Capítulo 4 – Entre o dever e o coração

A noite caía pesada sobre a Fazenda Bittencourt. O céu de Goiás, salpicado de estrelas, parecia repousar sobre a imensidão dos campos, onde o gado já se aquietava e os sons da natureza dominavam o silêncio. Da varanda da casa-sede, tingida de tons mais escuros, pendiam lamparinas que lançavam um brilho amarelado sobre o pátio. A imponência da propriedade refletia não apenas riqueza, mas também a herança de um sobrenome marcado por orgulho e rancores.

Na sala principal, José Eduardo Bittencourt caminhava de um lado a outro, as mãos firmes apoiadas atrás das costas. Seu semblante duro parecia ainda mais carregado sob a luz das lamparinas. Aos sessenta e cinco anos, era o tipo de homem que não precisava erguer a voz para impor respeito; bastava o peso do olhar.

Sentada em um sofá próximo, Alba, sua esposa, bordava pacientemente uma toalha clara, mas seus olhos não se desprendiam do marido. Conhecia cada passo inquieto dele e sabia que, por trás daquela rigidez, havia a expectativa pelo retorno de Benício. Clara, a filha mais nova, dedilhava o piano no canto do cômodo, mas a melodia era vacilante, como se refletisse sua ansiedade em ouvir notícias.

A porta se abriu, e Benício entrou, retirando o chapéu. O cavaleiro trazia no rosto a poeira da estrada e no olhar a marca de um dia intenso. O silêncio caiu de imediato; apenas Clara interrompeu a música, deixando que a última nota ecoasse antes de se apagar.

— Finalmente — disse José Eduardo, a voz grave preenchendo o ambiente. — Quero ouvir de sua boca o que aconteceu.

Benício endireitou os ombros, como quem se prepara para um julgamento. — Fui recebido por Alberto Montenegro. Entrei na casa dele, como o senhor me pediu.

José Eduardo ergueu o queixo, avaliando cada palavra. — E?

— Conversamos sobre as divisas de terra. Ele ouviu, desconfiado, mas ouviu. Não me expulsou, tampouco fechou as portas para uma negociação.

— Alberto Montenegro não muda — resmungou o patriarca, retomando a caminhada pela sala. — Sempre calculista. Se não o expulsou, é porque está tramando algo. Ele não se cansa de viver do passado.

Alba ergueu o rosto do bordado e encarou o filho. — E Eva? Como reagiu?

— Com hostilidade, como era de se esperar. — Benício fez uma pausa, lembrando-se dos olhos faiscantes da matriarca Montenegro. — Ricardo também me observou o tempo todo, como se eu fosse um intruso pronto para atacar.

— E você é — cortou José Eduardo, a voz carregada de ironia. — Para eles, um Bittencourt nunca será apenas um visitante.

Clara, que até então mantinha-se calada, não resistiu e deixou escapar um riso breve. — Ah, eu queria ter visto a cara da dona Eva Montenegro. Deve ter sido uma cena memorável.

— Clara! — repreendeu Alba, com firmeza. — Não se fala assim. Não se faz troça de assuntos sérios.

José Eduardo, porém, deixou escapar um meio sorriso, como quem se satisfaz com a lembrança da rival desconcertada. Depois voltou a encarar o filho. — E você, Benício? O que achou? Quero sua impressão.

Benício hesitou. O coração lhe acelerou só de lembrar do instante em que os olhos de Mia Montenegro se encontraram com os seus. Aquela fração de tempo havia sido suficiente para abalar toda a segurança que carregava. Mas não podia revelar aquilo. Não agora.

— São como sempre foram — respondeu, firme. — Orgulhosos, desconfiados, mas também atentos. Alberto pareceu mais curioso do que hostil.

José Eduardo estreitou os olhos. — Curioso é um eufemismo para desconfiado. — Aproximou-se do filho e baixou o tom. — Diga-me: você acredita que há chance de diálogo?

Benício sustentou o olhar do pai. — Acredito que a guerra nos enfraquece. E que insistir nela só serve para alimentar feridas antigas. Talvez… talvez seja a hora de pensar em outra saída.

O silêncio que se seguiu foi tenso como a corda de um arco prestes a se romper. Alba largou a agulha do bordado e olhou fixamente para o filho. Clara abriu a boca, surpresa, e José Eduardo, por um instante, pareceu incrédulo.

— Outra saída? — repetiu o patriarca, com voz lenta e perigosa. — Você fala como quem já baixou a guarda. Paz entre Montenegro e Bittencourt é uma ilusão. O ódio entre nossas famílias é tão velho quanto estas terras.

