— Bem vinda ao mundo Maria Luísa, minha Malú.
A chuva fina é o detalhe que faltava para aquele cenário melancólico que ocorria no cemitério. Ela não tardou a cair pegando todos os que estavam no enterro de surpresa. Mas Maria Luísa Braga de Almeida não se importava com a chuva, com as pessoas, nem com o fato do pai dela estar segurando em seu ombro, como se fosse uma pessoa presente em sua vida. Ela o afasta e se aproxima do caixão, com lírios em suas mãos, as flores favoritas de sua mãe. Seus cabelos pretos e compridos caíam como uma capa em seu rosto ao jogar as flores em cima do caixão, passando a mão por ele todo, até chegar onde estaria o rosto daquela a quem amava: Anna Braga, sua mãe. Lágrimas escorrem pelo rosto da jovem de dezesseis anos que não consegue imaginar como será sua vida, daquele momento em diante.
Você me prometeu, disse que jamais me abandonaria e agora? Por que me sinto tão sozinha? Por que não sinto você perto de mim? Por que está me deixando com ele? Diz algo! Reaja! Mostre que isso tudo é uma mentira! Levante–se daí! Dá–me um abraço! Cante para eu dormir! Faça algo! Você disse que éramos nós duas contra o mundo, mas me deixou sozinha! Pensa Malú fechando as mãos e batendo levemente no caixão enquanto chora com mais força. O pai a afasta de perto do caixão para que o mesmo pudesse ser finalmente enterrado.
Conforme o coveiro lançava a terra para dentro da vala, Malú sentia sua vida indo junto. A dor era insuportável , quando ele finalmente terminou , ela já não tinha mais forças para continuar de pé, sendo amparada por seu pai. As pessoas que acompanharam o enterro seguravam em sua mão, prestando condolências. Umas rápidas, outras demoradas, mas todas com a palavra pêsames no final. Malú não prestava atenção em nada daquilo, só queria sua mãe de volta.
— Vamos embora, Malú – ordena seu pai com a voz triste. Ele olha para o céu que está mais escuro, parecendo noite — Precisamos ir logo antes que a chuva piore.
Malú não responde, não sente a menor vontade de tomar nenhuma decisão a partir de agora. Por ela, ficaria ali para sempre, assim como sua mãe. Sem receber a resposta, ele a conduz para a saída do cemitério. Abre a porta de seu Maseratti Quattroporte preto estacionado na entrada, fazendo Malú sentar no banco do passageiro. Ele entra pela porta do motorista e liga o carro, dirigindo pelas ruas de Belo Horizonte.
— Para onde gostaria de ir? – pergunta o pai enquanto está parado no sinal.
— Para sete palmos do chão – responde Malú olhando pela janela. Ela o encara com seus grandes olhos azul — Ou para o mais longe possível de você, Thiago.
*
Thiago de Almeida, esse é o nome do pai de Maria Luísa, também conhecido pelas más línguas, como o playboy que fugiu ao descobrir a gravidez de sua namorada. Filho de um importante Juiz de Curitiba veio a Minas Gerais fazer o Curso de Direito na federal do estado. Lá conheceu a acadêmica de Letras, Anna Braga e desse amor, surgiu Maria Luísa. Rejeitada por seu pai antes de nascer, sendo criada por Anna, que parou a faculdade e foi trabalhar como recepcionista de um hotel para sustentar a filha, sozinha, pois seus pais já eram falecidos.
Apesar de tudo, Maria Luísa cresceu em um lar feliz, mesmo sem a presença paterna. Anna nunca falou dele para a filha, pois não achava necessário que ela soubesse o tipo de pessoa que seu pai era. Malú já sabia da história desde os sete anos , quando chegou da escola escutou a melhor amiga de Anna , Aline, falando a respeito de Thiago. Sabia que ele tinha sido um covarde e fugido na hora em que sua mãe mais precisou.
