Eveline
A noite chegou ao fim envolta em sussurros e olhares que pareciam grudar em mim como sombras. O baile, que deveria ter sido apenas mais uma das obrigações sociais de minha família, havia se transformado em algo que jamais esquecerei. Quando a última carruagem deixou o solar, e os criados apagaram as luzes cintilantes dos lustres, restou-me apenas o silêncio.
Silêncio — e o peso do que acabara de acontecer.
Recolhi-me aos meus aposentos sem coragem de olhar para meu pai. Conhecia bem a expressão orgulhosa que ele exibia sempre que acreditava ter conquistado algo valioso. Eu não era tola; sabia que, para ele, meu casamento com Damian Blackthorn era mais do que uma aliança. Era uma vitória. Uma medalha invisível cravada em seu peito.
Fechei a porta de meu quarto e, por um instante, permaneci encostada nela, como se pudesse barrar o mundo do lado de fora. A respiração saía entrecortada, e minhas mãos ainda tremiam da dança. Corri até a penteadeira, e ao me encarar no espelho, quase não me reconheci.
A jovem refletida não era a Eveline que sonhava em caminhar pelos campos em liberdade, nem a moça que lia poemas escondida sob a sombra das árvores do jardim. No vidro, vi apenas a imagem de uma mulher aprisionada em seda, prestes a ser sacrificada em nome de convenções e interesses que não eram seus.
Sentei-me à beira da cama, sentindo o corpo pesar. Era como se cada músculo tivesse absorvido a tensão daquela noite. Meus dedos ainda guardavam a lembrança da textura da pele de Damian, e o calor de sua mão insistia em permanecer gravado em mim, apesar de todo esforço em esquecê-lo.
Fechei os olhos e a cena retornou como uma chama que não se apaga: a firmeza de sua voz, a proximidade perigosa de seus lábios quando murmurou que todos, cedo ou tarde, se rendem. Meu coração, traidor, acelerou novamente só de lembrar.
Não queria admitir, mas havia algo nele que me perturbava além do medo. Algo que despertava em mim uma sensação que não ousava nomear.
Afastei esse pensamento como quem afasta um veneno. Não podia me permitir fraquejar. Eu sabia o que estava em jogo. Minha vida não poderia ser conduzida por fascínios obscuros.
Levantei-me e caminhei até a janela. O luar banhava os jardins, transformando-os em um cenário quase irreal. O vento noturno trouxe o aroma úmido das flores, e por um instante lembrei-me de quando era apenas uma menina correndo por aqueles mesmos corredores, sonhando com um futuro que agora me parecia inalcançável.
Minha mãe costumava dizer que cada estrela no céu era um desejo ainda não realizado. Eu costumava acreditar nisso. Hoje, ao olhar para elas, só via promessas quebradas.
Um arrepio percorreu meu corpo, e percebi que não era apenas o frio. Era a consciência de que, gostasse eu ou não, meu destino já estava selado. A guerra que eu tanto evitara agora batia às portas do meu coração.
O som de passos suaves à porta interrompeu meus devaneios. Suspirei, já imaginando quem poderia ser.
— Entre, Margaret — chamei, e a madeira rangeu lentamente quando minha dama de companhia surgiu, trazendo uma lamparina nas mãos.
Margaret era alguns anos mais velha do que eu, mas ainda guardava no rosto uma vivacidade invejável. Seus olhos castanhos sempre carregavam mais perguntas do que ousava fazer, e naquela noite não foi diferente.
— Minha senhora — disse em voz baixa, como se temesse que alguém a escutasse através das paredes. — Precisa descansar. Amanhã será um dia longo.
Assenti, mas não fiz menção de deitar-me. Margaret pousou a lamparina sobre a mesinha ao lado da cama e, depois de me observar em silêncio por um instante, perguntou:
— Foi tão terrível assim?
A simplicidade da pergunta arrancou-me um riso curto, quase um soluço. Caminhei até a penteadeira novamente e acariciei a borda fria do espelho antes de responder.
— Terrível seria pouco. — Voltei-me para ela. — Margaret, ele… ele é diferente de tudo que imaginei.
— Diferente bom ou diferente mau? — ela arriscou, ajeitando-se numa cadeira.
Encarei-a, surpresa com sua ousadia, mas não consegui repreendê-la. Margaret sempre tivera a estranha habilidade de arrancar verdades de mim, mesmo quando eu mesma não queria admiti-las.
— Mau… — comecei, mas a palavra soou fraca, quase incerta. — Pelo menos deveria ser. É frio, severo, marcado pela guerra… mas… — Hesitei, mordendo o lábio. — Há algo nele que não consigo definir.
Margaret arqueou as sobrancelhas e cruzou as mãos sobre o colo.
— Algo que a atrai.
Minha respiração falhou.
— Eu não disse isso!
Ela sorriu de lado, aquele sorriso sagaz que me irritava e consolava ao mesmo tempo.
— Não precisou. Seus olhos falaram por você.
Afastei-me, voltando para a janela como quem busca refúgio. O luar parecia zombar de mim, revelando o que eu tentava esconder até de mim mesma.
— Ele me assusta, Margaret. — Minha voz saiu quase como um sussurro. — Não apenas pelo que é capaz de fazer, mas pelo que pode despertar em mim.
Dessa vez, minha dama não sorriu. Aproximou-se e segurou minhas mãos, firme, como fazia desde a infância sempre que eu tinha medo das tempestades.
— O coração é traiçoeiro, minha senhora. Ele não segue lógica nem convenções. Mas lembre-se: nem todo medo é sinal de perigo. Às vezes, é apenas o presságio de uma mudança.
Engoli em seco, tentando absorver aquelas palavras. Mudança. Não era isso o que mais temia? Minha vida estava à beira de uma transformação irreversível, e eu me sentia tão impotente quanto uma folha levada pelo vento.
Afastei-me lentamente e deitei-me sobre a cama, sem, no entanto, fechar os olhos. Margaret apagou parte das luzes, deixando apenas a lamparina acesa, e retirou-se após desejar-me boa noite. O quarto mergulhou em sombras, e ainda assim o sono não veio.
A cada piscada, a lembrança dele surgia como um fantasma persistente: o olhar penetrante, a voz que parecia atravessar todas as minhas defesas, o toque que queimava e gelava ao mesmo tempo.
Odiei-me por pensar nele. Odiei ainda mais por desejar entendê-lo.
A madrugada avançava devagar, e percebi que, talvez, aquela fosse a primeira de muitas noites em claro.
Porque algo dentro de mim já sabia: minha vida jamais voltaria a ser a mesma depois de cruzar o caminho de Damian Blackthorn.
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Atualizado até capítulo 52
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