— Mas não eterno — rebateu Benício, sem elevar a voz, mas com firmeza. — Nós não precisamos carregar o peso de erros que não cometemos. Que nem ao menos sabemos quais foram.

José Eduardo aproximou-se até ficar frente a frente com o filho. Seus olhos ardiam de intensidade. — Escute bem, Benício. Você é meu herdeiro. Carrega o sangue desta família. Se começar a sonhar com acordos e tréguas, não herdará nada além de desprezo daquela família.

Clara, inquieta, largou o piano e se levantou. — Pai, talvez Benício tenha razão. Essa briga é antiga demais. Eu mesma mal sei o motivo inicial. E sou a prova que as coisas podem mudar, sou amiga da Mia desde o colégio.

José Eduardo virou-se bruscamente para ela. — Você ainda é jovem, Clara, e não entende. O que nos separa dos Montenegro é mais que terras, é honra. É a memória de cada humilhação, de cada afronta.

Alba, que permanecia calada até então, interveio com voz serena, mas firme:

— A honra também pode ser mantida de outras formas, José Eduardo. Não se esqueça de que guerras demais já custaram caro às duas famílias.

O patriarca a fitou em silêncio, mas não respondeu. Voltou-se para o filho. — O que vi em seus olhos, Benício, não foi apenas desejo de negociação. Há algo mais. — Sua voz soou quase como uma acusação. — O que realmente aconteceu naquela fazenda?

Benício conteve a respiração. A imagem de Mia voltou com força: o rubor no rosto dela, a suavidade do olhar, o silêncio que falava mais que mil palavras. Sentiu a necessidade de disfarçar.

— Nada além do que disse. Negócios, apenas isso.

José Eduardo não parecia convencido, mas também não insistiu, e declarou:

— Negócios, sim. Mas negócios que vão decidir o futuro desta terra.

Naquela noite, quando todos se recolheram, o jovem Bittencourt permaneceu acordado no quarto. Do lado de fora, o canto dos grilos preenchia o silêncio, mas dentro dele apenas um nome ecoava: Mia.

E, ao fechar os olhos, compreendeu que nenhuma ordem do pai, nenhum peso do sobrenome, conseguiria apagar aquele olhar que o transformara para sempre.

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Comments

ivone lima juliace

ivone lima juliace

Eita que esses dois vão lutar pelo amor que começa a florescer que Deus os ajude 🥹🥹🥹🥰🥰🥰

2025-09-06

1

Maria Luiza Marques

Maria Luiza Marques

Vão superar essas diferenças se o amor for real!

2025-08-27

1

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Capítulos
1 Anúncio!!!
2 Capítulo 1 – Os Montenegro
3 Capítulo 2- Olhares que mudam destinos
4 Capítulo 3 – Ecos de uma visita
5 Capítulo 4 – Entre o dever e o coração
6 Capítulo 5 – Segredos à Beira da Cachoeira
7 Capítulo 6 – Pensamentos e Confissões
8 Capítulo 7 – Entrelaços do Destino
9 Capítulo 8 – Faíscas na Baia
10 Capítulo 9 – Entre Orgulho e Desejo
11 Capítulo 10 – Duas Faces do Mesmo Sangue
12 Capítulo 11 – As advertências de uma mãe
13 Capítulo 12 – Heranças da Terra
14 Capítulo 13 – Os Bittencourt
15 Capítulo 14 – O Rodeio
16 Capítulo 15 – O Beijo
17 Capítulo 16 – A Queda
18 Capítulo 17 – As Confidências da Noite
19 Capítulo 18 – O encontro inesperado
20 Capítulo 19 – Confissões de um coração inquieto
21 Capítulo 20 – Entre planos e descobertas
22 Capítulo 21 – Entre certezas e dúvidas
23 Capítulo 22– O ritmo do campo
24 Capítulo 23 – Ecos de uma Noite
25 Capítulo 24 – Entre a ousadia e o desejo
26 Capítulo 25 – Desejo e desilusão
27 Capítulo 26 – Entre o desejo e o vazio
28 Capítulo 27 – Segredos Partilhados
29 Capítulo 28 – À Beira da Cachoeira
30 Capítulo 29 – Entre Irmãs
31 Capítulo 30 – A Cabana na Noite
32 Capítulo 31 – Novos Horizontes
33 Capítulo 32 – Entre o Amor e o Segredo
34 Capítulo 33 – Segredos e Confusões
35 Capítulo 34 – Café e Conexão
36 Capítulo 35 – O Peso da Decisão
37 Capítulo 36 – Entre o amor e a despedida
38 Capítulo 37 – Segredos e Conselhos
39 Capítulo 38 – Confissões e Preocupações
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Atualizado até capítulo 39

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