Além do fato dele enviar dinheiro mensalmente, como uma forma de impedir que Anna revelasse aquele segredo para a mídia, não tinha qualquer contato com ele. Só quando a mãe esquecia algum recorte de jornal de Curitiba mostrando que ele havia se candidatado a senador do estado, ou alguma revista falando do noivado dele com uma advogada, mas nada sobre ela. Malú sempre acreditou ser o segredo indesejado por seu pai, apesar dos esforços de sua mãe para fazer aquela ideia sair de sua cabeça. Anna usava o dinheiro para pagar uma boa escola para Maria Luísa, roupas, alimento e tudo mais o que a menina desejasse, que no caso, sempre teve vicio por livros. Influenciada fortemente por Ícaro que se tornou amigo de longa data de sua mãe e o "relacionamento complicado" de Aline.
Embora fosse uma figura presente na vida das três, nenhuma sabia muito da vida daquele homem misterioso, a não ser que seu trabalho exigia que viajasse toda semana. Com o passar dos anos aquilo deixou de ser importante, já que ele fazia de tudo por elas, incluindo conseguir emprego no hotel mais renomado de Belo Horizonte para as duas, entre outras coisas sempre que precisavam. Acabou se tornando a figura paterna que Malú precisava.
Os anos passaram tranquilamente, até a um ano atrás, quando Anna desmaiou no serviço , sendo levada ao médico, onde descobriu que tinha um tumor inoperável no cérebro e pouco tempo de vida. Quando contou a Malú, sabia que estava na hora de contar sobre o pai dela e acioná-lo.
— Você precisa ser forte – pede sua mãe — Por nós duas.
— Mas eu não quero ser forte – retruca Malú chorando — Eu quero que você fique comigo.
— Eu sempre estarei com você , minha querida – alega Anna abraçando a filha.
— Mas eu quero você, aqui comigo, viva – rebate Maria Luísa se afastando.
— Não será possível – nega Anna com um sorriso triste — Deus quis que eu tivesse de ir para que você possa conhecer seu pai e ficar com ele.
— Eu o odeio, prefiro que ele morra ao invés de você – esbraveja Malú revoltada.
— Nunca mais diga isso! – exclama Anna brava — Ele não é mau, como pensa. Assim que conhecê-lo, mudará de ideia. – Ela toca nos longos cabelos da filha —Você tem o mesmo tom de cabelo que seu pai, os mesmos olhos, a mesma boca e o mesmo temperamento. Não tenha raiva dele. Ame–o como eu, pois ele me deu você.
— Não posso – recusa Malú fechando os olhos.
— Faça isso por mim – pede Anna tocando no rosto da filha — Quando eu me for, quero que o ame como eu te amo, promete?
— Vou tentar – responde Malú abraçando a mãe novamente.
Thiago não apareceu nos primeiros meses de quimioterapia, nem na radioterapia. Muito menos quando Anna perdeu os cabelos loiros. Doía em Malú, ver sua mãe esperar ansiosa a cada vez que sua porta abria, ou quando um homem com as características de Thiago passava. Depois de um tempo, Ícaro lhes disse que precisava viajar, dessa vez não tinha certeza se voltaria.
— Adeus, meu querido amigo – despede–se Anna se esforçando para sorrir. Sua voz está cada vez mais fraca —Muito obrigada por tudo o que fez por nós.
— Eu quem agradeço Anna. Você é um anjo, tenho certeza que irá para um lugar melhor – fala Ícaro beijando as mãos dela — Me perdoe por tudo o que fiz... Perdoe–me por qualquer mal que eu tenha feito a sua família.
— Você que foi um anjo em minha vida – elogia Anna, deixando uma lágrima cair por seu rosto — E na vida da minha Malú. Você é um homem bom, Ícaro. Eu tenho certeza disso. Não tenho motivos para lhe perdoar, pois não há o que perdoar.
