Leticia: Fruto de uma Semente de Amor
O despertador tocou às 6h03 da manhã com uma urgência que parecia pessoal. Letícia esticou o braço para desligá-lo, seu movimento um ritual tão perfeito que nem precisou abrir os olhos. O quarto ainda estava mergulhado na penumbra azulada do amanhecer, mas cada objeto era visível para ela: o armário com as portas que emperravam, a estante abarrotada de livros de administração e romances desgastados, e, na cama menor ao lado da sua, a forma tranquila de Benício, enrolado como um bichinho-preguiça sob o edredom.
Um sorriso cansado, mas infinitamente terno, tocou seus lábios. Ele era sua âncora e seu motor. Tudo o que ela fazia, era por ele.
A casa dos pais – sua casa desde sempre – já pulsava com os ruídos familiares. O cheiro do café que seu pai, Elias, insistia em preparar (e que melhorara consideravelmente nos últimos anos) subia pelo corredor. O som suave de uma reportagem de economia na TV da sala, onde sua mãe, Camila, já devia estar, tablet na mão, checando os mercados antes mesmo de tomar o primeiro gole.
Era uma casa cheia, um porto seguro conquistado com suor e amor pelos pais. Letícia era profundamente grata. Mas, aos 25 anos, às vezes as paredes pareciam se fechar um pouco, lembrando-a que aquela era uma conquista deles, não sua. Ela morava na casa da liberdade deles, enquanto lutava para construir a sua própria.
Com movimentos silenciosos e eficientes, ela se levantou. Seu corpo, outrora adolescente, era agora o de uma mulher. Curvas fortes, herdadas da mãe, um quadril largo que carregara Benício com orgulho, seios pesados que o amamentaram. Ela se vestiu rápido para o trabalho: calça social e uma blusa simples. O home office era uma benção, mas exigia disciplina.
— Letícia (sussurrando): Beni, amor, hora de acordar — sua voz era um acalanto, uma herança de Camila.
Benício resmungou, virou-se e abriu um olho. — Benício: Cinco minutinhos, mãe?
— Letícia: Não, meu querido. A vovó já deve ter o chocolate pronto.
A menção da avó e do chocolate funcionou como um feitiço. Benício saltou da cama, seus pés descalços batendo rápido no chão frio. Letícia o observou correr para o banheiro, seu coração apertando de amor. Ele era a sua maior conquista e sua vulnerabilidade mais aguda.
O café da manhã era um balé familiar. Elias colocava ovos mexidos no prato de todos, orgulhoso de sua nova habilidade. Camila, já impecável, lia um e-mail no celular, mas não perdia um detalhe.
— Camila: Letícia, o workshop de sábado está cheio. Aquele casal da loja de sucos, lembra? Eles vão trazer a contadora deles. Você poderia dar uma palinha sobre gestão de tempo para microempreendedores? — perguntou, sem levantar os olhos da tela, mas com a certeza de que a filha diria sim.
Era assim. Sempre um convite, sempre uma oportunidade de se envolver no legado deles. Letícia adorava ajudar, mas às vezes se perguntava se era só isso: ajudar.
— Letícia: Claro, mãe. Mando os slides para você ver até quinta.
— Elias: E o meu neto? Pronto para o combate? — ele brincou, fazendo cócegas em Benício, que ria, de boca cheia.
— Benício: Vovô, hoje a gente tem educação física! — anunciou, como se fosse uma missão de alto nível.
Letícia bebeu seu café. Aquela era sua vida. Um equilíbrio constante entre ser filha, neta, mãe e profissional. Onde estava a Letícia, mulher? A mulher que sonhava em ter seu próprio espaço, seu próprio sofá onde se jogar após um dia longo, suas próprias regras.
Às 8h em ponto, ela estava em seu "escritório", um cantinho do quarto que dividia com Benício. A webcam estava ligada, mostrando uma profissional séria e focada. Ninguém na reunião imaginaria que, fora do enquadramento, havia uma cama com lençóis de super-heróis e um ursinho de pelúcia caído no chão.
Enquanto ouvia seu chefe falar sobre métricas e KPIs, seu olhar vagueou para a janela. Lá fora, o mundo passava. Pessoas com suas próprias casas, seus próprios problemas, suas próprias conquistas. Uma pontada de inveja saudável, ou talvez apenas desejo, cutucou-a. Ela queria isso. Não por ingratidão, mas por um impulso primordial de provar para si mesma que podia.
A reunião terminou. Letícia desligou a câmera e soltou um longo suspiro. Seu telefone vibrou. Era uma mensagem em um grupo de mães da escola, sobre a festa junina. Outra demanda, outra função a desempenhar.
Ela se levantou e foi até a porta do quarto, olhando para a sala. Viu seus pais, sentados juntos no sofá, discutindo algo sobre um investimento. A cena era de uma parceria tão sólida, tão completa, que por um momento, doeu. Ela tinha Benício, tinha o amor deles, mas sentia falta de ter um parceiro. Alguém para dividir a conta do mercado, as noites em claro com criança doente, os segredos no escuro.
A noite caiu. Benício dormia, exausto após a educação física. A casa estava quieta. Letícia tomou um banho longo, deixando a água quente lavar a fatiga do dia. Enquanto se ensaboava, suas mãos passaram sobre o corpo que gerara vida. As marcas na pele, a suavidade da barriga. Ela se olhou no espelho embaçado. Havia uma mulher ali. Uma mulher com desejos, com fome, com uma força que clamava para ser usada.
Deitada na cama, ouvindo a respiração tranquila do filho, Letícia fechou os olhos. A gratidão pela segurança que seus pais proporcionavam era imensa. Mas naquela noite, o sussurro de um sonho próprio era mais alto. Ela não queria fugir. Ela queria crescer. Queria que suas asas, criadas sob a proteção das asas gigantes dos pais, finalmente se abrissem para um voo que fosse somente seu.
Ela adormeceu com uma promessa silenciosa: a próxima semente plantada naquela casa seria dela.
Benício
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Atualizado até capítulo 37
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