Eu não fui o tipo de criança que você poderia chamar de comum. Sem querer assumir o papel do diferentão, não entenda errado, isso é o oposto de sentir orgulho. Enxergar o mundo sem cor aos seis anos foi tudo, menos divertido. Tudo sempre me pareceu tedioso, brincadeiras, doces, afeto. E não para por aí, se apenas a minha personalidade fosse defeituosa, estaria tudo bem, mas eu conseguia fazer coisas impossíveis.
Aos oito anos, conseguia mover objetos pequenos sem precisar tocá-los. Sempre foi o meu segredo, a fuga do tédio. Por isso escolhi o trabalho perfeito em que eu pudesse fugir da realidade. Seria praticamente impossível um magricela como eu ser um dos melhores na construção civil, levantar o triplo do meu peso sem usar as mãos. Calço as luvas e ajeito o capacete ao avistar meu chefe carrancudo vindo na minha direção.
— Ei, aberração! Estão precisando de você lá nos fundos.
— Oui, chef! — faço que sim com a cabeça.
— Estou de olho em você, desgraçado. — diz ele, segurando meu braço.
Esse é meu chefe paranóico, há alguns meses descobriu que a esposa tinha uma queda por caras loiros na adolescência, então cismou comigo e desde então vem pegando no meu pé. Pessoas comuns são tão patéticas, medrosas e ansiosas por qualquer porcaria. Levanto o olhar para ele, logo em seguida meu chefe solta meu braço.
— Nero Valen, tem trabalho pra você bem aqui. — Um dos operários aponta para o monte de vigas.
— Deixa comigo. — Sorrio, erguendo a mão enquanto ele se afasta.
Finalmente paz. Os outros trabalhadores estão mais afastados. Vou aproveitar esse momento para completar outra missão. Encaro o relógio. Por que preciso obedecer assa porcaria? Tenho tanto medo de morrer ou isso parece divertido? Seja o que for, lá vou eu fazer 400 agachamentos.
As vozes acumuladas me irritam um pouco. Você só quer ir para casa e dormir um pouco, mas o trem demora e as pessoas amontoadas na plataforma ficam batendo a boca, falando sobre coisas inúteis. Enfio os fones e deixo Duality invadir meus ouvidos, enquanto aprecio a música, uma mulher passa na minha frente e acidentalmente se tropeça em meu pé. Desenho um sorriso no rosto antes mesmo dela se virar, mostrar passividade diminui os riscos de uma discussão mesmo que eu não tenha culpa nenhuma.
Ela se vira para mim com os olhos arregalados, é impossível não notá-los, são verdes demais e brilham demais.
— Eu sou um desastre, me desculpa. — Ela se aproxima com a testa franzida.
— Não foi nada, moça. — Digo ainda sorrindo.
A mulher também está usando fones de ouvido, a diferença é que ela esqueceu de conecta-los e a música está saindo diretamente de seu aparelho. Meus olhos vão parar na bolsa de couro que ela carrega, é onde o celular está. Estamos ouvindo a mesma coisa. Duality.
— O fone... — aponto para baixo.
— Ah, sim — ela tira o celular da bolsa e desliga o celular. — Meu Deus, eu não estou funcionando hoje.
Enfio as mãos no bolso quando o barulho do trem se aproxima. A mulher fica ao meu lado quando a máquina desliza pelos trilhos. As portas se abrem e entramos no vagão. Agora continuo escutando as vozes acumuladas e a estranha que gosta de Slipknot ainda está aqui. Pelo canto do olho, dou uma conferida nela. Seus cabelos são firmes e ruivos, ela escolheu o vestido esmeralda que faz um par perfeito com seus olhos. Meu maior defeito é não conseguir me adequar a situações como essa, um cara normal usaria o fato de ambos estarem escutando a mesma música como pontapé para um assunto. Mas não estou afim de me esforçar.
— Você também curte? — ela segura no meu ombro de repente.
— O que?
— Estamos ouvindo a mesma música. — Ela ri balançando a cabeça.
Tiro os fones. Como ela percebeu se o volume estava tão baixo? Audição inumana?
— Gosto da mensagem dela.
— Essa é a parte chata, gosto mesmo é do barulho. — A ruiva sorri quando olha nos meus olhos.
É só um sorriso limpo sem mostrar os dentes e acho isso muito bonito. Isso me lembra a Susana de quando eu era pequeno, ela me influenciou com seus rocks pesados, as duas têm o mesmo tipo de sorriso limpo.
— Como conseguiu ouvir? É que estava tão baixo.
— Sou superdotada quando se trata de qualidade. — Ela sorri de novo.
— Conta outra. — Involuntariamente acompanho o sorriso dela.
Ela me dá um tapinha no ombro.
— É sério, meus sentidos são aflorados, poxa!
— A superdotada tem nome?
A ruiva tomba a cabeça para o lado deixando algumas mechas perfeitas sobre o rosto.
— É Violly.
— Nem um pouco francês. O meu é Nero.
As sobrancelhas dela se erguem quando tenta conter o riso.
— Nero? O imperador?
— Talvez meus pais estivessem bêbados.
Violly me cutuca com o cotovelo.
— Você não é daqui é?
— Itália.
— Um italiano. — Ela franze os lábios. — Está um pouco longe de casa.
As portas do vagão se abrem. Minha saída é anunciada, mas não quero descer agora, essa mulher me fez reviver lembranças muito antigas da minha mãe.
— Eu desço aqui, francesa.
— Tchau, tchau, italiano.
Olho por cima do ombro só para ver mais uma vez seu sorriso antes das portas se fecharem. É exatamente como o sorriso da antiga Susana, acho que conversamos bastante também.
Encaro o relógio lembrando da existência dele, só falta a missão de correr dez quilômetros. Sem perder tempo, já saio da estação botando as pernas para funcionar.
O dia de hoje pode estar uma loucura. Primeiro obedeço ordens de um relógio satânico e depois me interesso por uma mulher que tem o mesmo sorriso da minha mãe.
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Atualizado até capítulo 27
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