A volta para casa após o encontro com Rafael foi um borrão de ruas e semáforos. Letícia dirigia no piloto automático, a visão turva pelas lágrimas teimosas que insistiam em cair. Ela não chorava por ele, repetia a si mesma como um mantra. Chorava pela menina assustada que ela fora, pela violência da rejeição que sentira, e por uma porta que, mesmo fechada com força, agora deixava entrar um rastro de dúvida e complicação.
Estacionou o carro na garagem e ficou sentada por um momento, tentando compor o rosto. Não queria que seus pais vissem o estado em que estava. Precisava ser forte. Sempre forte.
Ao abrir a porta da casa, o calor familiar a envolveu. O cheiro de bolo assando – seu pai devia estar em uma de suas fases de confeiteiro – e o som da risada de Benício ecoando pela sala foram como um bálsamo para sua alma ferida.
— Elias (vindo da cozinha): É a mamãe! — anunciou, com uma colher de pau na mão. Seu sorriso era amplo até seus olhos pousarem nela. A expressão mudou imediatamente para preocupação. — Lê? Tudo bem?
Camila apareceu atrás dele, seu olhar analítico perdendo nenhum detalhe do rosto levemente inchado da filha. — Camila: Como foi?
Benício correu para abraçar suas pernas. — Benício: Mãe, o vovô fez um bolo que parece um castelo!
Letícia enterrou os dedos nos cabelos cacheados do filho, buscando refúgio. — Letícia: Foi... esclarecedor. — ela disse, evitando os olhos dos pais. — Prefiro falar depois.
Eles entenderam o recado. A família tinha uma comunicação não verbal apurada pela convivência intensa.
— Elias: Então venham! O castelo de chocolate está pronto para ser devorado!
A tarde seguiu com uma normalidade forçada. Letícia ajudou Benício com a lição de casa, ouviu as histórias animadas sobre a noite na casa do amigo e comeu bolo até se sentir enjoada. Mas sua mente estava longe. As palavras de Rafael ecoavam: "Descobrimos que ela não pode engravidar." "Aquilo que eu tinha rejeitado... se tornou a única coisa que eu mais queria."
Era uma tragédia grega. E Benício e ela eram os personagens involuntários.
À noite, após colocar Benício na cama, ela não pôde mais adiar. Sentou-se com seus pais na sala, um copo de vinho na mão – uma raridade para ela – e contou tudo. A história da esposa infértil, o arrependimento tardio, o pedido desesperado.
— Elias: O audácia desse... — ele começou, sua voz um rosnado de raiva contida, seus punhos se cerrando. — Ele acha que pode aparecer depois de anos porque agora é conveniente para ele?
— Elias, calma. — Camila colocou uma mão calmante em seu braço, mas seus próprios olhos faiscavam. — Letícia, o que você sente? O que você quer fazer?
Letícia balançou o copo, observando o vinho girar. — Letícia: Eu não sei. Eu o odeio pelo que ele fez comigo. Pela dor. Mas... — ela hesitou, a parte racional lutando contra a emocional. — Mas ele é o pai biológico do Benício. Um dia, Benício vai querer saber sobre ele. Será que eu tenho o direito de negar isso a ele, mesmo que Rafael seja um egoísta?
— Camila: Você tem todo o direito — a voz de Camila era firme como aço. — Você o criou sozinha. Você lutou por ele. Direito legal e moral, você tem. A pergunta não é sobre direito, Letícia. É sobre o que é melhor para o Benício. E para você.
— Elias: Eu não quero aquele homem perto do meu neto — disse Elias, sua expressão sombria. — Ele vai machucar o Benício. Vai fazer promessas e sumir de novo. Eu não vou permitir.
Letícia olhou para o pai, seu protetor furioso, e sentiu um amor imenso por ele. Mas também viu a armadilha. — Letícia: Pai, eu entendo. Mas você e a mãe me ensinaram que guardar rancor é como tomar veneno e esperar que o outro morra. — Ela citou uma das máximas favoritas de Camila. — Não se trata de permitir ou não. Eu sou a mãe. A decisão é minha. E eu preciso tomar a decisão que me permita dormir à noite, sem remorso, não importa o que aconteça.
A sala ficou em silêncio. Elias parecia ter sido atingido pela própria lição. Camila observava a filha com um novo respeito. Letícia não estava pedindo permissão. Estava processando em voz alta, demonstrando uma maturidade que eles, em sua fúria protetora, haviam subestimado.
— Camila: Você está certíssima. — Camila finalmente disse, sua voz suave. — É uma decisão impossível. Não há resposta certa. Mas você não está sozinha nela. Nós estamos aqui. Sempre.
Letícia sentiu as lágrimas voltarem, mas dessa vez eram de gratidão. — Letícia: Eu sei. E é por isso que eu preciso pensar. Sozinha.
Ela se despediu e foi para seu quarto. Deitou-se na cama, exausta mas com a mente alerta. Pegou o celular e abriu a galeria de fotos. Rolou para trás, para as primeiras fotos de Benício. Um recém-nascido minúsculo e enrugado. Um bebê sorridente com os primeiros dentes. Um menino dando seus primeiros passos, com Elias e Camila ao fundo, com sorrisos largos.
Onde estava Rafael nessas fotos? Na sombra. Na ausência. Ele havia escolhido perder tudo aquilo. Agora, ele queria uma segunda chance? Baseado na sua própria dor, não na deles.
A raiva voltou, quente e limpa. Ela não devia nada a ele. Benício não devia nada a ele.
Mas então, uma pequena voz sussurrou em seu ouvido: "E se um dia Benício quiser conhecê-lo? E se ele te culpar por ter mantido o pai afastado?"
Era um fardo pesado demais para carregar sozinha.
Ela fechou os olhos, imaginando o que sua mãe faria. Camila sempre via além da emoção imediata. Ela analisaria os prós e contras. Letícia sentou-se na cama e pegou um caderno.
Na primeira página, ela escreveu: DECISÃO SOBRE R.
Na coluna CONTRA, ela listou com raiva:
· Abandonou nós dois.
· Motivo egoísta (infertilidade da esposa).
· Não confiável.
· Risco de machucar Benício.
· Me traz lembranças dolorosas.
Na coluna A FAVOR, ela escreveu, com mais dificuldade:
· É o pai biológico.
· Pode responder perguntas de Benício no futuro.
· Demonstrou algum arrependimento.
· ...
· ...
Ela olhou para a coluna a favor, quase vazia. A resposta parecia óbvia. Mas seu coração ainda estava pesado.
Ela não tomou uma decisão naquela noite. Em vez disso, escreveu uma terceira coisa no caderno, uma frase que sua mãe sempre dizia: "Decisões tomadas com raiva raramente são sábias."
Ela decidiu esperar. Deixar a poeira baixar. Observar. Se Rafael fosse sério, ele tentaria de novo. E se tentasse, ela estaria mais preparada.
Ao apagar a luz, ela sentiu um pequeno senso de controle voltar. A situação ainda era um caos, mas ela havia plantado a semente da ponderação. E, por enquanto, era o suficiente.
***Faça o download do NovelToon para desfrutar de uma experiência de leitura melhor!***
Atualizado até capítulo 37
Comments
Rita Aparecida
Minha opinião ela sentaria e conversava com o filho mesmo que ele seja uma criança e deixaria ele decidir se queria conhecer o pai ou não
2025-09-20
1