Uma chance de vida.

Cinco anos. Esse foi o tempo desde o acidente que mudou minha vida para sempre.

Eu me lembro da assistente social, de sua voz firme, mas olhar cansado, entregando minha guarda provisória para Otávio Callahan. Ela disse que era o melhor, um homem íntegro, dono de terras, alguém capaz de me oferecer estabilidade depois da tragédia, era isso, ou um lar temporário, e eu tinha sentido carinho por ele desde o momento que vi sua tensão no hospital. Naquele dia, eu não entendi. Hoje sei que, sem ele, eu teria me perdido.

Otávio me acolheu como se fosse filha. Não havia a obrigação seca da lei, mas carinho sincero, paciência nos meus silêncios e firmeza nos meus impulsos. Com ele, aprendi o que era cuidar da fazenda. Passei a amar cada centímetro daquelas terras: o cheiro da terra molhada, o som dos cavalos ao amanhecer, a liberdade das colinas. Os animais se tornaram meus confidentes; os campos, meu refúgio.

Claro que nem tudo era paz. Duas vezes, pelo menos, fomos procurados por homens que tentaram comprar a fazenda. Um deles, dono de terras vizinhas, ofereceu cifras absurdas. Lembro do olhar de Otávio endurecendo, o tom frio de sua voz:

— Essa terra não está à venda. Nem agora, nem nunca.

Ele me ensinou a não ter medo de dizer não, mas também percebi algo mais. Em muitas noites, eu o encontrava sentado na varanda, olhar perdido no horizonte. Eu perguntava:

— Está triste, pai?

Ele sorria de lado, mas os olhos denunciavam uma sombra.

— Não é nada, Veronica. Só cansaço.

Mas eu sabia. Ele carregava uma dor que nunca quis dividir comigo. Uma ausência que nem mesmo meu carinho preenchia. E, por mais que eu tentasse, nunca descobri de onde vinha essa tristeza silenciosa.

A noite tinha caído pesada sobre a fazenda. Eu gostava de me perder no silêncio dos estábulos quando todos já estavam recolhidos. Os cavalos me acalmavam; suas respirações lentas, o calor de seus corpos, o som rítmico das patas contra a palha. Passei a mão pelo focinho da égua que eu mesma ajudara a criar e sorri.

— Você é a minha melhor amiga, sabia? — murmurei. Ela bufou como se entendesse, e eu encostei a testa em sua crina.

Foi então que ouvi passos atrás de mim. Meus ombros se enrijeceram. Um dos empregados se aproximava, o mesmo que já me lançara olhares desconfortáveis antes.

— Ainda acordada, mocinha? — disse, num tom arrastado.

— Só vim ver os cavalos — respondi, seca, tentando ignorá-lo.

Ele riu, um som que me fez gelar. Aproximou-se mais do que deveria, a sombra dele se projetando sobre mim.

— Você devia ter mais cuidado andando sozinha por aqui. Quem sabe não encontra alguém disposto a… cuidar de você?

— Afaste-se. — Minha voz tremeu, mas firmei o olhar.

Ele esticou a mão, tentando tocar meu braço. Reagi instintivamente: puxei o forcado encostado à parede e apontei contra ele, mantendo a ponta rente ao seu peito.

— Toque em mim e juro que você vai se arrepender.

O sorriso dele sumiu, substituído por um olhar de desprezo.

— Pode ameaçar o quanto quiser. Se chamar Otávio, acha mesmo que ele vai acreditar em você? Eu trabalho aqui há anos, e você não passa de uma protegida de ocasião.

Meu coração martelava, mas gritei mesmo assim:

— Pai!

Em segundos, passos firmes ecoaram. Otávio entrou no estábulo, a expressão dura como pedra.

— O que está acontecendo aqui?

— Ela… — o empregado começou, mas Otávio ergueu a mão.

— Cale-se. — Seus olhos faiscavam. Voltou-se para mim, e eu apenas balancei a cabeça, ainda segurando o forcado. Bastou para ele entender.

Com uma voz que não admitia réplica, Otávio apontou para a porta.

— Pegue suas coisas e desapareça da minha fazenda. Agora, Te dei um emprego e você tentou tocá-la, logo minha filha?

O homem ainda tentou protestar, mas diante da autoridade de Otávio, não ousou. Saiu resmungando, sem olhar para trás, sendo acompanhado de três dos empregados.

Otávio se aproximou de mim, sua expressão suavizada. Tocou meu ombro com cuidado.

— Você está bem, filha?

Soltei o ar que nem percebi estar prendendo e deixei o forcado cair.

— Estou. — minha voz falhou. — Mas não quero que ele volte nunca mais.

— Ele não voltará. — garantiu. E, pela primeira vez em muito tempo, vi nos olhos dele não a sombra da tristeza, mas a fúria protetora de um pai.

Três anos se passaram desde aquela noite no estábulo. Eu amadureci junto com a fazenda, com a responsabilidade que Otávio me entregava a cada dia. Mas o tempo também cobrou seu preço. Ele começou a adoecer, primeiro em pequenos sinais: o cansaço fácil, a tosse persistente, as noites em claro. Depois, a fraqueza o derrubou de vez.

— Preciso cuidar das coisas. — ele falou tentando levantar.

— Não pai, já cuidei, dei as ordens ao Afonso, cuidei dos medicamentos, olhei a égua prenha, e Augusta está cozinhando, descanse. — reclamei o impedindo de deitar.

— Fica um pouco aqui com o pai. — falou me puxando, tirei a bota e deitei ao seu lado.

— Você foi tão importante na minha vida, cuidou de mim, da fazenda, é tão fácil de ver o seu amor por essas terras. — ele falou com dificuldade, a essa altura as lágrimas escorriam, parecia que era uma despedida, e aquilo me matava, mas de repente a tosse forte, cuspindo sangue, chamei Otto, e ele ficou atendendo meu pai, aquela cena me doía, não consegui vê-lo assim e sai do quarto.

A casa parecia diferente. O silêncio agora era pesado, e eu circulava pelos corredores como se carregasse o mundo nos ombros. Os médicos vinham e iam, mas as notícias nunca eram boas.

Naquela tarde, enquanto eu levava uma jarra de água até o quarto, vi algo que me fez parar. Um homem estava na sala. Jovem, mas com um ar de poder que quase sufocava o ambiente. Um terno impecável moldava o corpo, e seus olhos — tão intensos quanto frios — percorriam cada detalhe da casa como se fossem donos dela.

Meu coração disparou. Não o conhecia, mas sua presença soava como ameaça. Como ousava estar ali, naquele momento em que Otávio lutava pela vida no quarto ao lado?

Me escondi por um instante atrás da porta, respirando fundo. Depois ergui o queixo. Se aquele homem vinha para arrancar o pouco que nos restava, teria que passar por mim.

Olhei de novo para o corredor que levava até o quarto de Otávio. Meus olhos arderam, e sussurrei em silêncio, como se ele pudesse ouvir:

— Vou proteger sua fazenda e sua vida, pai.

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Comments

Rita DE Cassia Gomes

Rita DE Cassia Gomes

verônica tem sangue de mafioso 🤭

2025-10-07

0

Andrea Freire

Andrea Freire

Que bom que ela não baixou a cabeça e falou umas verdades na cara dele🤣

2025-10-06

1

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