FILHA DA VINGANÇA

FILHA DA VINGANÇA

PRÓLOGO

A primeira coisa que Katrina ouviu sobre o mundo foi um grito.

Um grito abafado, encoberto pelo som do couro estalando nas costas da mãe, e pela porta trancada de um quarto onde ninguém entrava sem permissão. Não era um grito de parto. Era um grito de humilhação, de dor. Um grito vindo de Lucrécia, uma mulher com mãos rachadas de sabão, alma podre de medo e os olhos já gastos antes mesmo da juventude acabar.

Lucrécia não sonhava com muito. Só queria sobreviver.

Era uma das empregadas da casa grande, onde o ar tinha cheiro de cera, vinho caro e hipocrisia. A mansão dos Maldonado ficava nos altos do Vale Verde, cercada por lavoura, ferro e silêncio. Lá dentro, Janaína reinava — a esposa perfeita, com o rosto sempre maquilado e o veneno sempre nos olhos. Já Maldonado… era o diabo vestido de terno, gravata e pulseira de ouro. Um homem que apertava a mão de mafiosos à noite e abusava da criada pela manhã.

Lucrécia não sabia exatamente quando começou. Só lembra do primeiro dia em que ficou sozinha na dispensa organizando os talheres, e ele entrou. O som da porta sendo trancada. O cheiro do charuto. A mão na boca.

Não foi só uma vez.

Aquilo virou rotina.

Todos os dias, enquanto a casa dormia ou estava vazia, Maldonado vinha. E ela calava.

Calava porque a irmã Berenice dizia que, pra pobre, o silêncio era instinto de sobrevivência.

Calava porque a mãe já tinha morrido, e o pai nunca existiu.

Calava porque ninguém acreditaria nela.

Porque, no fundo, o mundo inteiro já tinha escolhido de que lado estava: do lado do dinheiro.

Três meses depois, Lucrécia começou a vomitar.

Quatro meses depois, a barriga já não disfarçava.

Foi aí que Janaína, a rainha do império, percebeu que algo estava errado. E ela não era mulher de passar pano.

Naquela noite, a casa inteira ouviu gritos.

Janaína a arrastou pelos cabelos pela escadaria principal, chamando-a de “vagabunda”, “rata de cozinha”, “vadia barata”.

Mas o que ninguém ouviu foi o que veio depois: o espancamento.

Janaína queria matar. Bateu com tanta raiva que Lucrécia sangrou pelas pernas.

Mas o feto resistiu.

Resistiu como um aviso de que viria ao mundo com um propósito: ser a semente da fúria, o erro que cresceria e cobraria o preço.

Lucrécia foi expulsa na madrugada, jogada na chuva, com um vestido rasgado e uma mala onde cabiam duas calcinhas e um pacote de farinha. Nenhum real. Nenhum "sinto muito".

Ela foi bater na casa de Berenice, em Vila Cavaco. Uma casinha de dois cômodos, cheiro de mofo e chão de cimento queimado. Lá, encontrou abrigo, comida e silêncio — o mesmo silêncio de todas as mulheres que já tinham sido engolidas por homens como Maldonado.

A gestação foi dura. O corpo pedia descanso, mas a vida exigia força.

Lucrécia costurava à noite e lavava roupa para as madames da rua de cima.

E assim, Katrina veio ao mundo.

Num domingo abafado de janeiro, às duas da manhã, com a luz piscando e a parteira suada segurando uma criança vermelha, silenciosa e de olhos muito abertos.

— Vai chamar Katrina — sussurrou Lucrécia, com a boca cheia de sangue.

— Que nome é esse? — perguntou Berenice.

— Nome de tempestade…

---

Katrina cresceu ouvindo a mãe tossir no quarto.

Desde os nove anos, já sabia separar os remédios da caixinha. Aos doze, já entendia que alguns homens não batiam na porta antes de entrar nos cômodos errados. E aos quinze, já tinha punhos fechados e raiva nos olhos.

Não sabia quem era o pai. Lucrécia nunca falava.

Só dizia que ele era "o castigo", "o demônio", "o homem que Deus devia ter esquecido de fazer".

