2 O peso do Jaleco e ruptura do luto

<<<<<<<

Diana

<<<<<<<

Eu sempre soube que tinha nascido para cuidar. Talvez por ter sido tão ferida na infância, eu buscava no olhar dos outros aquilo que um dia me faltou: empatia. Quando entrei na faculdade de Enfermagem, senti que finalmente estava no meu lugar. Entre livros, plantões e colegas, eu me descobria capaz de aliviar dores, segurar mãos tremendo de medo e oferecer esperança mesmo quando o diagnóstico era cruel.

Paralelamente, algo dentro de mim pulsava diferente. A estética. Eu me fascinava pelo poder que pequenas mudanças tinham sobre a autoestima das pessoas. Passava horas lendo, estudando, pesquisando. Meus amigos recém-formados me usavam como cobaia, testando técnicas e produtos, e eu me divertia, sempre curiosa. Eu queria, um dia, unir essas duas paixões: cuidar do corpo e da alma ao mesmo tempo.

Mas a vida raramente segue o roteiro que planejamos.

Cristina, minha mãe adotiva, engravidou de Carlinhos, eu a ajudei como pude: consultas, enjôos, longas conversas à noite. Fazia questão de cozinhar, de estar presente, tentando abafar a dor que me corroía ao ver meu pai, Antônio, triste e sozinho.

E havia também ele. Edgar.

Dois anos mais novo que eu, mas já naquela época parecia mais velho. Alto, loiro, os olhos azuis que lembravam os de meu pai adotivo, mas sem a doçura. Edgar tinha o olhar cortante, arrogante, sempre pronto para uma crítica.

Ele implicava com tudo. A comida que eu preparava. O perfume que eu usava. As músicas que eu ouvia. Até as roupas que escolhia. Nada escapava.

Às vezes eu pensava que ele fazia aquilo apenas para me ver irritada. Outras, acreditava que era raiva mesmo, pura e simples. Afinal, eu era a intrusa. A filha “escolhida”, não a de sangue.

Lembro-me de uma noite em especial. Cristina estava grávida de oito meses, de repouso, e Edmundo precisava viajar às pressas. Coube a mim ficar de olho em Edgar, que tinha apenas 15 anos, mas já se comportava como um homem feito.

Entrei no quarto e encontrei duas mulheres mais velhas com ele, rindo alto, espalhadas pela cama.

– Isso é um absurdo! – gritei, expulsando-as dali. – Você é só um garoto, Edgar!

Ele se levantou furioso, o rosto vermelho, os olhos queimando de ódio.

– Você não é minha irmã! – cuspiu as palavras. – Não tem direito de mandar em mim!

O que veio depois foi uma cena que nunca esqueci. Edgar, em sua raiva adolescente, me segurou com força, me prendeu com cordas na garagem, como se quisesse provar que podia me dominar. O escândalo foi tão grande que Elias, o tio dele, precisou intervir.

Naquele dia, percebi que entre nós dois não havia espaço para cumplicidade. Apenas atrito, hostilidade e algo que eu não queria nomear.

Eu voltei aos meus livros, aos meus plantões, à vida que eu escolhi. Mas a sombra azul dos olhos dele sempre esteve por perto, lembrando-me de que algumas histórias nunca terminam.

 <<<<<<<

O dia em que ouvi a palavra câncer sair da boca do médico foi o dia em que minha vida desabou pela primeira vez. Eu estava acostumada a escutar diagnósticos cruéis no hospital, mas nunca pensei que um deles atravessaria minha própria casa.

Meu pai, meu herói, Antônio, parecia inabalável. Era aquele que sempre me segurava quando eu fraquejava, que me lembrava de que eu era sua melhor escolha. Mas, diante da doença, o gigante se tornava frágil, e isso me destruía por dentro.

Abandonei a pós-graduação em estética sem pensar duas vezes. As aulas ficaram para depois, os livros de lado, os sonhos engavetados. O que importava era estar ao lado dele, buscar cada tratamento, cada esperança. Passei a viver entre corredores de hospitais — como filha e não como profissional.

Foram meses de idas e vindas, de exames, de madrugadas em claro ao lado do leito. Ele sempre sorria para mim, mesmo em meio à dor, e dizia:

– Você é a minha força, Diana.

Mas por dentro, eu me despedaçava.

Meu casamento não resistiu a essa tempestade. No começo, ele demonstrava paciência, apoiava minhas escolhas. Mas, com o tempo, a ausência se tornou rotina. Minhas filhas pequenas me viam cada vez menos, e o pai delas, ressentido, procurou consolo em outra mulher.

Eu não lutei. Não tinha energia para brigar por um casamento que já se desfazia. Estava inteira voltada para meu pai.

No fundo, eu sabia: estava perdendo os dois homens que sustentavam minha vida. Um pela doença, outro pela covardia.

Foi nesse período que aprendi o verdadeiro significado de solidão. Mesmo rodeada de pacientes, médicos, familiares, eu caminhava sozinha.

E, quando finalmente meu pai partiu, senti que parte de mim havia sido enterrada com ele.

No cemitério, ao lado das minhas filhas, da minha mãe e dos irmãos, eu prometi em silêncio: um dia eu recomeçaria. Não por mim, mas por ele.

Só não sabia ainda que esse recomeço me levaria para muito longe.

>>>>>>>

Edgar Portela

Mais populares

Comments

mmmmdm

mmmmdm

Quando sai o próximo capítulo? Estou tão curiosa!

