Com a alça da mochila passando pelo ombro, deixo meu quarto. Passo a mão rapidamente pelo cabelo úmido assim que piso na cozinha com um pouco de pressa e o estômago agitado. Mas toda essa pressa se esvai, deixando somente o cheiro do shampoo preencher a fome.
Os dois estão na cozinha recolhendo seus pratos e xícaras, olhares se lançam contra mim, fechando um nó na garganta com pressão o suficiente para gerar uma inflamação. Will está com uma cara péssima de preocupação, revezando o olhar entre a mulher ao seu lado e eu. Susana, diferente dele, ergue o queixo e me encara de maneira perfurante. Por mais que tenhamos características semelhantes, seus olhos são da cor do chocolate, enquanto os meus se banham num mar azul. Sem contar na minha incapacidade de encarar outro ser vivo com tanto desdém como ela me encara. O que ela pensaria se soubesse o que fiz ontem à noite?
Levanto as mãos e abro a boca para dar alguma explicação antes que algo aconteça, mas Susana não está a fim de esperar quando encurta a distância entre nós, fazendo um movimento brusco com o braço para acertar meu rosto. Minha bochecha queima.
— Por que chegou tão tarde ontem? — os cabelos sedosos de Susana se espalham pelo rosto dela, eles são quatro tons mais escuros que os meus e ainda assim atingem certa semelhança. — Sua única função é ir embora desta casa e não ficar vadiando até tarde.
Pressiono os dedos no local dolorido e ergo a cabeça um tanto surpreso (não surpreso do tipo "isso nunca me aconteceu", a surpresa se deve mais pelo sentimento que estava no tapa, um acúmulo de ódio). O relógio ainda está no meu pulso. Irritante.
— Ah... — meus lábios se alargam em um sorriso, cerro o punho e o pressiono contra meu peito, forçando uma animação. — Desculpa, Suasana, não vai acontecer de novo.
Susana tem o rosto em formato de coração, às vezes me pergunto se esse detalhe existe para compensar a falta do seu que deveria estar encaixado em seu interior. O uniforme rosa se ajusta ao seu corpo, fazendo alusão a uma mulher séria em sua profissão. Enfermeiras têm a mão pesada assim mesmo?
Como se fosse capaz de ler mentes, ela faz outro movimento brusco com o braço querendo acertar o outro lado. Eu não dei os dois lados da face, mas acredito que ela viria buscar. Will puxa Susana pela cintura e se entrepõe no nosso meio.
— Já chega, Susi, foi só um deslize, poxa! Não vai acontecer de novo — diz Will com sua voz serena demais para um homem de um metro e noventa, careca e ombros largos. Ele ergue a sobrancelha para mim. — Certo, Nero?
Balanço a cabeça ainda pressionando contra minha bochecha ardida.
— E sobre isso... estou prestes a alugar um apartamento. — Aperto a nuca abrindo um sorriso sem mostrar os dentes.
Susana cobre o rosto, pegando um momento só para si dedicado a respirações lentas. Joga o cabelo para trás e solta um suspiro, depois leva as mãos até a cintura. Ela tem apenas trinta e quatro anos, mas se não tomar cuidado, pode acabar colecionando rugas com tanto estresse.
— Assim espero, sua condição não é favorável.
Sem dizer mais nada, Susana sai derrubando o mundo à sua frente.
Quando o barulho da porta se estraçalha, me permito respirar. A casa nada mais é do que uma caixa restrita de oxigênio impossibilitando até o menor dos suspiros. Não há alívio com a saída dela, há apenas amargura deixada por seus dedos em minha pele.
Os olhos de Will me abandonam, ele começa a preparar alguma coisa com pães. Faz o gesto para que eu me sente à mesa.
— Não apoio as ações dela, mas você bem que podia colaborar, né? — Will engorda um pão com queijo e depois o esquenta.
Apoio os cotovelos sobre a mesa de mármore, fitando as costas largas dele, é engraçado como nunca me acostumo com seu tamanho. Nunca me acostumo com sua gentileza, nem com seus sentimentos por Susana.
— Perdi a hora ontem, não pense que banquei a criança mal criada para chamar atenção.
— E acha que eu não sei, rapaz? — desliza o prato pela mesa e vai até a cafeteira.
Ergo o pão para dar uma bela abocanhada, mas paro e levanto os olhos para Will.
— O que você viu nela?
— Sua mãe tem um ótimo par de pernas... — Will faz uma cara séria enquanto despeja café numa xícara. — Não espalha, a conversa morre aqui.
Um silêncio se faz. É temporário. Então rimos. Nossas risadas se abafam.
— Se você diz — digo com a boca cheia.
Will vira a cadeira ao contrário e se senta do outro lado e me entrega a xícara. Ele jamais sentaria daquela forma na frente dela. Will me parece alguém atuando o tempo todo, parece exaustivo. Me levanto pronto para sair.
— Te vejo à noite, cara. — Ele ergue a xícara.
Assinto com a cabeça e sorrio. Seria hipocrisia da minha parte julgar o Will por fingir, eu faço isso o tempo todo.
Já dentro do trem bastante estufado, pressiono as costas contra o vidro da janela cercado por todas aquelas pessoas perdidas em seus próprios mundos pendurados na barra de ferro ou sentados e confortáveis. Confiro o relógio maldito no meu pulso, como tiro isso? Meu pulso estava torcido e meu ombro deslocado, mas quando acordei estava novo em folha. Isso assustaria qualquer um. Até onde sei até o momento, o relógio possui um Sistema. O troço só ligou ontem a noite e até agora não deu nenhuma resposta. Dou uma batidinha na tela e tomo outro susto quando a tela acende com letras douradas. Isso está ficando chato.
Missões? É algum tipo de jogo? Como se eu fosse perder meu tempo com essas merdas. Abaixo o pulso girando os olhos, mas leio outra vez percebendo as letras miúdas.
[Caso o Player se recuse a completar as missões, em consequência, será punido com um infarto fulminante. Terá aproximadamente 10 segundos para aceitar]
Fico encarando a tela. Ainda por cima estou sendo ameaçado. Eu poderia rir disso, mas lembro nitidamente de ter sofrido um pequeno ataque cardíaco naquele beco.
Restam 5 segundos.
É impossível fazer tudo isso em um dia, vou acabar morrendo de cansaço. Além do mais, não é como se eu tivesse todo tempo do mundo...
Restam 2 segundos.
Porcaria!
1 segundo.
Me jogo no chão do trem assustando as pessoas a minha volta e dou início a uma série de flexões. Estou fora de forma, claramente não consigo fazer mais do que dez, mas ao invés de parar, faço uma pausa e continuo fazendo até os músculos arderem. O trem vai demorar meia hora até chegar no meu trabalho, é tempo o suficiente.
— 30 minutos depois... —
Quando termino, tem uma poça de suor embaixo de mim. Não sinto mais a porcaria dos meus braços e meu peito queima. O vagão fica até mais vazio. Me levanto recebendo olhares de julgamento das pessoas restantes.
As portas se abrem.
Pego a mochila e me arrasto para fora com dificuldade de respirar.
A tela do relógio brilha novamente.
O que é agora?
[Missão "500 Flexões" cumprida.
Recompensa: Recuperação total.]
Paro de andar assim que toda a dor e o cansaço desaparecem. Me sinto muito bem, sinto até que posso fazer tudo de novo. Mas minha alegria não dura muito. Minha camisa ficou encharcada de suor, maravilha.
Valeu, relógio de merda.
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Atualizado até capítulo 27
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