Amanhecia no morro. O som dos passarinhos ainda tentava competir com o eco distante das rajadas da noite anterior. Milena ou melhor, Mih, como todos a chamavam já estava de pé. Saia longa até os pés, blusinha recatada, bíblia debaixo do braço. Cabelos presos em coque. Ela era a imagem do que o pai pregava na igreja: pureza, obediência, disciplina.
O pastor Silas, seu pai, esperava na sala. Terno simples, mas bem passado, bíblia grossa nas mãos. O rosto era sério, sempre fechado, como se o sorriso fosse pecado.
— Vamos, filha. O culto não espera. O povo precisa da palavra. — Ele falava sem olhar nos olhos, já com a autoridade que carregava no morro.
Mih apenas assentiu. Desde pequena aprendeu a não contrariar. A mãe, ela nem lembrava direito. Cresceu só com o pai, vivendo na bolha da igreja. Tudo que vestia, falava ou fazia tinha que passar pelo crivo dele. Shorts? Blusa colada? Nunca. Namorar? Esquece. Amigas? Só as da igreja.
Na caminhada pela favela até o templo, Mih segurava firme a bíblia. As crianças brincavam na rua, algumas mulheres cochichavam. Ela sentia os olhares: todos a respeitavam como “a filha do pastor”. Mas por trás dos olhares tinha outra verdade todo mundo sabia que quem sustentava aquela igreja bonita, pintada de branco, cheia de bancos novos, era o dinheiro do tráfico. O mesmo sangue que corria pelas vielas bancava o som, as cadeiras e até os ternos do pastor Silas.
No caminho, Mih encontrou Ana, sua melhor amiga. Diferente dela, Ana era da igreja, mas vivia testando os limites. Cabelo solto, sorriso maroto, saia até o joelho — o suficiente pra o pastor implicar, mas pouco se importava.
— Mih, tu viu o baile de ontem? — Ana cochichou, animada, enquanto andavam lado a lado. — Diz que o Martins meteu bala em geral, matou até o Caverna. O morro inteiro só fala disso!
Mih franziu a testa, desconfortável.
— Ana, para com isso. A gente não devia nem falar desses lugares.
Ana riu, debochada.
— Tu vive trancada, mulher. Só igreja, igreja, igreja. Tu nunca vai num baile comigo, né? É outro mundo. Som, luz, homem bonito...
— Homem bonito não me leva pro céu — Mih rebateu rápido, com a voz doce, mas firme.
Ana gargalhou:
— Credo, parece tua mãe falando!
Mih baixou o olhar.
— Eu não tenho mãe.
Ana percebeu que tinha passado do ponto e tentou mudar de assunto:
— Tá bom, tá bom... Mas me diz, tu nunca teve vontade de usar um shortinho, dançar até o chão, beijar alguém?
Mih suspirou, olhando as próprias roupas.
— Claro que já... Mas meu pai nunca deixaria. Ele diz que eu sou o exemplo do morro.
Ana bufou, cruzando os braços.
— Exemplo nada. Todo mundo sabe que quem banca a igreja é o dinheiro do K2.
Naquele instante, o coração de Mih acelerou. K2 era seu primo. Um dos vapores mais respeitados do Martins, o cara que fazia o corre pesado. Mas pra ela, ele sempre foi mais que isso: o irmão que nunca teve. Desde criança, K2 a protegia, não deixava moleque nenhum chegar perto.
— Não fala assim do meu primo — Mih cortou, séria. — Ele é da vida dele, mas comigo sempre foi família.
Ana ergueu as mãos em rendição.
— Tá, tá, calma... Só tô dizendo a real.
Chegaram na igreja. As portas estavam abertas, o som do teclado já ecoava lá dentro. Fieis de todo o morro entravam, alguns com roupas simples, outros com cara de quem tinha acabado de sair do baile. Mas ninguém questionava: dentro da igreja, todo mundo era santo.
O pastor Silas subiu ao púlpito. Olhou a multidão com o mesmo ar severo de sempre e começou a pregar sobre pecado, pureza, obediência. Mih estava sentada na primeira fileira, como sempre. Ana, do lado, mexia no celular escondida, provavelmente vendo fotos do baile.
Mas Mih só conseguia pensar em algo: até quando ia viver assim? Recatada, vigiada, sem poder fazer nada além de orar e cantar?
Ela olhou de canto e viu K2 entrando na igreja. Ele não tirava o boné, nem largava o cordão grosso. Sentou no fundo, fuzil debaixo da blusa. Ninguém ousava falar nada: ele era K2, vapo do Martins, protegido da quebrada.
E naquele instante, Mih sentiu: a vida dela era como uma corda esticada. Entre a pureza que o pai exigia e a sujeira que sustentava tudo ao redor.
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Atualizado até capítulo 65
Comments
Leitora compulsiva
essa amiga dela vai mostrar o outro lado da vida 🤣🤭
2025-09-11
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