2025-09-06

1

Ver todos
Capítulos
1 1 Fragmentos de uma infância e os dias atuais
2 2 O peso do Jaleco e ruptura do luto
3 3 O convite e a chegada
4 4 A primeira reunião e seus fantasmas
5 5 As primeiras impressões e silêncio
6 6 O primeiro plantão e o chefe
7 7 O eco e o pai
8 7 O irmãozinho
9 9 O refúgio
10 10 O confronto
11 11 Confissões
12 12 Perfume e Música
13 13 A ficha caindo
14 14 Era o Passado batendo a porta
15 15 Abismo
16 16 Beijo e Consequência
17 17 A casa de praia
18 18 O Guardião furioso
19 19 O segredo
20 20 O café da manhã
21 21 O Limite
22 22 O entardecer
23 23 A dança
24 24 Depois da música
25 25 Os segredos da madrugada
26 26 O Passeio de barco
27 27 A Ilha
28 28 Confissões na pedra
29 29 O retorno
30 30 A primeira vez
31 31 Aquela noie
32 32 Duas Memórias, Um Silêncio
33 33 Ele mudou
34 34 O Adeus e o Abismo
35 35 Da Liberdade ao Eixo
36 36 O Confronto
37 37 O beijo interrompido
38 38 O Rival Silêncioso
39 39 A Festa e os Olhares
40 40 A Voz da Razão
41 41 A pontada
42 42 Peter Pan e Wendy
43 43 A varanda e as Taças
44 44 Os Prisioneiros das Fadas
45 45 O Caminho de volta
46 46 Nada de planos previsíveis
47 47 Confissões de Café
48 48 O Convite Irrecusável
49 49 O Banho
50 50 O nome Proibido
51 51 Sem Máscaras
52 52 Preguiça e confissões
53 53 Pentear Tempestades
54 54 Festa Cancelada
55 55 O desfile das fantasias
56 56 O jogo da Pedrita
57 57 A dança da Tempestade
58 58
59 59
60 60
61 61 Dia de Feijoada
62 62 O Amarelo virou perseguição
63 63 O inferno ganha cor
64 64 Bem na Paz
65 65 Um Arsenal Tentandor
66 66 A saída à Francesa
67 67 Fome Contida
68 68 O despertar do cárcere
69 69 A senha
70 70 Dengosa e obediente
71 71 Bolo e café, chuva la fora
72 72 A chave Virada
73 73 A noite da porta vermelha
74 74 O silêncio dele não foi por mim
75 75 A fissura
76 76 Entre a jaula e o abismo
77 77 O Estranho no caminho
78 78 O café
79 79 O Banquete inteiro
80 80 Sem escapatória
81 81 Ferrero e lágrimas
82 82 Coelhos pela Clínica
83 83 Feridas que não cicatrizam
Capítulos

Atualizado até capítulo 83

1
1 Fragmentos de uma infância e os dias atuais
2
2 O peso do Jaleco e ruptura do luto
3
3 O convite e a chegada
4
4 A primeira reunião e seus fantasmas
5
5 As primeiras impressões e silêncio
6
6 O primeiro plantão e o chefe
7
7 O eco e o pai
8
7 O irmãozinho
9
9 O refúgio
10
10 O confronto
11
11 Confissões
12
12 Perfume e Música
13
13 A ficha caindo
14
14 Era o Passado batendo a porta
15
15 Abismo
16
16 Beijo e Consequência
17
17 A casa de praia
18
18 O Guardião furioso
19
19 O segredo
20
20 O café da manhã
21
21 O Limite
22
22 O entardecer
23
23 A dança
24
24 Depois da música
25
25 Os segredos da madrugada
26
26 O Passeio de barco
27
27 A Ilha
28
28 Confissões na pedra
29
29 O retorno
30
30 A primeira vez
31
31 Aquela noie
32
32 Duas Memórias, Um Silêncio
33
33 Ele mudou
34
34 O Adeus e o Abismo
35
35 Da Liberdade ao Eixo
36
36 O Confronto
37
37 O beijo interrompido
38
38 O Rival Silêncioso
39
39 A Festa e os Olhares
40
40 A Voz da Razão
41
41 A pontada
42
42 Peter Pan e Wendy
43
43 A varanda e as Taças
44
44 Os Prisioneiros das Fadas
45
45 O Caminho de volta
46
46 Nada de planos previsíveis
47
47 Confissões de Café
48
48 O Convite Irrecusável
49
49 O Banho
50
50 O nome Proibido
51
51 Sem Máscaras
52
52 Preguiça e confissões
53
53 Pentear Tempestades
54
54 Festa Cancelada
55
55 O desfile das fantasias
56
56 O jogo da Pedrita
57
57 A dança da Tempestade
58
58
59
59
60
60
61
61 Dia de Feijoada
62
62 O Amarelo virou perseguição
63
63 O inferno ganha cor
64
64 Bem na Paz
65
65 Um Arsenal Tentandor
66
66 A saída à Francesa
67
67 Fome Contida
68
68 O despertar do cárcere
69
69 A senha
70
70 Dengosa e obediente
71
71 Bolo e café, chuva la fora
72
72 A chave Virada
73
73 A noite da porta vermelha
74
74 O silêncio dele não foi por mim
75
75 A fissura
76
76 Entre a jaula e o abismo
77
77 O Estranho no caminho
78
78 O café
79
79 O Banquete inteiro
80
80 Sem escapatória
81
81 Ferrero e lágrimas
82
82 Coelhos pela Clínica
83
83 Feridas que não cicatrizam

Baixar agora

Gostou dessa história? Baixe o APP para manter seu histórico de leitura
Baixar agora

Benefícios

Novos usuários que baixam o APP podem ler 10 capítulos gratuitamente

Receber
NovelToon
Um passo para um novo mundo!
Para mais, baixe o APP de MangaToon!