O PRIMEIRO LAÇO

Sol de fevereiro parecia querer me derreter viva.

Minhas costas grudavam na camiseta e o suor escorria pela nuca, mesmo que eu tentasse me abrigar sob a sombra rala que a parede da escola oferecia. Eu sabia que o papel com os nomes seria colado no mural a qualquer instante, e ainda assim, parecia que o tempo estava de brincadeira comigo, se arrastando só pra me torturar.

E se meu nome não estiver ali? E se todo esse esforço só me deixar mais longe do que perto?

Os meus dedos tamborilavam no corrimão de metal.

Ao meu lado, a garota que tinha me emprestado na hora da prova — salvadora, na verdade — parecia bem mais tranquila do que eu. Tinha uma garrafinha de água quase vazia na mão e os olhos fixos em nada, como se tudo aquilo não fosse grande coisa.

Ela era bem diferente de mim.

 Branca pálida, com sardas discretas e um rosto tão delicado que parecia ter saído de uma ilustração antiga. O cabelo castanho, longo e liso, caía como seda sobre os ombros. Usava um vestido com estampa floral e um laço de tecido prendendo parte do cabelo, como se tivesse sido moldada para caber perfeitamente naquele cenário de escola particular.

Eu, por outro lado, estava com uma camiseta larga do acampamento de dois anos atrás e uma calça de moletom folgada que escondia minhas curvas — curvas que nunca soube como lidar. Meus grandes cachos estavam presos num coque desajeitado, e os óculos insistiam em escorregar no nariz. Eu parecia estar tentando desaparecer, enquanto ela parecia feita para brilhar.

"Você tá nervosa?" — ela perguntou, sem me encarar de verdade, mas com um leve sorriso nos lábios.

"Um pouco…" — confessei: "E você?"

"Mais ou menos. Minha mãe quer isso mais do que eu."

Olhei pra ela com mais atenção. Era bonita de um jeito calmo, como se tivesse sido criada para agradar. Mas havia algo nos olhos dela que não combinava com essa perfeição toda — uma inquietação escondida atrás do tom suave.

"Sou Rosana." — disse ela, estendendo a mão com naturalidade.

"Bianca." — respondi, apertando sua mão. Foi um aperto firme, mas caloroso, daqueles que fazem a gente sentir que conhece a pessoa há mais tempo do que realmente conhece.

"Minha mãe quer que eu entre aqui pra ser líder de torcida. Disse que pode me dar uma chance de conseguir uma bolsa esportiva depois. Eu nem sei se gosto tanto assim, mas… né?" — Ela riu, meio sem graça: "Quem manda é ela."

Fiquei um segundo em silêncio. Por um momento, quase falei de Lucas. De como ele estudava ali agora, de como eu queria estar mais perto dele, mesmo sem saber direito como seria isso. Mas era pessoal demais pra compartilhar com alguém que conheci tão de repente. Então, fiz o que me pareceu mais seguro.

"Eu… vim porque o ensino médio aqui é melhor. Dizem que aumenta as chances de entrar numa boa faculdade."

Rosana assentiu, sem parecer surpresa ou desconfiada. Foi gentil. Não insistiu. E eu agradeci mentalmente por isso.

O burburinho lá na frente aumentou. Um funcionário apareceu com uma folha dobrada e um rolo de fita adesiva. Senti meu estômago dar um salto e minhas pernas ficarem um pouco bambas.

"Acho que chegou a hora." — Rosana disse, ajeitando o vestido.

Assenti em silêncio e segui com ela. O pessoal já se amontoava, tentando espiar os nomes antes mesmo que o papel ficasse reto no mural. Me estiquei toda, tentando ler entre os ombros e cabeças, sentindo o coração bater tão forte que doía.

"Ai…" — ouvi Rosana murmurar, murchando ao meu lado: "Não passei. Fiquei a dois pontos da nota de corte."

Virei na direção dela, surpresa e um pouco sem saber o que dizer. Mas antes que eu conseguisse abrir a boca, seus olhos brilharam, mesmo com o ar frustrado.

"Tudo bem… quem sabe no ano que vem. Mas você passou, né?"

Voltei os olhos para o mural, e ali estava meu nome: Bianca Rocha, lá no final da segunda coluna.

"Sim…" — falei baixinho. "Eu passei."

Rosana sorriu pra mim, e foi um sorriso sincero, mesmo não sendo o dia dela.

"Podemos continuar amigas mesmo assim, né?" — ela perguntou. "A gente pode se falar por mensagem. Me passa seu número?"

Fiquei parada por um segundo. A vontade de dizer “sim” veio rápido, mas também veio o medo. Desde que meu pai saiu da minha vida para viver com sua outra  nova família, nunca mais tentei manter conexões.

Era mais fácil assim… não se apegar, não correr o risco de perder de novo.

Mas eu me apaixonei pela primeira vez na vida. E isso, de algum jeito, me fazia acreditar que algumas pessoas valiam o risco.

Peguei meu celular velho da mochila e troquei número com ela.

"Quero muito que a gente se veja mais vezes." — Rosana disse. "Talvez eu venha pra cá no próximo ano. Quem sabe?"

Sorri.

"Eu também quero."

E, por um instante, parecia que tudo estava se encaixando. Como se o universo estivesse, enfim, me dizendo que era seguro recomeçar.

ΩΩΩΩΩΩΩΩΩΩΩΩΩΩΩΩ

Quando cheguei em casa, ainda segurando o papel com o meu nome entre os aprovados, meu coração parecia bater com mais força que o normal — como se ainda não acreditasse que era real.

Minha mãe estava na cozinha, terminando de guardar as compras, o rádio tocando alguma música antiga que ela adorava cantar pela metade. Entrei com o papel na mão e fiquei parada por um momento, só observando. A luz da janela deixava o rosto dela ainda mais bonito, mesmo com as olheiras de quem trabalhava demais e dormia de menos.

"Mãe…" — chamei, tentando conter o sorriso que ameaçava escapar.

Ela se virou e, assim que viu meu rosto, deixou tudo de lado.

"Passou?" — perguntou, com os olhos arregalados.

Eu apenas assenti, mordendo o lábio.

No segundo seguinte, ela me envolveu num abraço apertado, daqueles que pareciam querer proteger o mundo inteiro só com o calor dos braços. Fiquei ali, com o rosto escondido no pescoço dela, deixando escapar uma risada abafada.

"Ai, minha menina… eu sabia! Eu sabia que você ia conseguir!"

"É longe, mãe." — falei, num sussurro. "Fica do outro lado da ilha. E a passagem não é barata..."

Ela se afastou só o suficiente para me olhar nos olhos. Seu sorriso não vacilou nem por um segundo.

"A gente dá um jeito. Se for preciso, a gente se muda. O importante é o seu futuro, Bianca. Essa é a sua chance. Um colégio particular pode te abrir muitas portas. E quem sabe, uma bolsa numa boa faculdade..."

Meu peito se encheu de um calor diferente — uma mistura de gratidão, alívio e medo. Minha mãe sempre dava um jeito. Sempre sacrificava tudo por mim. E ali estava ela, mais uma vez, decidida a mover o mundo se fosse necessário.

Eu só conseguia balançar a cabeça, tentando engolir as lágrimas antes que caíssem.

Naquela noite, pensei em vários cenários do meu reencontro com Lucas.

Agora… agora a gente vai estudar no mesmo colégio.

Mesmo prédio. Mesmo intervalo. Mesmo corredor.

Talvez até na mesma sala.

E eu mal podia esperar pra ver o que o destino tinha guardado pra nós dois.

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