Ele solta as mãos de Anna e sai do quarto praticamente correndo. Ele se encosta–se à parede, chorando.
— Então você vai embora mesmo? – questiona Aline se aproximando daquele a quem entregou seu coração durante todos esses anos. Ela segura todas as suas lágrimas, pois não acha que ele mereça nenhuma delas — Deixará a Malú, quando ela mais precisa de você?
— É preciso. – Responde Ícaro se controlando — É mais difícil para mim do que qualquer uma de vocês possa imaginar. Se eu ficar, será pior. Mas acredite, eu sempre estarei de alguma forma ao lado da Malú.
— E quanto a mim? – pergunta Aline se aproximando — Quanto a nós? Você pensou nisso também?
— Aline – chama Ícaro a abraçando — Você é a melhor coisa que já me aconteceu, mas não poderemos ficar juntos. Um dia você entenderá o motivo e espero que compreenda as minhas razões... Espero que seu amor supere... Tudo...
— Não há razão quando se ama... Foi o que você me disse... Ou se esqueceu?
— Eu sinto muito. – Pede Ícaro.
Antes que Aline pudesse responder, ele se afasta indo em direção a Malú que acaba de chegar ao hospital, ainda está vestida com o uniforme da escola. Ele a abraça.
— Não vá – sussurra Malú encostando a cabeça no peito de Ícaro — Como vou conseguir passar por isso sem você?
— Você é mais forte do que parece – argumenta Ícaro. Ele abre seu terno, tirando um livro dele — Espero que goste.
— Espero um dia te reencontrar – comenta Malú triste.
— Isso acontecerá antes do que possa imaginar – comenta Ícaro, dando um beijo na testa de Malú. — Até mocinha
— Até – despede–se Malú vendo Ícaro se afastar. Ela corre até ele e o abraçando mais uma vez — Eu queria que você fosse meu pai, pois eu já o amo como se fosse.
— Eu te amo como se fosse minha filha, desde o primeiro dia – revela Ícaro emocionado. Depois de alguns minutos, ele afasta a jovem e caminha dizendo — Até breve.
*
Anna já não levantava da cama e mal ficava acordada, quando Thiago apareceu. Aquela semana tinha sido a mais alegre para Anna, fazendo Maria Luísa se esquecer da raiva que sentia por ele. Uma noite, Anna pediu que deixasse Thiago ficar a sós com ela, deixando Malú preocupada. Na manhã seguinte, Anna pediu para falar com Aline. Assim que a mulher entrou no quarto, sentiu que seria a despedida.
— Olá, minha irmã – cumprimenta Anna com sorriso fraco. — Vou sentir sua falta, minha grande companheira de vida.
— Olá minha querida irmã – retribui Aline segurando na mão daquela que foi sua amiga por mais de uma década — Eu sentirei falta de você muito mais do que imagina.
— É o fim – confessa Anna tristemente — Mas não posso ir embora sem antes lhe pedir um favor... Prometo que será o último.
— Eu nunca me importei em fazer nada por você. Eu faria tudo de novo, mil vezes – comenta Aline sentindo as lágrimas rolarem pelo seu rosto cansado. Não lembra a última vez que dormiu naquela semana.
— Eu sei, mas esse favor exigirá muito de você – alega Anna, enquanto se ajeita na cama. A morfina não fazia mais efeito àquela altura — Preciso que ajude Thiago a ser o pai da Malú.
— Não... Isso não Anna – recusa Aline inconformada — Ele não merece. Peça–me qualquer coisa, menos ajudar aquele crápula.
— Você não entende agora, mas uma hora... Saberá... Toda a verdade. Eu conversei... Com ele... E sei tudo... Sobre o Ícaro... Sobre ele... Sobre nós...
— O que você sabe? – pergunta Aline curiosa.
— Não poderei contar agora, pois temos companhia – explica Anna olhando para porta. Ela respira fundo e diz em voz alta — Entre Malú, precisamos conversar.