E quando alguém perguntava onde estava o pai de Katrina, ela respondia com o silêncio de quem protege um trauma, não um segredo.

Aos dezessete, o câncer venceu.

Lucrécia ficou amarela. O corpo desinchava e doía. Não conseguia mais levantar, nem comer, nem pentear o cabelo da filha.

Foi na última semana de vida que ela decidiu contar tudo. A verdade inteira.

Berenice chorou de raiva ao ouvir — ela já suspeitava, mas não sabia dos detalhes. Já Katrina... Katrina escutou tudo com os olhos secos. Cada palavra era um prego na parede da alma.

— Foi o pai dela, né? — perguntou com a voz firme.

— Foi — confirmou Lucrécia.

— E ela sabe? A legítima?

— Não sei… Mas era ele que deitava comigo enquanto a esposa via novela.

— E a senhora nunca tentou denunciar?

Lucrécia riu. Um riso oco, morto, sem dentes.

— Denunciar quem, minha filha? Um homem que senta com juiz e padre? Que tem sangue em todas as mãos e dinheiro em todos os bolsos?

Katrina não respondeu. Só apertou a mão da mãe.

Lucrécia olhou pra ela como se visse uma sombra do que foi um dia.

E então falou:

— Eu não sou ninguém, minha filha. Eu fui lixo, tapete, escória. Fui usada, jogada fora…

Mas você não.

Você é Katrina.

Você carrega minha dor, mas também carrega o que sobrou da minha dignidade.

Você é minha última chance de vingança.

— E o que a senhora quer que eu faça? — murmurou Katrina.

— Fique longe deles. Longe daquela família.

O nome Maldonado é maldição.

Janaína, aquela víbora, ela ia me matar grávida se pudesse.

Maldonado… ele te jogaria no lixo se te visse.

E a filha deles… aquela menina mimada…

Foge.

Foge dessa gente.

Não tenta provar nada.

Vive tua vida.

E se um dia o destino te colocar frente a frente com eles…

— A senhora quer que eu os mate?

Lucrécia tossiu, um filete de sangue escorreu pelo queixo. Ela fechou os olhos.

— Não. Eu quero que você sobreviva.

E que eles vivam pra ver o quanto erraram ao não te matar lá no início…

Na manhã seguinte, Katrina acordou com o corpo da mãe gelado.

Berenice cobriu com um lençol, acendeu duas velas e chamou o padre da vila.

Não teve enterro de luxo, nem coroa de flores, nem missa com coral.

Foi só terra, enxada e chuva fina.

No fim do dia, Katrina ficou sozinha no quarto.

Abriu a última gaveta do armário da mãe e encontrou um pedaço de pano. Dentro, um colar de ouro simples — presente que Maldonado deu a Lucrécia na primeira vez que abusou dela.

Katrina pegou o colar, olhou pro espelho e sussurrou:

— Um dia eu vou fazer esse sobrenome arder…

E naquele momento, o mundo ganhou mais do que uma bastarda.

Ganhou uma mulher com uma missão.

Não de justiça.

Mas de vingança.

Mais populares

Comments

Carla Santos

Carla Santos

porra autora já gostei primeiro prólogo mostra como vai ser os capítulos essa mulher da tempestade é de fibra adorei começando hoje às 15:30 30/07/25 vamos que vamos

2025-07-31

5

valeria santana chaves Chaves

valeria santana chaves Chaves

Que frase forte , retrata tanto minha mãe querida e sua luta muitas vezes solitária para criar 8 filhos .

2025-08-01

2

Tereza Botini

Tereza Botini

Misericórdia. Já estou amando. o trem vai pegar fogo e eu quero os bombeiros tudo em greve
bora katrine

2025-08-04

0

Ver todos

Baixar agora

Gostou dessa história? Baixe o APP para manter seu histórico de leitura
Baixar agora

Benefícios

Novos usuários que baixam o APP podem ler 10 capítulos gratuitamente

Receber
NovelToon
Um passo para um novo mundo!
Para mais, baixe o APP de MangaToon!