Era uma noite de domingo, no meu aniversário de cinco anos, quando vi meu pai matando dois cachorros e um gato que ele mesmo estava cuidando há semanas. Não havia surpresa em seu rosto ou arrependimento ao ser apanhado, a única coisa que fez foi uma pergunta.
"Você sente pena dessas criaturas, Nero?"
Balancei a cabeça negativamente. Por que sentiria? Eram como brinquedos quebrados. Passamos uma noite de pai e filho enterrando aqueles cadáveres. Perguntei a ele enquanto jogava terra sobre a cova rasa em meio a tantas outras.
"Você faz isso porque gosta, pai?"
Meu pai passou as mãos sujas pelo rosto e eu vi apenas sinceridade.
"É como uma necessidade, garoto, um vício antigo."
Aquele foi nosso último momento antes dele ferrar com a cabeça da Susana e nos abandonar. Não sinto sua falta, tão pouco o culpo, apenas não me importo. Mas admito que ele me marcou, após tanto tempo ainda sinto a tal "necessidade" que ele havia mencionado, principalmente quando sinto tédio.
A parte mais chata do dia é a espera para pegar o trem, sou obrigado a ficar perto de todos esses ratos franceses e gosto de me imaginar fazendo perversidade com cada um deles. Então lembro que esse não sou eu, é apenas um impulso violento.
— Oi, imperador italiano. Como vai Roma?
Olho para o lado, me deparando com um sorriso limpo, cabelos ruivos, uma boina e a blusa listrada. Visto uma máscara sobrepondo todo o resto, devolvendo um sorriso.
— Essa frase soou tão estranha, francesa. — Dou um passo para trás quando o trem se aproxima. — Aliás, Roma vai bem.
O trem abre as portas e entramos juntos. O vagão está cheio, mas Violly não parece se importar. Ela se encosta na barra e continua sorrindo para mim, como se estivesse analisando cada expressão minha.
— Então você realmente é italiano? — pergunta ela, girando a boina com os dedos. — Ou isso é só charme?
— É real. — Ajeito a mochila no ombro. — Sou o verdadeiro clichê: pizza, sotaque e uma mãe que fuma demais.
Violly dá uma risada rápida.
— O sotaque eu percebi, mas não ouvi você falar de pizza até agora.
— Achei que você tivesse preferências mais... refinadas. — cruzo os braços.
— Pizza é arte, imperador. — ela aponta o dedo para mim como se estivesse me dando uma lição. — Mas só se for napolitana.
— Concordo. — sorrio de canto. — Talvez você não seja tão francesa assim.
Ela ergue a sobrancelha.
— Talvez não. Talvez eu só seja curiosa.
O silêncio fica por alguns segundos, só o barulho metálico do trem. Ela se inclina um pouco na minha direção, como se fosse contar um segredo:
— Você sempre tem essa cara de quem está pronto para bater em alguém?
— Não sei. — suspiro. — Talvez seja só a minha cara normal.
— Hm. — Violly dá um meio sorriso. — Estranho. Mas gosto.
— Isso é uma cantada?
— Talvez. — ela responde sem hesitar.
A porta se abre na próxima estação, entra mais gente. Ficamos mais próximos, o braço dela quase roçando no meu.
— O que você faz para se divertir? — pergunto, só para prolongar a conversa.
— Caminho. Muito. — ela sorri. — Gosto de andar pela cidade ouvindo música, desenhar pessoas aleatórias, essas coisas.
— E eu achando que era a única pessoa esquisita que gostava de observar as pessoas.
Na verdade, pessoas no geral são entediantes, mas não entendo o motivo de ter ocultado a verdade.
— Então admita, você me observou ontem. — ela me cutuca com o cotovelo.
— Quem sabe. — digo, imitando o tom dela. — E você sorriu de volta.
Ela ri de verdade dessa vez, um som claro que quase faz o vagão inteiro olhar para nós.
— Está ocupado amanhã à noite? — ela pergunta de repente, sem cerimônia.
— Depende.
— Do quê?
— Se eu ainda estiver ocupado ou vivo.
Violly franze o cenho, como se tentasse entender se aquilo foi uma piada ou não.
— Certo... — ela diz, dando de ombros. — Então, se você estiver vivo, me encontra na beira do Rio Rhône. Ali perto da ponte de Guillotière, depois das oito.
— Para quê?
— Para caminhar. Ou brigar. — ela dá um sorriso malicioso. — Você escolhe.
— Caminhar parece menos trabalhoso.
— Então está combinado. — ela dá dois tapinhas no meu ombro. — Não me faça esperar.
As portas se abrem na minha estação. Antes de sair, viro para trás e vejo Violly me observando, um sorriso discreto no rosto.
— Até amanhã, francesa.
— Até amanhã, italiano. — ela responde, e as portas se fecham entre nós.
Saio da estação com a sensação de orgulho por ter atuado tão bem, qual versão de mim estava no controle? Só não entendo o motivo de estar interessado nessa mulher. Dou uma boa olhada no relógio, não vou me importar com coisas pequenas, tenho que fazer mais missões diárias que envolvem exercícios físicos.
Faz uma semana desde que encontrei esse relógio, antes das missões eu era nada mais que um sedentário e agora já consigo perceber a diferença no meu corpo. Queria entender o intuito das missões, sempre as mesmas ordens. Se tem uma punição, significa que é um detalhe imprescindível completar cada tarefa. Seja como for, preciso continuar obedecendo o Sistema até descobrir.
Apoio as vigas nas costas e as levo até o outro lado do canteiro. Sou chamado de aberração pelos outros trabalhadores por conseguir aguentar tanta carga sendo um magricela. O que eles não sabem é que uso esse meu dom de telecinese para carregar o peso enquanto apenas finjo trabalhar. Eu sou único de todas as formas possíveis, talvez tenha sido escolhido por alguma divindade, não que eu acredite nessas coisas.