Malú entra no quarto, se perguntando como a mãe sabia que ela estava escutando perto da porta.
— Oi, meu amor – diz Anna tentando se arrumar na cama — Como você está linda.
— Obrigada – murmura Malú — Como à senhora está?
— Feliz – responde Anna com um sorriso fraco — Você sabe... Precisamos conversar.
— Não estou pronta, mamãe – revela Malú chorando.
— Não chore, meu bebê – pede Anna tentando não chorar — Chegou à hora. Você sabe que isso aconteceria... Eu preciso te falar uma coisa.
— Pode falar – diz Malú de cabeça baixa.
— Eu conversei com o Thiago – começa Anna devagar — Ele ficará com a sua guarda. Não me olhe assim... É o melhor a fazer... Sei que um dia entenderá... Ele precisará de você... Tanto quanto você precisará dele...
— Me deixa com a tia Aline, mãe – argumenta Malú, desesperada — Eu nem o conheço.
— Mas vai conhecer... Eu sei que se darão bem... – alega Anna segurando na mão de Malú. — Ele é sua família agora... Ele será um bom pai. Só quero que saiba que eu vou te amar eternamente e sempre estarei com você. Sempre que precisa de mim, estarei ao seu lado. E em nome desse amor, quero que prometa que será boazinha com ele... Promete...?
— Mamãe... Se eu prometer... A senhora vai embora – alega Malú nervosa chorando — Não quero que vá, eu não vou conseguir ser legal com ele.
— Por favor, meu anjo... – pede com a voz fraca — Por favor... Prometa... Prome...
O aparelho dispara ao lado de Malú, sua mãe estava sem batimentos cardíacos. Uma equipe rapidamente entra no quarto, tentando reanima-la, em vão. Anna tinha morrido. Maria Luísa atravessa o hospital atrás de Thiago quando o encontra esmurra seu peito.
— Você matou a minha mãe! Eu te odeio! Odeio você! Você deveria ter morrido! – explode sendo segurada por ele que a abraça.
*
Agora estão na casa de Maria Luísa, em sua sala de estar. Thiago se espreguiça tirando o terno preto e a encara sério.
— Amanhã cedo iremos para Curitiba, já falei com sua avó e ela já conseguiu uma vaga na melhor escola, além de providenciar que seu quarto seja o melhor. – Informa Thiago tentando puxar assunto. Ele sorri levemente apontando para o cabelo de sua filha e confessa — Você me lembra um pouco a sua mãe... Seu corte de cabelo... É o mesmo que ela usava...
— Quando você a abandonou? – interrompe Malú ríspida.
— Desculpa se fiquei longe todos esses anos – pede Thiago de cabeça baixa.
— Foram dezesseis anos, mais precisamente. – Corrige Malú irritada. — A minha vida sem pai, estava ótima. Eu não preciso de você! Faz um favor: Não fala comigo.
Antes que Thiago pudesse argumentar, Malú sobe as escadas correndo. Ela tranca a porta o quarto de sua mãe e olha para o espelho. Realmente lembrava um pouco a sua mãe, mas ao invés de ficar feliz, ela ficou com raiva da imagem. Pega a tesoura guardada dentro da gaveta da penteadeira e encara o espelho mais uma vez.
Ela segura uma mecha de seu cabelo e a corta, enquanto chora. Não queria lembrar–se de sua mãe... Pega mais um maço do seu cabelo e corta com raiva, sem se importar se ficaria desigual... Não queria que Thiago dissesse mais aquilo... Pega sua franja e a corta impiedosamente. Cada vez que lembra o dia que teve, sente mais vontade de cortar seu cabelo, sendo dominada pela raiva. Mecha, após mecha, cai no carpete do quarto, junto com as lágrimas da jovem. Quando terminou, seu cabelo estava muito curto e em alguns pontos apareciam seu coro cabeludo. Ela larga a tesoura na penteadeira e vai para a cama de sua mãe, onde chora até pegar no sono.
