A noite caía pesada sobre a Fazenda Bittencourt. O céu de Goiás, salpicado de estrelas, parecia repousar sobre a imensidão dos campos, onde o gado já se aquietava e os sons da natureza dominavam o silêncio. Da varanda da casa-sede, tingida de tons mais escuros, pendiam lamparinas que lançavam um brilho amarelado sobre o pátio. A imponência da propriedade refletia não apenas riqueza, mas também a herança de um sobrenome marcado por orgulho e rancores.
Na sala principal, José Eduardo Bittencourt caminhava de um lado a outro, as mãos firmes apoiadas atrás das costas. Seu semblante duro parecia ainda mais carregado sob a luz das lamparinas. Aos sessenta e cinco anos, era o tipo de homem que não precisava erguer a voz para impor respeito; bastava o peso do olhar.
Sentada em um sofá próximo, Alba, sua esposa, bordava pacientemente uma toalha clara, mas seus olhos não se desprendiam do marido. Conhecia cada passo inquieto dele e sabia que, por trás daquela rigidez, havia a expectativa pelo retorno de Benício. Clara, a filha mais nova, dedilhava o piano no canto do cômodo, mas a melodia era vacilante, como se refletisse sua ansiedade em ouvir notícias.
A porta se abriu, e Benício entrou, retirando o chapéu. O cavaleiro trazia no rosto a poeira da estrada e no olhar a marca de um dia intenso. O silêncio caiu de imediato; apenas Clara interrompeu a música, deixando que a última nota ecoasse antes de se apagar.
— Finalmente — disse José Eduardo, a voz grave preenchendo o ambiente. — Quero ouvir de sua boca o que aconteceu.
Benício endireitou os ombros, como quem se prepara para um julgamento. — Fui recebido por Alberto Montenegro. Entrei na casa dele, como o senhor me pediu.
José Eduardo ergueu o queixo, avaliando cada palavra. — E?
— Conversamos sobre as divisas de terra. Ele ouviu, desconfiado, mas ouviu. Não me expulsou, tampouco fechou as portas para uma negociação.
— Alberto Montenegro não muda — resmungou o patriarca, retomando a caminhada pela sala. — Sempre calculista. Se não o expulsou, é porque está tramando algo. Ele não se cansa de viver do passado.
Alba ergueu o rosto do bordado e encarou o filho. — E Eva? Como reagiu?
— Com hostilidade, como era de se esperar. — Benício fez uma pausa, lembrando-se dos olhos faiscantes da matriarca Montenegro. — Ricardo também me observou o tempo todo, como se eu fosse um intruso pronto para atacar.
— E você é — cortou José Eduardo, a voz carregada de ironia. — Para eles, um Bittencourt nunca será apenas um visitante.
Clara, que até então mantinha-se calada, não resistiu e deixou escapar um riso breve. — Ah, eu queria ter visto a cara da dona Eva Montenegro. Deve ter sido uma cena memorável.
— Clara! — repreendeu Alba, com firmeza. — Não se fala assim. Não se faz troça de assuntos sérios.
José Eduardo, porém, deixou escapar um meio sorriso, como quem se satisfaz com a lembrança da rival desconcertada. Depois voltou a encarar o filho. — E você, Benício? O que achou? Quero sua impressão.
Benício hesitou. O coração lhe acelerou só de lembrar do instante em que os olhos de Mia Montenegro se encontraram com os seus. Aquela fração de tempo havia sido suficiente para abalar toda a segurança que carregava. Mas não podia revelar aquilo. Não agora.
— São como sempre foram — respondeu, firme. — Orgulhosos, desconfiados, mas também atentos. Alberto pareceu mais curioso do que hostil.
José Eduardo estreitou os olhos. — Curioso é um eufemismo para desconfiado. — Aproximou-se do filho e baixou o tom. — Diga-me: você acredita que há chance de diálogo?
Benício sustentou o olhar do pai. — Acredito que a guerra nos enfraquece. E que insistir nela só serve para alimentar feridas antigas. Talvez… talvez seja a hora de pensar em outra saída.
O silêncio que se seguiu foi tenso como a corda de um arco prestes a se romper. Alba largou a agulha do bordado e olhou fixamente para o filho. Clara abriu a boca, surpresa, e José Eduardo, por um instante, pareceu incrédulo.
— Outra saída? — repetiu o patriarca, com voz lenta e perigosa. — Você fala como quem já baixou a guarda. Paz entre Montenegro e Bittencourt é uma ilusão. O ódio entre nossas famílias é tão velho quanto estas terras.
— Mas não eterno — rebateu Benício, sem elevar a voz, mas com firmeza. — Nós não precisamos carregar o peso de erros que não cometemos. Que nem ao menos sabemos quais foram.
José Eduardo aproximou-se até ficar frente a frente com o filho. Seus olhos ardiam de intensidade. — Escute bem, Benício. Você é meu herdeiro. Carrega o sangue desta família. Se começar a sonhar com acordos e tréguas, não herdará nada além de desprezo daquela família.
Clara, inquieta, largou o piano e se levantou. — Pai, talvez Benício tenha razão. Essa briga é antiga demais. Eu mesma mal sei o motivo inicial. E sou a prova que as coisas podem mudar, sou amiga da Mia desde o colégio.
José Eduardo virou-se bruscamente para ela. — Você ainda é jovem, Clara, e não entende. O que nos separa dos Montenegro é mais que terras, é honra. É a memória de cada humilhação, de cada afronta.
Alba, que permanecia calada até então, interveio com voz serena, mas firme:
— A honra também pode ser mantida de outras formas, José Eduardo. Não se esqueça de que guerras demais já custaram caro às duas famílias.
O patriarca a fitou em silêncio, mas não respondeu. Voltou-se para o filho. — O que vi em seus olhos, Benício, não foi apenas desejo de negociação. Há algo mais. — Sua voz soou quase como uma acusação. — O que realmente aconteceu naquela fazenda?
Benício conteve a respiração. A imagem de Mia voltou com força: o rubor no rosto dela, a suavidade do olhar, o silêncio que falava mais que mil palavras. Sentiu a necessidade de disfarçar.
— Nada além do que disse. Negócios, apenas isso.
José Eduardo não parecia convencido, mas também não insistiu, e declarou:
— Negócios, sim. Mas negócios que vão decidir o futuro desta terra.
Naquela noite, quando todos se recolheram, o jovem Bittencourt permaneceu acordado no quarto. Do lado de fora, o canto dos grilos preenchia o silêncio, mas dentro dele apenas um nome ecoava: Mia.
E, ao fechar os olhos, compreendeu que nenhuma ordem do pai, nenhum peso do sobrenome, conseguiria apagar aquele olhar que o transformara para sempre.
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Atualizado até capítulo 39
Comments
ivone lima juliace
Eita que esses dois vão lutar pelo amor que começa a florescer que Deus os ajude 🥹🥹🥹🥰🥰🥰
2025-09-06
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Maria Luiza Marques
Vão superar essas diferenças se o amor for real!
2025-08-27
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