O COMEÇO DE ALGUMA COISA

Voltar para casa foi como acordar de um sonho do qual eu não queria despertar.

Minhas roupas ainda cheiravam a fumaça da fogueira. O espelho mostrava minhas bochechas queimadas de sol. Mas dentro de mim havia algo diferente: uma lembrança quente, insistente, impossível de apagar.

Eu tinha beijado Lucas.

Ou melhor, Lucas tinha me beijado.

Passei horas deitada na cama, revirando aquele momento na cabeça como quem assiste a mesma cena de um filme várias vezes, tentando descobrir cada detalhe que passou despercebido. O jeito como ele se aproximou devagar. A segurança no olhar. A calma na voz.

Só que, quando liguei o computador e encarei a tela azulada do Orkut, a realidade me golpeou.

Meu coração disparou só de digitar o nome dele na barra de pesquisa. Lucas Augusto.

Em segundos, o perfil apareceu diante de mim: fotos em praias, festas, jogos de futebol. Recados cheios de piadas internas, corações, apelidos carinhosos. Mais de quinhentos amigos.

Lucas parecia viver em um universo paralelo — cheio de brilho, gente descolada, uma vida que não tinha espaço para uma garota como eu.

Apertei os lábios, sentindo o peito se encolher. O Lucas da fogueira parecia íntimo, próximo, quase meu. Mas o Lucas do Orkut… era intocável.

E então, no meio da minha frustração, vi o detalhe que mudaria tudo:

Colégio Sant Claire.

Particular, claro. Uniforme impecável, brasão dourado, turmas pequenas, laboratórios modernos. Um mundo completamente diferente da minha escola, onde até as janelas eram remendadas com fita adesiva.

Fechei a aba com força, tentando afastar o aperto no peito. Mas antes que a tela sumisse, um anúncio piscou diante de mim, como se o próprio destino tivesse decidido brincar comigo:

> “Processo seletivo de bolsas de estudo – Colégio Sant Claire. Inscrições abertas até 15 de janeiro.”

Fiquei imóvel por alguns segundos, encarando aquelas palavras.

Coincidência? Talvez.

Ou talvez fosse mais do que isso. Talvez fosse Maktub.

Respirei fundo.

Cliquei no link.

E decidi tentar.

Na hora do jantar, tentei parecer casual:

“Então… talvez eu vá fazer uma prova de bolsa para um colégio particular.”

Minha mãe parou no meio do movimento de mexer o café. Me encarou como se eu tivesse acabado de anunciar que iria mudar de planeta.

“Colégio particular? Qual?”

“Colégio Sant Claire. Tem processo seletivo. Se eu passar, a bolsa cobre tudo.”

Silêncio.

Ela largou a colher no pires e cruzou os braços. Eu já conhecia aquele gesto: era o prelúdio do sermão.

“Aquele colégio do outro lado da ilha?”

Assenti. O coração disparado. As chances eram mínimas, mas algo dentro de mim dizia que eu precisava tentar.

“Eu quero muito isso…”

Ela me olhou longamente, como se tentasse decidir se eu estava sonhando alto demais. Mas no fim, apenas suspirou.

“Bianca, não vai ser fácil. Vai ser puxado. Você vai ter que estudar muito. E não dá pra desistir no meio.”

“Eu sei. Eu já decidi.”

Houve outra pausa. Depois, o inesperado:

“Então eu vou te ajudar.”

Naquela noite, deitada na minha cama, imaginei a cara que Lucas faria se me visse andando pelos corredores do Sant Claire. Não era mais só um até algum dia. Agora era possível.

E foi assim que começou.

Passei o resto das férias enterrada em apostilas velhas, vídeos de YouTube e fóruns enigmáticos. Minha mãe colou horários de estudo na geladeira. A cada capítulo terminado, aparecia com uma vitamina, um elogio, ou um simples “orgulho de você, sabia?”.

Às vezes, no silêncio da madrugada, eu pensava na fogueira. No beijo. No sorriso de Lucas. Mas agora esses pensamentos não me paralisavam — me empurravam para frente.

18 de janeiro.

A sala estava mais silenciosa que o céu em noite nublada.

Cadeiras enfileiradas, ar-condicionado zumbindo, relógio marcando cada segundo como se zombasse de mim.

Recebi a folha com meu nome. Respirei fundo. Tudo o que estudei, todas as noites mal dormidas… e foi então que percebi.

Meu estojo.

Não estava lá.

Revirei a mochila em desespero. Nada. Nenhuma caneta. Nenhum lápis. Nada.

O calor subiu ao meu rosto. Como alguém esquece o essencial em uma prova decisiva?

Engoli em seco, tentando disfarçar o pânico. Olhei ao redor. Foi quando a garota ao meu lado virou-se calmamente.

Cabelos longos, presos de qualquer jeito com um lápis velho. Olhar calmo, curioso.

Sem dizer nada, abriu o estojo e retirou uma caneta, um lápis e uma borracha. Estendeu para mim com um sorriso de canto.

“Você parece precisar mais do que eu hoje.”

Aceitei como quem recebe uma dádiva.

“Obrigada… de verdade.”

Ela apenas assentiu. Mas naquele instante, senti algo estranho. Um fio invisível. Familiar.

A mesma sensação que tive quando conheci Lucas.

Como se o universo me avisasse:

Preste atenção. Ela vai ser importante.

E, pela primeira vez, percebi que talvez o destino não fosse feito apenas de uma pessoa.

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