*
Malú acorda com batidas em sua porta, ela a abre deixando Aline entrar. Assim que sua tia a vê ficava perplexa.
— O que fez com seu cabelo, Malú? – pergunta Aline irritada. Ela toca na cabeça de Malú — Você estragou seu cabelo, menina. Por que fez isso?
Maria Luísa abre os lábios para responder a sua tia, mas algo está errado. Ela não escuta nada saindo de sua boca. Aline continua a encarando, deixando a jovem mais nervosa. Sua voz não saía a desesperando.
— Malú? Você está bem? – pergunta Aline nervosa, segurando Malú pelos ombros — Responda! Fale alguma coisa! Anda Malú.
Mas nada saía mesmo Maria Luísa tentando. Ela se esforça ao máximo, mas não sai nenhum grunhido, nada. Estava sem voz. Ela entra em pânico, respirando mais ofegante. A jovem começa a ver o quarto rodar cada vez mais. Sente suas forças sumirem e a última coisa que vê é o retrato de sua mãe no criado mudo.
— Thiago! Ajuda! – grita Aline segurando Malú já desfalecida. — A Malú não está bem! Ajude–me! Alguém me ajuda!
♫ Dorme, dorme menininha
eu estou aqui... ♫
Malú desperta com a música muito conhecida por ela, ainda mais com àquela bela voz. Olha ao redor e percebe que ainda está no quarto da mãe. Ela se vira e encontra o rosto sereno de Anna e sorri aliviada. A mãe sorri de volta e continua passando a mão nos cabelos da filha, calmamente.
— Tive um sonho horrível – comenta Malú se aconchegando em sua mãe. Ela deixa algumas lágrimas de alívio escorrem de seus belos olhos azuis — Eu sonhei... Sonhei... Que tinha partido... Para sempre.
— Shhhh – diz Anna acalmando a filha. Ela passa o braço pelo ombro da filha e faz cafuné na cabeça de Malú, enquanto volta a cantar sua canção de Ninar preferida.
— Estarei sempre aqui… — sussurra Anna no ouvido da filha já adormecida.
***
— Moverei céus e terras se for preciso, mas a Malú não sairá de Belo Horizonte! Isso eu lhe garanto!
— Ela é minha filha e irá comigo para Curitiba.
— Só por cima do meu cadáver!
— Por favor, preciso que vocês falem baixo, se não terei de chamar a segurança. Não perturbem a paciente.
— Desculpa, mas esse homem nem deveria estar aqui.
— Quem não deveria estar aqui é você!
— Silêncio. Olhem, ela está acordando. Evitem qualquer discussão, chamarei o médico.
Malú abre os olhos, tonta. Olha para o lado de sua cama e encontra Aline com o rosto vermelho, pelo visto ela está muito brava com algo. Do outro lado está Thiago a encarando, preocupado. Fecha os olhos lentamente, enquanto sente a boca seca. Então encara Aline, tenta perguntar, mas sua voz não sai. Não foi um sonho, pensa Malú olhando desesperada para Aline que segura sua mão.
— Acalme–se Malú — pede Aline, séria — O médico já está vindo e logo saberemos o que aconteceu.
— Duvido muito que os médicos daqui conseguirão uma resposta – resmunga Thiago, recebendo em troca um olhar fumegante de Aline.
— De qualquer forma, nós NÃO sairemos daqui, até termos um diagnóstico. – Comenta Aline, irritada.
— Bom dia – cumprimenta o médico entrando no quarto. Ele tem os cabelos grisalhos, demonstrando não ter mais que cinquenta anos, olha para a ficha em sua mão e pergunta — Maria Luísa Braga de Almeida?
Malú balança a cabeça confirmando.
— Sou médico Haroldo Benternianni, otorrinolaringologista do hospital e vim realizar os exames de rotina antes de encaminhá-la para os exames específicos que faremos de modo a descobrir o que a fez ficar afônica. A situação ainda é persistente?