Paro de andar quando escuto saltos se aproximando.
Saltos?
É a esposa do chefe, impecável, maquiada demais para um canteiro de obras.
— Você é Nero, não é?
— Aparentemente. — largo as vigas e limpo o suor com a luva.
— Sabe... você podia ir até a minha casa um dia desses. Quando o meu marido não estiver, claro.
A encaro por alguns segundos, depois suspiro e volto para as vigas. Aposto que ela está tendo problemas no paraíso e quer descontar sua frustração no marido.
— Olha, não é nada pessoal. Mas acho que você está confundindo minha vida com uma novela barata.
Ela ri, ajeitando o cabelo.
— Então é um não?
— É um “tenha um bom dia”. — Forço um sorriso. — E cuidado para não sujar o salto, esse lugar é uma porcaria.
— Posso pagar.
A mulher segura meu pulso, olhando para os lados. Agora que ela está mais perto, percebo seu lábio rachado e resquícios de hematomas no lado direito do rosto. Entendo, é uma vingança.
— Ainda é não.
Antes que ela responda, a voz do chefe ecoa:
— O que você está fazendo aqui?! — ele avança na direção dela com as mãos em frente ao corpo, mas para ao perceber que os outros trabalhadores estão olhando.
— Sai daqui, agora!
A esposa tenta falar algo, mas o homem a segura pelo braço e a empurra em direção a saída. Ela olha por cima do ombro na minha direção com um semblante de súplica. Se eu tivesse algum sentimento, sentiria pena dela neste momento.
— Fora daqui! E se eu te pegar de novo falando com ele, vai se arrepender!
Fico apenas observando, quieto, como se fosse um espectador entediado. Meu chefe me lança seu olhar mais brutal, as veias na testa saltando, os olhos arregalados. Pego as vigas e volto ao trabalho.
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"Matar" no nosso mundo diz respeito ao ato de tirar outra vida. O que também coincide com o pior pecado na bíblia, a matança estava lá desde o início e aos poucos se tornou algo rotineiro. Ser responsável pela inexistência de uma vida é uma grande responsabilidade. Em alguns países durante a execução de um criminoso, os executores não tem direito de saber qual arma tem ou não munição real assim impossibilitando-os de se martirizar por aquela morte. Para alguns é prazeroso, para outros, o próprio inferno. Queria saber por que não sinto nada, em que lugar se escondeu meu arrependimento? As vezes até esqueço o que fiz com aquele homem naquele beco escuro.
A tela do relógio chama minha atenção.
|Missão: Elimine a ameaça!|
Olho em volta, confuso. Fiquei aqui até tarde da noite sem nem perceber. Os trabalhadores já foram, não sei se tem alguém aqui ainda que represente alguma ameaça. Então, escuto passos atrás de mim e começo a entender a missão. Ao me virar, o chefe está lá, suado e com um facão na mão.
— Pensa que eu sou idiota, garoto? Pensa que vai levar minha mulher de mim?
— Eu não quero sua mulher.
— Mente para mim mais uma vez! — ele esbraveja apontando o facão, parece bem afiado.
O facão desce e corta o ar a centímetros do meu ombro, dou um passo instintivo para trás. Se fosse antes, com certeza teria sido acertado.
— Tenho coisas mais importantes para fazer, senhor . — digo, sem levantar o tom de voz.
Minha calma deixa o chefe desconfortável.
— Qual... Qual a porra do seu problema?
— Alguém que está prestes a cometer um pecado.
O relógio vibra no pulso. Olho discretamente.
|Missão urgente|
[Elimine a ameaça imediatamente.]
Respira fundo e encaro o chefe nos olhos. Lá vamos nós outra vez. Estou começando a me recordar de cada detalhe daquela noite quando virei um animal e avancei sobre o homem esmurrando seu rosto. Aquilo foi feio, foi satisfatório, mas feio e sujo. Quero algo mais limpo desta vez.
— Sua esposa irá me agradecer amanhã de manhã.
— Tá me ameaçando, verme?
Uso a famosa telecinese para manipular o facão, o chefe fica perdido vendo o objeto ganhar vida.
— O que é você?!
— Tédio, de terno e gravata. — Faço um movimento rápido com a mão.
O chefe fica branco e desiste de lutar, o fação faz um giro de 360° torcendo o pulso dele no processo e logo em seguida, antes mesmo que ele possa processar a dor no pulso, a lâmina corta seu pescoço. Um jato de sangue espirra para cima sujando minhas botas. O chefe cai de joelhos e depois desaba, seu corpo apresenta os últimos espasmos.
O relógio vibra mais uma vez:
Que interessante, agora tenho uma cartela de habilidades ao meu dispor. Faz sentido, não tinha me dado conta de que consigo carregar mais vigas do que antes, meu reflexo de agora a pouco também é uma prova de que evoluí nesta última semana.
Me aproximo do meu chefe morto. A sensação que tenho ao vê-lo assim é a mesma de quando matei o aquele homem. É algo bom, algo prazeroso, é como se o meu mundo em preto e branco começasse a ganhar cor durante alguns minutos. O puro êxtase. Sangue ainda escapa pela ferida na garganta dele, os olhos arregalados, a boca aberta, uma obra de arte muito mais limpa.
Pego o facão, limpo na minha calça e o guardo na cintura. Tenho que me livrar da carcaça, provavelmente não irei voltar para casa hoje. E ainda tenho um encontro para amanhã, mas a vida não parece mais tão tediosa.
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Atualizado até capítulo 27
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