A verdade é que naquela noite, bem naquele beco, não foi a primeira vez que matei alguma coisa. Morávamos na Calábria, no sudoeste da Itália, eu achava engraçado aquele formato de bota que tinha nos mapas. Meu pai era um homem perdido, se perdeu em um país estrangeiro e conheceu Susana, ela deve ter ficado encantada pelo americano. É difícil lembrar de algo naquela época, mas me recordo das discussões dos dois porque meu pai trazia animais de rua debilitados para casa. O problema era que ele tinha que ir trabalhar e, no final, quem cuidava dos bichos era Susana. Ela não cuidou do último, um cachorro com as duas patas machucadas e raquítico. Aquela criatura tinha olhos marejados como se me implorasse para acabar com seu sofrimento, assim eu o fiz.
Desde então, criei um tipo de repulsa por animais e seus olhares humanos. Aparentemente, é a única coisa que tenho em comum com Susana. Afinal, neste exato momento, posso ouvir seus gritos e os de Will vindos do quarto, estão discutindo sobre a possível adoção de um cão.
— Concordamos em algo, mamãe. — Mordo o último pedaço do hambúrguer com os olhos vidrados na tela da tevê.
Esse foi o quarto hambúrguer seguido. Completei todas as missões impostas pelo relógio e isso me fez querer devorar até os tijolos das paredes. Acabei aprendendo um pouco mais sobre esse troço. Quando você encosta o dedo na tela, deixando um centímetro afastado, o relógio liga, mostrando minhas informações.
Virei a porcaria de um jogo e não tenho outra opção além de me deixar ser manipulado por esse sistema. Mas não posso reclamar, isso vai me deixar um bom tempo longe do tédio. Ao que parece, eu sou uma porcentagem e posso evoluir, o que iria acontecer nos 100%?
Escuto a porta do quarto bater. Susana aparece na sala, seus olhos pousam em mim como se estivesse invadindo sua casa. Conheço esse olhar, ela está prestes a descontar sua raiva no filho, assim como fazia quando eu era pequeno. Começa com palavrões e depois parte para agressão física.
— A tevê está me incomodando, desliga isso.
— Ok. — Aperto o botão do controle deixando a sala escura.
Susana dá as costas indo em direção a cozinha, mas dá meia volta e vem até o sofá.
— Quando vai sair da minha casa?
— Nas próximas semanas já devo ter encontrado um apartamento.
Meu tom calmo parece deixá-la ainda mais brava, as vezes acho que ela queria que eu fosse mais parecido com sua personalidade agressiva.
— Preciso que seja antes, está difícil ter que ver sua cara todos os dias.
— Como quiser. — Levanto do sofá com o prato e as embalagens dos hambúrgueres.
— Maledetto stronzo! — Susana revira os olhos e decide fazer seu caminho até a cozinha.
Se me lembro bem tem um copo em cima da pia. Fecho os olhos e movimento os dedos. Um sorriso travesso se faz em meu rosto ao escutar o barulho de vidro se quebrando.
— Merda!!! — Susana fica histérica.
Quando abro os olhos percebo que Will está me encarando, a expressão dele é confusa. Fui pego no flagra. Ele faz um gesto me perguntando o que estou fazendo e só dou de ombros.
— Onde fica o apartamento? — Will cruza os braços e me impede de levar o prato pra cozinha.
— Que diferença faz?
— Não posso te visitar, cara?
Sorrio de canto, amigável. Até quando estou prestes a ir embora e deixá-los em paz, Will insiste em parecer o cara legal. É até fofo sua atuação mesmo que não precise da simpatia do filho para transar com a mãe como normalmente acontece.
— Te mando o endereço. — Dou um soco fraco no peito dele e Will fica satisfeito com a resposta.
Passo por ele, mas meu padrasto persistente ainda não terminou de falar.
— Aí, cara, não sou a favor da forma como sua mãe te trata. O que aconteceu entre vocês?
Will está começando a pisar em terras desconhecidas, nem mesmo Susana contou a ele sobre o meu pai.
— Não sei ao certo, depressão pós parto interminável? — sorrio passando por ele.
A verdade? Meu pai não ajudava os animais debilitados por bondade, ele tinha um vício estranho em reabilitar esses animais para depois mata-los. Talvez a apatia seja hereditária, meu pai era guiado por impulsos sombrios, mas não sou como ele, sou melhor.
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Atualizado até capítulo 27
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