— Sim. – responde Aline prontamente.
O médico se aproxima de Maria Luísa, abre a boca da jovem para examinar, passa a mão pelo pescoço, próxima às amídalas e ao final acena a cabeça, contrariado.
— Aparentemente, não há secreções que indiquem uma inflamação ou alguma doença que possa causar esse tipo de sequela. – Ele encara Aline e depois Thiago e continua — Encaminharei a jovem para exames mais precisos e peço, por gentileza, que os dois me aguardem aqui enquanto realizamos os procedimentos necessários.
Malú encara Aline nervosa, ela não acredita que aquilo está acontecendo. Aline olha para Malú e segura em sua mão, apertando levemente, para animá-la.
— Tudo ficará bem – garante Aline, encorajando Malú — Esperarei você voltar, prometo.
— Estarei aqui também... – diz Thiago, tentando chamar atenção de Malú, mas ela nem ao menos vira o rosto em sua direção.
— Vamos, Maria Luísa? – pergunta o médico.
Malú acena com a cabeça e se levanta da cama acompanhando o médico. Reza para que aquele pesadelo termine.
***
Aline tomava seu café, quando Malú retornou para o quarto, acompanhada de uma enfermeira. A funcionária ajeita a jovem de cabelos pretos na cama e se vira para os dois dizendo:
— O médico pediu para informar que os resultados dos exames sairão amanhã e que poderão encontra-lo em seu consultório. A senhorita Maria Luísa ficará em observação até o parecer dos médicos que acompanharão seu caso. No mais, foi pedido que a paciente repousasse – informa a enfermeira.
— Tudo bem, eu passarei a noite com ela – afirma Aline. Ela se levanta da cadeira e vai até Malú.
— Eu também… Posso ficar também essa noite – alega Thiago, se levantando apressadamente — Tenho certeza que ela precisará do meu apoio.
— Sinto informar, mas somente um poderá acompanhar. Normas do hospital. – Avisa a enfermeira.
— Tudo bem, eu fico – reforça Aline, encarando Thiago. Ela olha para Malú que está sorrindo para ela — Tenho certeza que é isso que a Malú deseja.
— O hospital permite que pessoas que não sejam parentes, a serem acompanhantes? – pergunta Thiago à enfermeira.
— Bom... Se os familiares derem a permissão, não há problema algum. – Responde a enfermeira.
— Escutou Aline? – provoca Thiago — Você precisa da minha permissão para ficar com a minha filha.
— Você não impediria isso, não é? – questiona Aline, não acreditando na provocação de Thiago — Tenho mais direito do que você de ficar com a Malú. Uns dezesseis anos a mais.
— Entretanto legalmente, eu tenho direito e eu ficarei com ela. – Responde Thiago — Vá para casa.
— Eu não irei! – recusa Aline irritada. Ela olha para a enfermeira — Olhe moça, esse homem nunca viu a filha, o maior tempo que passou com ela foi essas últimas semanas. Vi essa menina crescer, não é possível que por conta de um papel idiota, ele possa ficar aqui e eu não.
— É a norma, senhora – responde a enfermeira.
— Norma? Ele nem sabe quantas vezes ela teve de ficar em um hospital. Quantas noites mal dormidas tivemos por conta da bronquite, do esforço que tivemos de fazer quando ela machucou o pé. Passei por tudo isso e não deixarei que você acompanhe a Malú.
— Pare de jogar na minha cara que eu não fiz parte da vida da Malú. Fui impedido de conhecer a minha filha.
— Conta outra! Não venha se fazer de coitadinho, pois a mim, você não engana. Teve dezesseis anos para aparecer aqui e nunca veio. Nem sequer deu notícias…
Malú se levanta da cama, segura o braço de Aline e depois o de Thiago. Ela os conduz para fora de seu quarto e fecha a porta. Não aguenta mais escutar nada daquilo. Era doloroso demais ter de lembrar–se de todos aqueles anos. Ela deita na cama novamente e fecha os olhos.
