Martins descia a ladeira do morro naquela manhã quente de sábado, a moto rangendo enquanto ele passava devagar pelas ruas movimentadas. Não era incomum que ele ficasse por ali, só observando o que acontecia, analisando os movimentos, sabendo tudo que rolava no morro sem precisar abrir a boca.
Foi quando viu Mih passando na rua principal. Ela ia sozinha, bíblia apertada no braço, vestido longo cobrindo todo o corpo, cabelos cacheados presos com cuidado, o semblante sério e o passo firme. Parecia uma verdadeira “pastorinha”, pensou Martins com um sorriso de canto de boca, só em si mesmo, sem ninguém para ver.
Ele riu baixo, balançando a cabeça.
— Que é isso, mano... parece que ela tá andando num desfile de igreja, toda certinha, parece que tem uns trezentos anos.
K2, que vinha logo atrás dele, percebeu o sorriso e perguntou:
— O que tu tá rindo aí, Martins?
Martins, mantendo o sorriso só nos olhos, respondeu:
— Essa prima tua... por que diabos ela anda assim, toda enrolada igual uma velha?
K2, sério, respirou fundo:
— Cara, o pai dela é pastor. É isso que ele quer, que ela se vista assim. Ela segue a cartilha da igreja, não tem nada a ver com a idade dela.
Martins riu de canto, mais para si mesmo do que para K2, e balançou a cabeça.
— Ah, tá explicado então. Mas véi, só de ver passando assim, dá até vontade de rir de tão certinha que parece.
Ele não estava olhando para ela de forma sexual. Nem de longe. Era pura zoação mental, ironia interna, a forma dele ver o contraste entre o mundo de putaria e violência que ele conhecia e a vida quase medieval que Mih levava por causa do pai.
Enquanto ela seguia seu caminho, ele continuou pedalando devagar, observando como ela mantinha a postura impecável, como se nada pudesse tocá-la. O vestido longo balançava levemente com o vento, os cabelos cacheados presos de forma modesta. Um corpo jovem, mas totalmente coberto, e Martins se divertia com a seriedade dela.
Ele pensou mais uma vez, sozinho:
— Meu Deus, parece que tá andando com cem quilos de pano, véi... igual umas avós que eu via na igreja do morro quando era moleque.
K2 continuava ao lado dele, não entendendo direito o motivo da risada, mas Martins não explicava. Ele só sabia que aquela figura certinha, andando como se fosse o próprio exemplo de decência do morro, provocava uma estranha satisfação cômica em sua mente.
Ao longo da semana, Martins continuou observando Mih de longe. Vez ou outra, ele a via passando na rua, entrando na igreja, saindo com Ana. Sempre o mesmo visual: bíblia no braço, cabelo preso, saia longa, postura firme. E cada vez que ela passava, ele não conseguia evitar o riso baixo, imaginando o que aqueles anos de disciplina religiosa tinham feito com ela.
Ele ainda pensava, em seu próprio juízo:
— Essa mina vai me fazer rir até o dia que eu cansar de andar por aqui. Toda certinha, toda enrolada, e eu aqui, no meio da bagunça.
Martins nunca falava nada disso em voz alta. Nem K2 sabia da extensão da zoação mental. Era só ele, seu próprio entretenimento, a forma como via a vida na favela de outro ângulo: uma menina presa na rigidez do pai pastor, tentando sobreviver no meio de uma favela cheia de sangue, sexo e violência.
A cada vez que Mih passava, Martins pensava no contraste e sorria sozinho. Não era interesse. Não era desejo. Era só ironia, só zoação. Uma forma de entretenimento mental, um passatempo enquanto cuidava de seus negócios. Ela era um personagem secundário naquele universo, e ele ria por dentro de como alguém tão séria e “certinha” podia existir naquele inferno que ele dominava.
Quando K2 finalmente comentou de novo sobre ela, perguntando se ele notava alguma coisa estranha, Martins respondeu:
— Nada de estranho, mano. Só que parece que o vestido dela vai até o chão, o cabelo preso... parece que tá andando numa capela, e não no morro. É só isso.
E riu novamente, olhando Mih sumir na esquina da rua.
Martins voltou a atenção para o morro, os vapores, os negócios, mas o pensamento permaneceu ali: a visão de Mih andando como uma pequena “pastorinha” continuava a provocá-lo, só de zoar. Não havia desejo, não havia afeto. Só diversão interna, a ironia de ver uma vida de extrema disciplina religiosa em contraste com o mundo de sangue e violência que ele vivia.
E naquele instante, Martins sabia que, por mais que o mundo fosse cruel, ele ainda tinha espaço para rir sozinho. Porque ver Mih andando assim era como assistir uma peça de teatro silenciosa, um humor negro que só ele podia entender.
Ele seguiu seu caminho, os vapores atrás, negócios para cuidar, violência para comandar, mas o pensamento de Mih na rua permaneceu, sempre naquele vestido longo, bíblia apertada no braço, andando como se fosse intocável. E isso o fazia rir por dentro, toda vez.
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Atualizado até capítulo 65
Comments
Leitora compulsiva
vai rindo, essa aí já entrou no seu coração e na sua mente 🤭🤣
2025-09-12
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