♫ Dorme, dorme menininha
eu estou aqui... ♫
***
— Viu o que você fez? – grita Aline saindo do hospital — Por que você não volta para Curitiba, hein? Estamos melhores sem você! Nunca precisamos de você e mesmo que fosse o contrário, nunca iria aparecer.
— Vocês podiam ter me contado! – explode Thiago — Mas nem sequer deram notícias! Vocês a esconderam de mim.
— Não fale do que não sabe! Ela tentou! Todos esses anos, ela quis falar com você, mas a sua mãe nunca permitiu. Ela passou a vida toda querendo falar com você. Agora você, noivou, está entrando para a política e esse tempo todo nunca falou com ela. Nem ao menos quis saber como elas estavam.
— Você não entende… – começa Thiago nervoso — Eu não sabia…
— Não sabia que ela estava grávida? – questiona Aline, revoltada — Engraçado, porque ela me disse que você sabia e foi embora ver seu pai. Ou melhor, usou essa desculpa barata para fugir do compromisso.
— Eu sabia que ela estava grávida! – reage Thiago — Eu só não sabia que… Que a Malú estava viva e que a Anna ainda morava em Belo Horizonte!
— Olha só, eu não acredito em você – recusa Aline apontando o dedo para ele — Eu vi o dia em que sua mãe a mandou sair do seu apartamento, por ordem sua. Sei do dia em que vocês fizeram um acordo com a Anna. Nada do que me disser, valerá.
— Claro. Você é uma cabeça dura! – esbraveja Thiago — E sempre será! Mas o que importa agora é a Malú e o que farei como pai dela!
— Qualquer um pode ser pai dela, hoje. Ela tem dezesseis anos, pode andar com as próprias pernas, se virar… É fácil ser pai da Malú. – Ironiza Aline — Mas quando ela era bebê, quando as crianças eram más com ela por não ter um pai… Aí você não era… Nem quis saber. Você não formou o caráter dela, nós formamos. Ensinamos tudo para ela, sem você. Sua atitude é de um menino mimado que não sabe escutar um não. Você quer a Malú só para provar aos outros o quanto é um cara generoso, para usar a imagem dela em sua campanha. A sua máscara de bom moço caiu há muitos anos, Thiago.
Aline gira o corpo e começa a caminhar em direção ao ponto de táxi, quando o Thiago comenta:
— Mas a máscara de bom moço do Ícaro ainda não caiu, pelo visto.
— O Ícaro não está aqui para se defender das suas acusações – reage Aline, sem se virar.
— Por que será que ele não está aqui? – questiona Thiago caminhando em direção a Aline — Onde estará o bom samaritano?
— Onde está querendo chegar? – pergunta Aline, se virando — Agora culpará o Ícaro por ter nos ajudado, enquanto você estava curtindo a vida?
— Ele não é tudo isso que você pensa, eu te garanto – alega Thiago.
— Nada que venha da sua boca a respeito do Ícaro, mudará a minha opinião sobre ele. – Retruca Aline, encarando Thiago.
— Tem certeza? – provoca Thiago.
— Você não o conhece – responde Aline — Você não sabe nada sobre ele.
— Eu o conheço melhor do que você possa imaginar. – Responde Thiago, enigmático.
— Você o contratou para nos vigiar? – questiona Aline chocada. Apesar de não querer acreditar, sabe que isso explicaria muita coisa. Sente uma raiva surgir dentro de si. — Foi isso né? Esse é o seu laço com o Ícaro, não é mesmo?
— Não – responde Thiago — Nossos laços não são profissionais e o que depender de mim, agora não existe mais nenhum laço.
— Não estou entendendo… – comenta Aline, confusa.
— O Ícaro é meu irmão – revela Thiago.
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